Surfistas da saúde

Nas ilhas Mentawai, na Indonésia, os doutores-surfistas da organização SurfAid descobriram que educar a população é o meio mais eficaz para transformar hábitos e reduzir problemas como a malária

Por Kevin Damasio

A SEMANA ERA DE ALTAS ONDAS e pouco crowd nas ilhas Mentawai, no oeste da Indonésia. Depois de três dias pegando um metrão sem vento em Playgrounds, o neozelandês Dave Jenkins e alguns amigos seguiram para o pico de Lance’s Right, a bordo de um barco de luxo fretado – o chamado surf charter. De cabeça feita com o surf matinal, Dave decidiu aventurar-se em um vilarejo próximo. Sua empolgação cessou logo na trilha. Ao passar por um cemitério, reparou em vários túmulos pequenos, alguns recém-instalados. “Porque tantas crianças morrem aqui?”, perguntou ele para o guia indonésio que o acompanhava, e que o apresentou ao líder local. “Você é o primeiro médico a vir até aqui. Temos grandes problemas”, disse o chefe da comunidade, antes de pedir que Dave examinasse alguns moradores da região.


A MISSÃO: Dave Jenkins, criador do SurfAid, fala sobre mortalidade infantil em um vilarejo remoto (Foto:
Bob Barker).

No momento em que Dave voltava para o barco para pegar sua bolsa com medicamentos, cinco pessoas já aguardavam consulta. Quando voltou ao vilarejo, uma centena esperava por ele. O neozelandês, então, viu-se cara a cara com a realidade dura e oculta do parque de diversões dos surfistas estrangeiros. “Muitas crianças pareciam desgastadas com a infindável batalha contra a malária. Algumas, anêmicas. Vários casos de tuberculose”, recorda ele. “Senti que era muito injusto e que eu precisava fazer alguma coisa.”

Do choque de realidade naquela surf trip, em 1999, brotou a semente da SurfAid, que completou, em 26 de janeiro, 15 anos de história. Trata-se de uma das ONGs mais influentes e eficazes a atuar na Ásia, com foco nas ilhas Mentawai. “Nossa maior conquista foi sobreviver por tanto tempo”, brinca Dave. “Ter sucesso e continuar a evoluir – devagar, mas evoluindo sempre.”

Empenho e suor construíram as primeiras primaveras da SurfAid. Dave largou seu emprego em Cingapura e convidou dois grandes amigos para a empreitada: Steve Hathaway, especialista em saúde pública, e Phil Dreifuss, advogado. Os três fizeram um churrasco para surfistas na Nova Zelândia e, nele, conseguiram as 25 assinaturas e a grana necessárias para registrar a organização.

DEMOROU DOIS ANOS PARA O TRIO arrecadar dinheiro suficiente para uma modesta campanha nas Mentawai. Resultados documentados, uma surpresa: 75% de redução dos casos de malária em um vilarejo remoto, nos arredores de Siberut, graças ao trabalho da ONG. Para isso, contudo, eles tiveram de repensar as formas como educavam a população sobre os principais problemas nas comunidades indonésias: água e saneamento, mortalidade infantil e materna, subnutrição e ausência de centros médicos.


COMUNIDADE: Indonésios trabalham em um projeto de instalação de água (Foto: SurfAid staff photos).

Durante um programa-piloto, Dave flagrou um garoto utilizando uma rede repelente, fornecida pela SurfAid, para pescar. Ou seja, o menino não entendera que a real função daquele objeto era afastar mosquitos noturnos. São 100 milhões – 44% da população – os indonésios infectados pelo vírus causador da malária, segundo a Organização Mundial de Saúde. Os sintomas (febre, dor de cabeça e vómito) aparecem a partir de 10 dias da mordida do mosquito. Se não for tratada, a doença põe em risco a vida do infectado: o vírus alastra-se no fígado e infecta os glóbulos vermelhos. Os integrantes da SurfAid passavam essas informações para os moradores do vilarejo. Mas simplesmente informá-los não resolvia. Dave percebeu isso durante a primeira palestra, em uma igreja: “Algumas pessoas simplesmente caíam no sono”.

Escutar. Essa foi a saída para compreenderem diferentes crenças e costumes. E mais: identificar os líderes da comunidade e ensiná-los, além de descobrir pelo que os moradores são atraídos. “Amamos cantar. Amamos atuar”, disse para Dave o chefe do vilarejo. Uma peça de teatro foi marcada. A notícia espalhou-se pela região. Uma multidão compareceu para testemunhar seu líder vestido de mulher, no papel de gestante, enquanto outros indonésios fantasiavam-se de mosquitos. Às gargalhadas, os locais entendiam o que de fato era a malária e como prevenir-se contra ela – diluía-se, ali, a crença de que vinha da água de coco. “Eu sabia que redes repelentes reduziriam dramaticamente o sofrimento causado pela malária”, diz Dave. “Porém não sabia como estimulá-los a mudar a situação. Isso é muito mais poderoso e cria transformações duradouras.”

DEZEMBRO DE 2004. Um terremoto de 9.3 na escala Richter atinge a costa leste de Sumatra, perto de onde ficam as Mentawai. O forte tremor provoca o oceano Índico. Um tsunami de 30 metros de altura varre 14 países. Dos 230 mil mortos, 72% viviam na Indonésia, a principal vítima da onda gigante. No arquipélago, mais de meio milhão de pessoas ficaram desalojadas. As ilhas Mentawai foram duramente afetadas.

A então pequena SurfAid estava à postos, na linha de frente da ajuda humanitária. Em parceria com indonésios experientes –capitães de surf charters –, os benfeitores foram os únicos com acesso aos vilarejos mais remotos. Um grupo reduzido de surfistas fez um grande trabalho e com isso atraiu novos doadores. A equipe passou de 23 para 100 membros. Distribuiu 60 mil redes de mosquitos. Vacinou milhares de pessoas contra sarampo e, orientando os nativos, evitou que doenças epidêmicas se alastrassem. “Construímos uma reputação e conquistamos respeito internacional”, avalia Dave. “As pessoas costumam ter preconceito quando veem que somos surfistas; acham que não podemos ser de nível internacional. Mas provamos que somos capazes.”

Após o terremoto seguido de tsunami, a ONG de Dave abraçou mais um foco: o preparo para emergências. Provou-se eficaz durante os outros quatro desastres naturais que assolaram a Indonésia no restante da década. Até maio de 2014, 23 mil pessoas em 28 comunidades foram beneficiadas com o programa de redução de danos. Uma das ações é ensinar os locais a construírem casas mais resistentes a terremotos. Em 2010, a Organização das Nações Unidas reconheceu a SurfAid como líder das ações após mais um tsunami que assolou o país. “Fomos responsáveis por 70% de todo o socorro nas duas primeiras semanas”, afirma o médico neozelandês. Com os ensinamentos e o auxílio da equipe de Dave, cerca de 400 casas foram erguidas após o desastre, pelas mãos dos próprios moradores.


DO BEM: Dave examina um paciente em um vilarejo nas Mentawai (Foto: SurfAid staff photos).

O RECONHECIMENTO e, consequentemente, o aumento de verba arrecadada resultou na expansão dos programas da SurfAid. Atualmente Nias é a região onde a ONG tem obtido grandes resultados, com quase 10 mil pessoas atendidas. A organização treinou onze parteiras da ilha, que visitam os vilarejos três vezes por semana. Neste ano, ainda não houve mortes maternas, e o número de fatalidades de crianças, por desnutrição ou doenças, reduziu-se em 75%. Mais de três mil aulas de culinária e de nutrição foram ministradas, para estimular uma dieta mais saudável. As vilas afetadas pelo tsunami, agora, têm água tratada, distribuídas em 409 instalações.

Esses resultados devem-se ao método que a SurfAid encontrou para sanar os graves problemas dos vilarejos remotos. Para este ano, a meta é ampliar a ação da Ong ainda mais, reforçar as ações que começaram em Sumba e Sumbawa, e alcançar 50 mil indonésios. “O princípio de ajudá-los a resolverem os próprios problemas torna nossa missão mais difícil”, observa Dave. “Mas realmente chega-se a uma solução de longo prazo, em vez de apenas aplicar curativos e mascarar o problema.”

Faz pouco tempo que Dave e sua equipe visitaram as vilas de Nias. Com a voz embargada, ele conta o que sentiu ao ver a paixão das mulheres treinadas por eles, empolgadas com tantos bebês bem alimentados e saudáveis, além da enorme redução do número de doenças. Sem hesitar, elas transmitem a sabedoria aos filhos e netos. “Quando você percebe que está deixando um legado duradouro… Nesses momentos, todo o sofrimento, a luta, o estresse para alcançá-lo simplesmente desaparecem.”

Um mar de problemas

Graves problemas enfrentados pelo arquipélago da Indonésia.

100

milhões

afetados pelo vírus da malária.

30%

da população

não têm acesso à água potável.

5

desastres naturais

assolaram o país desde 2004.

37%

das crianças

são subnutridas.

190

mortes maternas

a cada 100 mil partos.

Ondas humanitárias

As principais ONGs comandadas por surfistas

SurfAid

Reconhecida pela ONU, concentra-se em problemas de saúde em ilhas remotas das Mentawai, na Indonésia.

surfaid.org

Surfrider Foundation

A ONG internacional zela pela proteção dos oceanos, das ondas e das praias, com projetos e por meio de pressão e lobby com autoridades.

surfrider.org

Surfing4Peace

Criada pelo lendário Dorian Paskowitz, tem como foco principal aproximar, por meio do surf, árabes e judeus em Israel e Gaza.

surfing4peace.org

Waves for Water

Por financiamento coletivo, roda o mundo com o objetivo de providenciar água limpa em comunidades carentes.

wavesforwater.org


NA ONDA: O fundador do Surf Aid em um momento de folga em Bali, onde mora (Foto: Bob Barker).

Matéria originalmente publicada na Go Outside 116, de março de 2015.







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