Uma vez por ano, um grupo de amigos parte para desafios sobrehumanos que incluem suportar horas carregando pedras pesadas no fundo do mar – tudo para viver na prática o conceito do “misogi”, um ritual de exaustão física que, juram eles, leva ao autoconhecimento e a uma impressionante melhora na performance. “PASSA AÍ A PEDRA”, diz Kyle Korver. O ala-armador de 2 metros de altura do time de basquete Atlanta Hawks é, indiscutivelmente, o melhor arremessador da NBA, a associação norte-americana desse esporte – por isso a cena a seguir parece, no mínimo, engraçada. Repare porém que não estamos em uma quadra de basquete. Não estamos nem mesmo em terra firme. É uma tarde ensolarada de junho, na Califórnia, em um porto intocado da ilha de Santa Cruz, acessado apenas de barco, 48 km ao sul de Santa Barbara. Fazia três horas que nos revezávamos com movimentos lentos, na água rasa, arrastando uma pedra de 38 kg que Kyle encontrara, após procurar muito, em uma praia próxima. A rocha parecia ser um pouco mais leve no oceano, graças à densidade relativa da água, mas ainda assim era bem pesada.
Kyle está com a cabeça para fora da água, logo acima de mim. Eu largo a pedra abaixo de seus pés e subo para a superfície. Na urgência de respirar, tento ignorar os espasmos que sinto nos músculos posteriores da coxa e as risadinhas das garotas que estão em um barco perto de nós – barco este que parece ser bem agradável, com cerveja, petiscos e área de descanso.
Sorrindo todo simpático, Kyle, de 33 anos, tem cabelos castanhos, dentes brancos e ares de Jacques Cousteau tamanho família. Ele mergulha alguns metros na escuridão agitada para recuperar nossa pedra e, depois, correr embaixo d’água. Com meus óculos de mergulho, mal posso vê-lo inclinando-se para frente, como um jogador de futebol americano todo profissa, com seus calçados de neoprene tamanho 46. É um sprint em câmera lenta e com pedra, que em terra firme pareceria um exercício meio bobo. Mas não é nada disso.
Nosso traje de mergulho nos protege da água fria, mas não afasta os tubarões brancos, comuns na região – e que adoram “pescar” carnes frescas que ficam dando sopa na água. Kyle sonhou com esses tubarões recentemente e eles foram até notícia de jornal. Entretanto pensar que esses animais assustadores poderiam “tirar uma lasquinha” não é uma ideia que eu ache de todo má. Isso significaria voltar ao barco e pôr fim ao esforço de tentar manter-se na superfície mesmo usando um cinturão de lastro de quase 7 kg. Acabariam as desculpas gaguejadas, os olhos ardendo e os dedos esfolados.
Mas, infelizmente, os tubarões não estão com fome. Cerca de 30 ou 40 segundos após Kyle se divertir com a pedra, será minha vez novamente de pegá-la, para mais uma marcha ao longo de um trecho de 200 metros nas profundezas do ancoradouro de Coches Prietos. Já fizemos 14 voltas, faltam dez.
Estamos seguindo, aos trancos e barrancos, com três amigos de Kyle, em Santa Barbara, onde ele e sua família moram nos intervalos entre as temporadas de jogos. Estão conosco Marcus Elliott, de 48 anos, o “cérebro” que arquitetou esse novo teste de sofrimento e que também é cientista esportivo na Universidade de Harvard; Deyl Kearin, de 34 anos, um corretor de imóveis tranquilão que já correu mais de 240 km no Deserto do Saara, em 2012; e Nelson Parrish, de 35 anos, um ex-esquiador olímpico robusto e criado no Alasca que faz obras de arte mostrando “a cor da velocidade”.
Eu lembro do que Nelson dissera algumas horas antes: “Corra embaixo d’água durante o tempo que você leva para preparar seu café da manhã: pegue sua caneca, coloque o café, acrescente o leite e o açúcar, mexa…”
Logo que nos conhecemos, Nelson havia dito o óbvio: “Somos todos um pouco loucos”. Marcus passou por uma cirurgia intestinal de urgência há apenas três semanas e ainda não desistiu do que chama, com ironia característica, de “a corrida do dia”. “O médico me proibiu de usar banheiras”, diz Marcus. “Mas ele não falou nada em relação ao mar.”
Esta é a segunda vez em dois anos que esses quatro amigos se reúnem para ir além de seus limites físicos em uma atividade que se tornou um ritual anual de punição “iluminada”. Neste ano, Marcus achou que arrastar pedras embaixo d’água serviria ao propósito do quarteto. Por isso, nós estávamos carregando duas pedras de um lado para o outro – a outra pedra pesou 31 kg na balança digital de Kyle quando a levamos de volta para casa –, revezando entre equipes de duas e três pessoas. Eu sou o cara que joga em duas posições, como no basquete, o que significa que eu não carrego a pedra com tanta frequência. Mas sofro do mesmo jeito.
Kyle insistiu para que a corrida de revezamento tivesse 5 km. “Soa melhor do que 3 km, certo?”, disse ele, antes de começarmos. Kyle definiu um recorde inédito na NBA na última temporada, com o maior número de jogos consecutivos em que converteu arremessos de três pontos, e ele acredita que conseguiu esse feito exatamente por causa do ritual que está fazendo agora. Ritual, obviamente, é um eufemismo para algo muito, muito pior.
“O NOME DISSO É MISOGI”, conta Kyle, quase em um sussuro, quando falamos sobre o assunto pela primeira vez, por telefone, no ano passado. “Você pode soletra essa palavra?”, pedi a ele. Kyle fez um silêncio e depois respondeu: “Acho que não sei”.
A verdade é que nenhum dos quatro sabe ao certo como pronunciar ou soletrar essa palavra, muito menos o que isso significava exatamente, há milhares de anos, no Japão, de onde vem o conceito geral. Mas todos eles falam do misogi com uma convicção quase religiosa. Deyl, o corretor ultracorredor, comprou o domínio misugi.org, cuja homepage exibe os seguintes dizeres: “Aprenda sobre um conceito que mudará, para sempre, o modo como você encara a vida”. Marcus concorda. “Eu venho inovando a ciência esportiva há 20 anos”, diz ele. “E não há substitutos para os ensinamentos que eu adquiri no misogi.”
Marcus é fisiologista da equipe de futebol americano New England Patriots e consultor em ciência esportiva do time de basquete Utah Jazz, ambos nos EUA. Em 2005, ele inaugurou o Peak Performance Project (P3), em Santa Barbara, com o objetivo de “aplicar ciência de ponta para alcançar a performance esportiva ideal”. O cientista ajuda atletas de todos os níveis e de diversas modalidades. Recentemente ele assinou um contrato com a NBA para avaliar os aspectos mecânicos de cada um de seus novos jogadores. Esse é o primeiro grande projeto desse tipo na famosa liga norte-americana.
Se você visitasse o P3, a equipe de Marcus passaria três horas avaliando seu corpo. Usando análises de movimento em 3D, os integrantes de sua equipe primeiramente te veriam em ação, no seu esporte. Então coletariam 5000 variáveis de dados. No final, saberiam que você tem, por exemplo, seis graus menos de mobilidade no tornozelo esquerdo do que no direito e é por isso que está sentindo dor crônica nas costas.
Mas Marcus não é só mais um nerd obcecado por dados sobre condicionamento físico. Ele está mais para filósofo aventureiro do que para técnico. E quer fazer um alerta: “Nossa capacidade vai muito além do que nos damos conta.”
Em 1993, durante o segundo ano de medicina na Universidade de Harvard, Marcus viajou para as montanhas Wind River, no estado norte-americano de Wyoming, com seu melhor amigo, um judoca profissional de elite. “Nossa relação se baseava, principalmente, no objetivo comum de um derrotar o outro”, conta Marcus. Eles pegaram um avião de Boston para Wyoming, dormiram em um campo perto do aeroporto e pegaram carona até o começo da trilha que ia para as montanhas. Durante caminhadas diárias de 12 horas, seu amigo contou sobre um “conceito do judô emprestado de um antigo ritual religioso japonês”, lembra Marcus.
A ideia, segundo a interpretação de seu amigo, era encarar desafios que aguçassem, radicalmente, a percepção sobre aquilo que é possível.
Durante 15 anos, Marcus pensou sobre o que seu amigo chamou de misogi. “Nós evoluímos diante do desejo de nos desafiar”, conta ele. “Antigamente era preciso que uma tribo atravessasse uma montanha durante o inverno para caçar comida. Hoje nós vivemos em nossa zona de conforto. Temos medo de falhar. Mas que se dane! Como é possível alcançar o limite do nosso potencial sem o risco de falhar?”
Marcus aperfeiçoou, gradativamente, sua própria versão do misogi, que requer que o desafio seja cumprido apenas uma ou duas vezes por ano. “Se ele for difícil o suficiente, os ensinamentos vão perdurar”, acredita.
“Resumindo, trata-se de testar habilidades em um ambiente novo”, conta ele. “Quanto menos informação sobre o desafio, mais ousado e aventureiro será o esforço.” Não existe taxa de inscrição nem espectadores. “É uma busca pessoal desenvolvida por você mesmo. E é difícil pra caramba. Você tem, na melhor hipótese, 50% de chances de sucesso.” Independentemente do resultado, a ideia é a mesma: você vai acabar se dando conta de seu potencial.
Então, afinal, o que é misogi? A primeira referência sobre isso foi escrita no século 8, em um dos mais antigos textos japoneses. Nessa história mitológica, explica Janine Sawada, professora de estudos religiosos na Universidade de Brown (EUA), um deus chamado Izanagi vai ao inferno encontrar sua esposa, Izanami. Essa jornada era até então considerada um tabu para os deuses, então Izanagi lava-se assim que deixa o inferno para se purificar.
Com o passar dos séculos, o misogi passou a descrever atos mais aventureiros de purificação. De acordo com Janine, os “praticantes do ascetismo” vagavam nas montanhas do Japão, na era medieval, desafiando a si mesmos. “Eles se colocavam embaixo de cachoeiras e entoavam cantos esotéricos budistas o mais alto possível, durante minutos ou horas.” Eles faziam isso em todas as estações do ano. “Atualmente alguns japoneses que não são religiosos mergulham em água gelada, na natureza, como um ritual de culto a si próprio. Os ocidentais também estão entrando na onda, de modo que alguns vão para o Japão para praticar os ensinamentos da filosofia zen.”
Janine não se surpreendeu ao saber que alguns ocidentais, como Marcus, que acredita que ninguém faz misogi como ele, tenham adaptado um ritual antigo para algo mais atlético. “Que interessante”, diz ela. “Mas acredito que esse conceito moderno do misogi que você descreve seja algo inventado por vocês, e não baseado em mitos antigos.”
EM 2010, KYLE KORVER conquistou o recorde de maior percentual de cestas de três pontos em uma temporada da NBA, alcançando 53,6% atrás da linha de dois pontos. Algumas pessoas dizem que ele é o melhor arremessador de todos os tempos. A genética desempenha seu papel também. Sua mãe, Laine, marcou, certa vez, 74 pontos em um jogo no ensino médio. Seu pai, Kevin, que tinha 1,98 metro de altura, também jogava basquete e seus três irmãos mais novos (Klayton, Kaleb e Kirk) adoravam o esporte na faculdade.
Kyle foi um jogador de basquete excepcional no ensino médio: ele marcou, em média, quase 18 pontos por jogo durante seu último ano na Universidade de Creighton, no estado de Nebrasca. Após passar algum tempo em Utah e Chicago, Kyle foi para a equipe Atlanta Hawks, em 2012. “Eu nunca fui o cara mais alto. Mas sei como me manter bem em jogo.” Danny Ferry, diretor do Hawks, concorda. “Kyle trabalha com objetivo e foco e otimiza seu desempenho em quadra”, afirma. “Ele é muito ligeiro e esperto.”
Essas palavras são gratificantes, mas só o trabalho duro vai fazer com que Kyle, aos 33 anos, se mantenha no topo. Nos últimos sete intervalos entre temporadas de jogos, ele vem se exercitando individualmente com Marcus, que conheceu quando jogava com o Utah Jazz.
Mas foi só no verão de 2013 que Marcus lhe apresentou a ideia do treinamento misogi. “Kyle era perfeito por muitos motivos”, afirma o cientista esportivo. “Inclusive por já ter desenvolvido em si mesmo uma grande motivação interna: Kyle busca a verdade, a bravura e a honra. Ele é como um guerreiro e possui um espírito aventureiro. Mas, principalmente, está sempre tentando melhorar.”
“Eu topo”, disse Kyle para Marcus, após saber sobre o misogi. “Mas o que vamos fazer?”
“Você já fez stand-up paddle?, perguntou Marcus.
“Não.”
“O que você acha de praticar stand-up de Channel Islands até Santa Barbara? São 40 km em mar aberto.”
“Acho que é loucura, mas estou dentro”, disse Kyle.
Nelson e Deyl também toparam. Eles chegaram a Channel Islands pouco depois do nascer do sol, no começo de setembro de 2013. Deyl ficou no comando do barco de apoio: alguém tinha que fazer essa função. Nelson e Marcus remaram ao lado de Kyle. Eles esperavam encontrar águas paradas, mas, em vez disso, se depararam com ondas de 30 a 60 cm.
Marcus havia explicado rapidamente o plano para Danny, diretor do Atlanta Hawks, antes de partirem para a jornada. “Ele ficou temeroso, mas não nos impediu”, lembra Marcus. As mãos, cotovelos, pés e joelhos de Kyle poderiam sofrer lesões. Até uma torção no dedo mindinho poderia alterar seu arremesso perfeito.
Kyle caiu após 45 segundos em cima da prancha de stand-up.
“Foi a ondulação lateral”, conta Marcus. “Remamos de um lado só nas primeiras quatro horas; o vento estava soprando e tentando nos levar para longe, até Malibu. Daí começamos a remar ajoelhados.”
“Depois de 20 minutos, meu ombro começou a travar”, lembra Nelson. “Nas primeiras seis horas, eu achava que a gente não ira conseguir.”
Então sangue humano começou a manchar a água, e eles confundiram um peixe-lua gigante com um tubarão. “Uma barbatana”, lembra Kyle. “Eu estava com medo e machucado. Meus dedos sangravam”, conta. “Tudo que eu podia fazer era me concentrar em cada remada”, relembra Kyle. “Estou tirando o remo da água no momento certo? Como consigo me equilibrar melhor? Decidi avaliar cada parte da remada, executando-a de modo totalmente perfeito.”
Depois de nove horas, eles pisaram em terra firme. O primeiro misogi em grupo estava concluído. “Foi incrível”, recorda Kyle. “Em algum momento, é preciso aceitar que não há como desistir e que será preciso persistir até cruzar a linha de chegada. As desculpas têm que ser deixadas de lado. A mente precisa se concentrar. E é necessário treinar essa disposição mental. Tudo se encaixa quando as pequenas coisas são executadas perfeitamente. Levei essa lição do misogi para os meus arremessos.”
Kyle fez sua cesta de três pontos no 127º jogo consecutivo na temporada seguinte, quebrando o recorde inédito na NBA. Daí resolveu que continuaria fazendo misogis enquanto sua esposa e Danny permitissem.
Quando eu perguntei a Douglas Fields, neurocientista no National Institutes of Health, quais eram os benefícios e desvantagens possíveis da nossa corrida com pedra embaixo d’água, ele respondeu com uma palavra: “Hipóxia [falta de oxigênio no corpo]”.
Entretanto Douglas explicou que se submeter a uma experiência nova e difícil pode ter efeitos neurológicos. “Você pode explorar a bioquímica da novidade”, afirmou ele. “Os processos moleculares envolvidos durante uma experiência nova, estressante ou traumática, são ativados, e tudo é gravado na memória de longo prazo.” Absolutamente tudo. É por isso que testemunhas se lembram de detalhes triviais. “Esse efeito pode ser usado favoravelmente no treino”, explica Douglas. Além disso, ainda segundo ele, o córtex pré-frontal controla as respostas fisiológicas de medo, estresse e dor. Dispor-se a insistir em situações de dor e adversidade pode fortalecer o controle dessas respostas. Segundo Douglas, “é exatamente o que faz o tal método japonês: ele expande os limites das pessoas ao fortalecer o controle da porção frontal do cérebro”.
Sejam quais forem as consequências, Kyle não falou muito sobre o misogi para seus colegas do Atlanta Hawks, porque eles poderiam chamá-lo de maluco. Porém Jesse Itzler, um dos consultores de negócios da equipe, ficou sabendo sobre o tal ritual. Inspirado por Kyle, Jesse vem considerando fazer seu próprio misogi. “Estou tentando organizar algum desafio que se encaixe nos moldes do misogi. Pensei em um projeto que chamo de Por Mar, Por Terra e a Pé. Seriam 161 km de remada, 161 km de corrida e 161 km de ciclismo, sem parar. Mas eu não quero acabar no hospital por causa disso.”
UMA SEMANA ANTES de eu ir para a Califórnia, Marcus revelou a tarefa que havia escolhido para este ano em um e-mail para sua equipe: “Embora surfistas de onda grande segurem pedras embaixo d’água como parte de seu treinamento, eu nunca ouvi falar de ninguém carregando pedra embaixo d’água por certa distância. O que faz com que a distância seja irrelevante… e, assim sendo, é perfeitamente relevante como um desafio misogi.”
Na noite anterior a nossos 5 km aquáticos, nos reunimos na casa de Kyle, nas montanhas acima de Santa Barbara, cuja vista se estende para o Pacífico. Tomamos vinho acompanhado de um jantar sem glúten, enquanto Kyra, a filha de 2 anos de Kyle, e as duas filhas de Deyl engatinhavam e corriam ao nosso redor, com seus brinquedos.
“Essas crianças precisam começar a fazer misogi”, disse Kyle.
“Andar poderia ser considerado um misogi”, respondeu Nelson. “É difícil se equilibrar aos 2 anos.”
A lesão intestinal de Marcus foi, de fato, resultado de um problema de equilíbrio. Como conta Nelson, Marcus estava de bobeira em um skate com uma câmera, durante um dos projetos artísticos de Nelson, quando de repente caiu. Marcus não é o único que está se recuperando. Nelson ainda se recupera de um acidente de carro em que machucou as costas e o pescoço, há seis meses, e Kyle enfrenta uma dor chata e persistente no pé.
“Eu disse ao meu médico que faria uma grande corrida na água dali a poucos dias”, conta Kyle. “Ele achou uma boa ideia.”
“Acho que seu médico estava pensando em uma piscina rasa cheia de velhinhas”, afirma Deyl.
“Que seja. Este misogi foi prescrito pelo médico!”, conclui Nelson.
Então o rumo da conversa muda para os desafios do dia seguinte. “Vamos começar a reunir dados e a perder calor corporal ao mesmo tempo”, afirma Deyl.
“Após 15 minutos, faremos alguns ajustes”, revela Nelson. “A partir daí, a vida fica bem simples. A dor vem em camadas. Só é preciso passar por cada uma delas. Na verdade, até começamos a nos sentir bem.” Ele faz uma pausa e olha para mim. “Não importa se você conseguirá ou se ficará esgotado. Amanhã você terá feito uma corrida com pedra embaixo d’água, no mar, mais longe do que qualquer um de seus amigos”.
“A meta são cerca de 3 km, certo?” pergunta Marcus, saboreando uma cerveja.
“Eu achei que estávamos falando em 5 km”, diz Kyle.
“O último misogi levou nove horas”, comenta Nelson.
“Mas agora é diferente”, retruca Kyle. “Estaremos dentro d’água.”
“Sim. Não vamos mais deslizar como no stand-up”, afirma Marcus. “Você usará um cinto com peso. E prenderá a respiração repetidas vezes. E se demorarmos três horas para percorrer um trecho e tivermos péssima performance?”
Antes de irmos embora, Deyl sugeriu um plano de emergência. “Se der tudo errado, há duas grandes montanhas bem acima do ancoradouro. Se for preciso, a gente se reveza correndo com a pedra montanha acima. Tragam tênis de corrida!”
Kyle está de pé às 4h15 para cuidar de sua filha, que está chorando. Quando Kyra volta a dormir, ele se deita e pensa sobre a diferença entre um misogi e um jogo de basquete: “Não se pode perder um misogi. Eu posso ficar muito resfriado. Posso ficar muito cansado. É preciso controlar o nervosismo, mas é diferente de um jogo de basquete. Isso é aventura”.
Deitado no quarto do hotel, esperando o despertador tocar, também estou nervoso. Intencionalmente, não treinei para o que estou prestes a fazer – queria testar meus limites. Também me senti assim antes de fazer a trilha dos Apalaches, há mais de dez anos. Será que aquela trilha me preparou para este momento?
Nelson me pega por volta de seis horas da matina, todo animado. Eu pergunto sobre o Alasca para nos distrairmos um pouco. “A montanha onde esquio, na minha cidade, fica 32 km ao norte do semáforo situado no ponto mais setentrional da América. Eu me lembro de competições em que fazia tanto frio que os lifts de esqui não funcionavam.” Nelson era esquiador de elite, mas não bom o suficiente para viver só do esporte. Ao longo dos anos, ele trabalhou como pedreiro, operador de máquinas pesadas e em marketing de internet, antes de se tornar um artista. Ele pretende exibir suas obras de arte no museu Guggenheim até os 40 anos de idade. O misogi e a arte ensinaram a Nelson a mesma lição: você pode fazer o que quiser.
No barco, Deyl me dá algumas barras de cereal com chia e aroma de café enquanto nos dirigimos para Channel Islands. “Eu nunca gostei de esportes cheios de regras quando era mais novo”, conta ele. “Mas ouvi falar da Sahara Race há alguns anos e fiquei intrigado, porque metade dos competidores não consegue terminar a prova! Minha esposa estava grávida, mas disse: ‘Vai nessa’.”
“Foi o desafio físico mais difícil em que já me meti”, conta. Ele correu uma maratona por dia nos quatro primeiros dias e duas maratonas no quinto. E ainda havia uma “volta da vitória” ao redor das pirâmides do Egito.
“Quando voltei, Marcus me perguntou: ‘E aí, como foi?’. Nós sentamos para tomar uma cerveja, coisa rápida. Duas horas e meia depois, estávamos no estacionamento falando sobre o misogi. Eu fiquei todo animado.”
Após duas horas, chegamos ao ancoradouro Coches Prietos, colocamos nossos neoprenes e nadamos em direção a uma praia deserta para procurar pedras grandes. Após alguns minutos, Kyle gritou que encontrara uma. “É esta aqui!”, disse ele, com água pela cintura e a tal pedra na mão, com os braços curvados. Eu achei a pedra grande demais. Mas, quando a segurei na água, carregar a pedra pareceu quase… aceitável.
Minha primeira “equipe” tem Marcus, que não está tomando nenhuma precaução real três semanas após ter entrado na faca, e Deyl; eles acham uma pedra ligeiramente menor. Nós nos reunimos em uma ponta do ancoradouro. Marcus é o primeiro a submergir e faz isso por 6,5 metros, mais ou menos. Deyl vai um pouco mais longe, volta à superfície, e fica com a cabeça para fora d’água, pouco acima da pedra, para que eu saiba onde ela está. É minha vez! Mergulhar, enquanto as ondas obscurecem a água e me jogam de um lado para outro, requer tanta energia que, quando eu seguro a pedra, sinto imediatamente que preciso de ar.
Durante minhas primeiras 12 tentativas, subo para a superfície após alguns metros e balbucio algo parecido com uma desculpa. “Rapazes, é que, não é… Esperem. Droga.” Enquanto isso, Kyle carrega a pedra em distâncias cada vez maiores, aparentemente com facilidade.
Para mim, a primeira hora é um exercício de doer os olhos, arder os pulmões e acabar com o orgulho próprio. A segunda hora também, assim como a maior parte da terceira. Eu me desentendo com o fotógrafo aquático que está me acompanhando para esta reportagem e quase começo uma briga. Marcus, acidentalmente, arranha meu rosto com a pedra. Logo depois, eu bato em sua canela. Trocamos poucas palavras além de: “Aqui… Você consegue… Mandou bem”. Só que eu não estou mandando bem. Parece que não tenho fôlego suficiente. Sou tomado por pânico toda vez que chego ao fundo do mar e tento me mexer. Eu não tenho tração.
Minhas luvas parecem estar grandes, então eu as tiro. Meus óculos embaçam e eu praguejo. Xingo meu emprego, meu empregador e Deus. Por que, me pergunto repetidas vezes, eu não nado de volta para o barco e digo que estirei um músculo? Pode ser uma desculpa manjada, mas vai me poupar de quem sabe quantas horas mais de um vexame vergonhoso no fundo do mar. Eu posso “contar” a estória estando logo ali, dentro do barco.
Por fim, surge uma oportunidade de fuga: precisamos de água potável e alguém tem que nadar até o barco para buscá-la. Eu me ofereço para o serviço. Mas, assim que mato minha sede e faço um lanche rápido, volto para o sofrimento.
EU NÃO SEI SE FOI UMA VERSÃO SUBMARINA da síndrome de Estocolomo ou se as “camadas” de dor começaram, de fato, a serem descascadas, como diria Nelson. Algo estranho acontece quando se passa por uma experiência desagradável e dolorosa por um certo período de tempo. Especificamente, o corpo e a mente, acostumados à tarefa indesejada que lhes foi imposta, param de lutar contra ela. Resistir requer energia demais, que não pode ser mantida. E, gradativamente, em vez da minha resistência instintiva, eu senti um tipo de relaxamento e aceitação.
Isso não quer dizer que eu estivesse em paz embaixo d’água ou, de forma alguma, zen. Longe disso. Mas, ocasionalmente, eu sorria e ria comigo mesmo conforme submergia e emergia com a pedra. Eu até dei um apelido para ela: Velhota Vermelha. A Vermelha e eu estávamos fazendo uma jornada bem lenta, eu imaginava, para o inferno, de ida e volta. Pode parecer loucura. Mas muitas metas são assim: exibir suas obras no Guggenheim, correr a primeira ultramaratona, definir um recorde inédito na NBA.
Eu comecei a percorrer até 10 metros. Não era nada comparado aos trechos insanos de 18 metros de Kyle e Deyl. Meus esforços eram, com muita boa vontade, os do tipo que um jogador reserva poderia realizar. Os rapazes me animavam quando eu me esforçava. Senti espamos musculares que iam e vinham como se fossem gritos repentinos. Os pensamentos de desistir se foram. Eu me lembro muito pouco da conversa real, mas, em dado momento, eu acredito que Deyl tenha dito “o jornalista está detonando”. Isso merece lugar de destaque entre os melhores elogios que eu já recebi em meus 33 anos.
Exatas quatro horas e 49 minutos após o início do misogi, tudo acabou, em todos os sentidos. Marcus me diz: “Eu tinha quase certeza de que você iria desistir no começo”. Os outros concordaram. “Você estava com cara de quem ia desistir”, diz Kyle. Ele conta que se esforçou mais hoje do que no desafio do stand-up paddle, no ano passado. “Agora você é nosso irmão”, disse Nelson, arfando e parecendo um pouco perturbado. Eu escuto meu próprio grito de comemoração.
De volta ao barco, posamos para fotos com o sol se pondo. “A vida não é um filme”, diz Marcus, satisfeito com nosso esforço. “Tratam-se de fotografias. É tão fácil ‘queimar’ um dia. Por que não torná-lo memorável? É só juntar medo e aventura para se ter uma experiência enriquecedora.”
“Os misogis se tornaram meu ativador de treinos pesados”, diz Kyle, mais tarde. “Uma temporada com 82 jogos é um trabalho mais duro do que qualquer coisa da qual eu já tenha participado. Há tantos altos e baixos. Há dias em que tenho muita energia, e outros em que não tenho nenhuma. São nesses dias que você precisa ativar seu ‘modo trabalho pesado’. Achar o botão de repetir. Aprender a relaxar nessa situação. Talvez até aprender a gostar dela. E, quando eu preciso, eu consigo me imaginar nadando no Pacífico. Ou pegando uma pedra e correndo com ela.”
Antes de se despedir, naquela noite, Nelson deu uma ideia para o ano seguinte: ir para a mata, derrubar uma árvore e fazer mesas no próprio local. “É isso que acontece quando o artista do Alasca começa a planejar misogis”, diz Marcus. Piadas à parte, Marcus sabe que há um potencial para os negócios aqui, mas ele hesita em seguir nessa direção. “É tão puro”, diz ele. “Quero preservar isso.” Enquanto isso, ele diz que mais atletas profissionais têm mostrado interesse em experimentar um misogi.
Nos meses que se passaram desde meu desafio, tive dificuldade em descrever exatamente o que aconteceu comigo lá embaixo d’água, com a pedra. Minhas respostas, às vezes, pareciam um fruto duvidoso de um seminário de autoajuda: “Sim, minha percepção sobre minhas limitações está mais aguçada. Eu posso até mesmo dizer que elas sumiram em alguns momentos. Mas a verdade é que, da maneira mais sucinta, meus pulmões e minha coragem parecem estar duas vezes maiores”.
A maioria das pessoas não está pronta para ouvir isso. Minha mãe se pergunta, preocupada, se “aquele tal cientista não poderia estar dizendo besteira”. Eu só posso dizer uma coisa com certeza, mãe: tudo é possível.
Por Charles Bethea
ATLETA: Kyle Korver caminha com a pedra embaixo do mar (Fotos: Chris Baldwin).
DESCONTRAÍDO: Kyle no barco momentos antes de começar o perrengue subaquático.
NAS PROFUNDEZAS: Deyl Kearin perto da ilha de Santa Cruz, na Califórnia (EUA).
NA ÁGUA: Marcus Elliott durante o treinamento de um dia.
UNIDOS PELO DESAFIO: Nelson, Charles, Marcus, Kyle e Deyl tiram um retrato a bordo.