A mergulhadora canadense Jill Heinerth abre inéditos caminhos pelas entranhas do planeta, desvendando misteriosos e fantásticos labirintos submersos por onde ninguém nunca esteve
Por Bruno Romano
JILL HEINERTH NÃO É APENAS uma desbravadora dos lugares mais intocados dos nossos mares: ela é geralmente a primeira a mergulhar por cavernas submersas nunca antes visitadas por um animal sem nadadeiras. É neste ambiente escuro, imprevisível e com temperaturas extremas que sua coragem e técnica a levam cada vez mais fundo. Aos 50 anos – metade deles dedicados ao esporte –, Jill é considerada uma das maiores exploradoras de águas profundas de todos os tempos. E ela está longe de pendurar os cilindros.
VIDA SUBMERSA: Jill explora os 12 km do Devil’s Cave System (EUA). (Foto: Mark Long).
Apesar de se divertir lá embaixo, Jill não encara as cavernas como um hobby. Além de exímia mergulhadora, ela é instrutora profissional, fotógrafa, escritora, palestrante e diretora de filmes. Suas aventuras muitas vezes se transformam em pesquisas de novas espécies ou importantes estudos geológicos. Neste “outro planeta” onde vive grande parte do tempo, a canadense já desbravou até icebergs em movimento e imensos túneis de lava petrificada, registrando alguns inusitados encontros com animais. De volta a superfície, ela divide com a Go Outside grandes momentos desta história.
FELIZ DA VIDA: Jill durante uma pausa nos mergulhos na região de Ginnie Springs, na Califórnia (EUA)
(Foto: Robert McLellan)
O AVESSO DO MUNDO
“Muita gente pensa na escuridão de uma caverna e já fica aterrorizado. No meu caso, a entrada me chama. Há algo a ser descoberto na próxima curva. Eu encontro paz e foco nestes ambientes, além do prazer da exploração em si, que me dá arrepios de emoção ao ver algo que ninguém jamais viu.”
A MELHOR DO MUNDO
“Eu realmente não sei como alguém mede ‘a melhor’. Há várias mulheres fazendo coisas incríveis no mundo do mergulho. Eu simplesmente tenho orgulho de ter feito parte de expedições inovadoras e de continuar na ativa depois de 25 anos.”
BYE BYE, EMPREGO
“Eu me formei em Artes Visuais no Canadá e comecei a minha carreira trabalhando com publicidade – na época eu já era uma fanática instrutora de mergulho. Minha empresa era extremamente bem sucedida, mas me mantinha fora da água por muito tempo. Decidi vender a companhia, fazer minhas malas e partir para as Ilhas Cayman [território britânico, ao sul de Cuba]. Estava decidida a encontrar uma forma criativa de usar minhas habilidades embaixo d’água. Deu tudo certo, mas até hoje eu nunca sei de onde virá o próximo pagamento na minha conta.”
ONDE TUDO COMEÇOU
“Nasci na cidade canadense de Mississauga, ao lado de Toronto. Minha carreira de mergulhadora começou em Tobermory, uma vila de pescadores que abriga também uma reserva marinha. Hoje, moro em Ginnie Springs, na Flórida, e minha casa fica ao lado do Devil’s Cave System, um dos lugares mais populares do planeta entre mergulhadores.”
DIVERSÃO: Little River Spring, na Flórida (Foto: Robert McLellan)
A GENTE NUNCA ESQUECE
“Na minha primeira vez eu ainda era extremamente inexperiente em águas abertas, mas nunca vou esquecer-me de quando vi, logo na saída de uma caverna, a imagem de um arco ao fundo, preenchido com o azul da água. Aquilo era a coisa mais bonita que eu tinha visto em toda minha vida. Eu já amava cavernas secas, então a exploração de cavernas submersas aconteceu naturalmente.”
INCANSÁVEL
“Costumo me beliscar diariamente para acreditar que realmente faço o que mais amo todos os dias. Tenho uma carreira híbrida como fotógrafa, diretora de filmes, escritora e palestrante. Durante um quarto do ano, ainda consigo dar aulas de mergulho. Eu amo isso. Treino apenas alunos particulares ou pequenos grupos de aprendizes altamente motivados. É cansativo, mas compensa. Fora d’água, amo pedalar, remar e fazer longos trekkings. Há um ano, eu e meu marido cruzamos o Canadá de bike, pedalando por quase sete mil quilômetros.”
NEM TUDO SÃO FLORES
“Um dia estava na água em Newfoudland, no Canadá, quando me vi cercada por peixes e baleias-jubarte. As baleias pareciam estar se mostrando para mim, então saquei minha câmera e comecei a disparar fotos o mais rápido que podia. Até que a cauda de uma delas bateu na superfície e formou uma grande massa de água. A força da água me lançou para longe e eu fiquei imaginando aquela baleia rindo muito de mim.”
SEMPRE ALERTA
“O mergulho em cavernas é extremamente complexo e desafiante. Com certeza não é para qualquer um. Exige prática, bons equipamentos e maturidade. O ambiente da caverna ensina mergulhadores como nenhum outro o faz. É implacável.”
SE CORRER O BICHO PEGA
“Eu tomei um grande susto recentemente na Antártica quando estava mergulhando dentro de um iceberg. Uma forte corrente de água começou a se formar em nossa direção e, por pouco, saímos com vida. Poucas horas depois desta aventura, o iceberg inteiro se rompeu e explodiu. Nossa caverna tinha sumido. Se ainda estivéssemos lá dentro, teríamos morrido.”
SE FICAR O BICHO COME
“Vivi outro mergulho bem complicado na companhia de um cientista, que ficou preso em uma pequena caverna, bem na minha frente. Demos um jeito, perdemos equipamento, foi terrível, mas saímos. Um parceiro meu de mergulho já havia deixado a mesma caverna, no entanto, eu não o vi e comecei uma busca que acabou durando 73 minutos. Neste tempo, o pessoal na superfície achou que eu tinha morrido e desceu para resgatar meu corpo. Só quando cheguei lá em cima, vi que estava tudo bem. Foi um momento muito emocionante.”
RISCO EMINENTE
“A verdade é que, mesmo que pessoas sigam morrendo em cavernas, as estatísticas têm diminuído consideravelmente. Há mais treinamento de qualidade disponível, logo, menos gente tem perdido suas vidas. Dito isso, a grande maioria das mortes poderia ser evitada com ações prévias ao mergulho. Ainda assim, há pessoas que simplesmente fazem escolhas estúpidas lá embaixo.”
LIÇÕES PARA O MUNDO
“Eu amo palestrar, pois o mergulho em cavernas traz importantes lições sobre encarar desafios, aceitar fracassos e usar a exploração para guiar as nossas vidas. As pessoas se interessam por boas histórias, e também acabam indo para a casa com grandes ensinamentos.”
ABRINDO CAMINHOS
“Em mergulhos convencionais, você exala bolhas na água, o que assusta alguns animais e mexe com a química da água. Eu uso um equipamento chamado ‘rebreather’, que permite uma reciclagem do meu próprio ar – apesar de mais volumoso, causa menos barulho e permite mergulhos extremos de até 12 horas. Com ele, você ainda pode ajustar melhor os gases que está usando para obter a mistura ideal para a respiração. No entanto, também há riscos: um simples erro de cálculo pode ser fatal.”
ASTRONAUTAS DOS MARES
“Os equipamentos que usamos geralmente são pioneiros no mundo do mergulho e muitos têm origem em materiais desenvolvidos para astronautas. Além dos trajes, já pilotei, por exemplo, uma máquina de mapeamento 3D que deve ser usada pela NASA na exploração de uma lua em Júpiter.”
O FUTURO DAS CAVERNAS
“Acho que nós vamos ver mais e mais equipamentos ‘rebreathers’ no mergulho de caverna, mas eu adoraria usar algum dia um novo traje chamado atmosphere suit, que te permite nadar pela caverna praticamente sem limite de tempo.”
SUBLIME: Mergulho de gala nas ilhas Abaco (Bahamas) durante um trabalho de apoio a cientistas
(Foto: Jill Heinerth)
APRENDIZADOS
“Paciência e prudência são duas coisas muito importantes. Não há atalhos quando o assunto é experiência. Eu perdi grandes amigos nos últimos anos e espero nunca mais ver fatalidades. Na maior parte dos casos, essas pessoas tomaram decisões evitáveis, que acabaram se transformando nas causas de suas próprias mortes.”
PARA SEMPRE PIONEIRA
“Ser a primeira pessoa a mergulhar dentro de icebergs em movimento foi um dos meus últimos grandes desafios. As recompensas pagaram os riscos, mas sei que as coisas poderiam ter terminado de outra forma. No fim, aprendi que a vida é muito mais importante do que qualquer meta de mergulho e que é preciso saber a hora de abortar uma missão, mesmo que isso signifique nunca mais ter, naquele ambiente, uma nova chance de sucesso.”