A ciência do medo

Por Florence Williams

O QUE TE DÁ MEDO? Cair de bike a uma velocidade de 70 km/h? Tomar uma vaca cabulosa ao surfar em mar bravo? Encarar aquele halfpipe sinistro com seu skate? Ou se perder no mato durante uma tempestade animal? Cada um de nós tem algo que, lá no fundo, nos apavora. E nenhuma pessoa no mundo consegue nos instaurar mais medo que o pesquisador norte-americano Kevin LaBar. Ele cria realidades virtuais sombrias, capazes de fazer o coração acelerar, as mãos suarem, a barriga retorcer. Mas, depois, ele te cura. Por isso muitos o conhecem como Doutor Medo.

Kevin é professor do Centro de Neurociência Cognitiva da Universidade de Duke, na Carolina do Norte (EUA). Lá ele e sua equipe conduzem experimentos que simulam situações reais, por meio de um aparelho mirabolante que cria um mundo virtual com projeções, cheiros, movimentos e até meios de nos infligir dor. A geringonça se chama Dive (da sigla em inglês para Ambiente Virtual de Imersão da Duke), e é um dos poucos equipamentos desse tipo à disposição de estudiosos.

Entre suas várias funções, o Dive foi projetado para medir a tolerância ao estresse de cobaias humanas – geralmente estudantes de psicologia desprevenidos – a, por exemplo, um ataque de insetos, um bule de chá que não para de chiar, carros buzinando, cachorros latindo, um relógio tiquetaqueando alto. Há anos Kevin tem sujeitado seus voluntários a martírios que vão de encontros com predadores furiosos a provas de matemática treta. Tudo para entender melhor o medo – como o adquirimos, como nos recuperamos dele e se há algum jeito de acelerar o processo de vencê-lo.

O medo pode nos impedir de fazer as coisas que mais amamos e de amarmos as coisas que fazemos. Mas ele também pode, se tivermos sorte, nos ajudar a ter acesso a experiências de grande carga emocional. Minha ideia para esta reportagem era compreender melhor o medo no contexto dos esportes e das aventuras outdoor. Como os cientistas estão confirmando, correr atrás de aventuras não depende só de habilidade técnica, planejamento e do grupo certo de amigos. Depende também de uma região do cérebro de cerca de dois centímetros de diâmetro – a amígdala cerebelosa – e de como controlá-la.

Por causa do meu interesse nesse assunto, Kevin pensou em simular um ataque contra mim com cobras e aranhas. O problema, entretanto, é não tenho muito medo de cobras e aranhas, principalmente as falsas, assim como muitos dos voluntários de Kevin (fobias genuínas de qualquer tipo ocorrem em somente cerca de 8% das pessoas). Então, para deixar as animações virtuais mais assustadoras, Kevin acrescentou voltagem: agora os animais contam com uma picada de verdade, na forma de um choque elétrico aplicado no meu pulso esquerdo. Antes de eu entrar no Dive, Matt Fecteau, o gerente do laboratório e especialista em tecnologia, prende fios no meu braço que me conectam a uma caixa branca com botões e medidores.

“Está sentindo agora? E agora?”

Matt vai aumentando a voltagem. O choque deve ser desconfortável, mas não pode queimar a pele. Sinto um zunido desagradável. Aumentamos a voltagem até um pouco acima de 40 volts (um bom cortador de grama usa 40 volts), aplicados com uma amperagem constante. “A amperagem é o segredo”, explica Matt, ajustando o aparelho. “Se ficar muita alta, é mortal.” Mais uns ajustes são feitos, Matt mexe em alguns fios, quando sinto um choque forte – bem forte – e dou um grito. Todo mundo olha para mim. “Deve ter sido interferência elétrica”, diz alguém. Então acontece de novo. Mais um grito. Essa é a zona da dor. “É melhor afastarmos a máquina dos fios dos computadores.”

Se eu estava calma e confiante sobre o ataque aracnídeo, agora não estou mais. Quando Matt prende sensores na palma da minha mão para monitorar a quantidade de suor que produzo, já estou a meio caminho do topo do gráfico de estresse. Estou, nas palavras de Kevin, “pré-estressada”. O Dive fica sinistramente silencioso. A cabine parece um cinema 3D: a ação é projetada nas paredes, e você tem de usar uma espécie de tiara tecnológica que se parece com óculos de mergulho, mas com um giroscópio embutido, uma bússola magnética e um sensor de gravidade para acompanhar os movimentos da minha cabeça. Fico sentada esperando o show começar.

O chão começa a se mover, e então me vejo flutuando por uma floresta como se estivesse em uma prancha voadora. Acima de mim há um céu e a copa esverdeada das árvores. Se movo minha cabeça, meu novo mundo se move comigo. A tecnologia é incrível. Às vezes a animação fica mais lenta. Uma aranha do tamanho de uma caneca de café caminha sobre uma pedra ou sobe por um tronco perto da minha perna. Suas pernas são exageradamente longas e peludas, e ela se move com um angustiante som de tique-taque. De vez em quando, uma cobra enrolada do tamanho de um frisbee aparece e abre sua boca para me picar. É marrom, gorda e surge acompanhada de uma trilha sonora de chocalhos. É nessa hora que um pequeno choque me atinge no pulso, quase imperceptível, e fico esperando pelo pior. Sinto um incômodo de nervoso por antecipação. Isso dura cerca de sete ou oito minutos, então os choques param enquanto a imagem continua sendo projetada. A dor não volta, e logo tudo acaba.

ALGUNS PSICÓLOGOS ARGUMENTAM que o medo é a mais antiga de nossas emoções, existindo desde as primeiras formas de vida na Terra e até antecedendo nosso impulso de reprodução da espécie. Nossos cérebros são programados para o medo, a ponto de alguns participantes da pesquisa terem entrado em um estado hiper-alerta ao cheirar o suor de pessoas com medo. A principal razão de nos lembramos de qualquer coisa, afirmam os cientistas, é o medo. Acontecimentos que provocam emoções fortes, principalmente os assustadores, liberam cálcio no cérebro, que por sua vez codifica a informação.

O medo nos protege – ele mantinha nossos ancestrais vigilantes e os ajudava a evitar ameaças físicas. Mas o medo também pode nos dominar, impedindo-nos de dar nosso máximo e atingir nossos objetivos. A chamada “resposta de fuga, luta ou paralização” era útil na Era Pleistocena, mas não tanto hoje, quando nossos medos envolvem atividades menos letais como surfar por diversão ou falar em público. Atualmente, lidamos com o estresse e com a ansiedade mais do que com perigos reais de predadores. Tecnicamente falando, o termo “ansiedade” refere-se à expectativa de se machucar, enquanto o medo é o que acontece no momento em questão. Mas do ponto de vista fisiológico o estresse é semelhante ao medo, causando o mesmo aumento da pressão arterial e a mesma liberação de hormônios que nos deixam de prontidão para o combate. Nossos cérebros tratam todos os medos – desde fobias de queijo (sim, há pessoas com essa fobia) até estar no topo de uma pista de esqui – da mesma forma.

Quando se está nas garras do medo (socorro, gorgonzola!), nosso primitivo tronco cerebral passa a comandar nosso neocórtex solucionador de problemas, e nós ficamos idiotas. Nossa coordenação motora fina se deteriora, e nosso campo de visão se estreita. Psicólogos do esporte sabem que o medo pode nos sufocar, nos distrair e prejudicar nosso julgamento. Se você já tentou convencer alguém (ou a si mesmo) a entrar em um mar muito agitado ou a soltar o freio da bike em um downhill, sabe que nem sempre o medo salva sua pele. Às vezes, ele te serve de bandeja para o fracasso.

O medo serve a dois propósitos principais: encher seu corpo de adrenalina para lutar contra uma ameaça e marcar essa experiência no seu cérebro para que você a evite no futuro. De vez em quando ele troca os pés pelas mãos no primeiro caso, mas faz o segundo trabalho excepcionalmente bem. Um medo extremo pode nos assombrar por décadas. Cerca de 70% a 80% de nós irá experimentá-lo pelo menos uma vez na vida – como resultado de um acidente grave ou um crime, ou por ver alguém morrer de um jeito horrível, ou um desastre natural. Cerca de 8% das pessoas irão desenvolver transtorno de estresse pós-traumático, ou TEPT, que é essencialmente uma “ressaca” de medo das bravas.

Estima-se que cerca de 17% dos soldados norte-americanos que retornaram da guerra do Iraque e do Afeganistão sofreram algum tipo de estresse pós-traumático. Por outro lado, há evidências de que montanhistas e outros aventureiros experientes apresentam menor chance de desenvolver o transtorno. Isso acontece porque o cérebro de algumas pessoas é geneticamente mais resistente ao estresse, e são elas que costumam se sentir atraídas pelos esportes de aventura. O alpinista californiano Conrad Anker, por exemplo, já testemunhou avalanches, carregou o corpo sem vida de amigos montanha abaixo e sofreu privações físicas extremas. Ainda assim, as montanhas continuam chamando por ele. “Tenho menos medo do que antigamente. Acho que isso se deve a minha experiência e ao jeito como estou ‘programado’ para enfrentar esses perrengues. Não sou muito normal”, diz Conrad, de 51 anos.

Cérebros como o de Conrad Anker parecem processar o medo de modo menos intenso, e se recuperam dele mais rapidamente. Mas, para muitos outros, o TEPT pode causar alterações de humor, tiques nervosos, pesadelos, agressividade, depressão, abuso de substâncias químicas e até suicídio. “Precisamos entender como a memória funciona em cérebros saudáveis para compreender melhor como ela pode ser alterada nesses transtornos”, explica Kevin.

Até mesmo cérebros saudáveis mostram uma ampla gama de respostas ao medo. As mulheres tendem a sofrer mais com a ansiedade e têm uma maior propensão para desenvolver TEPT, mas os cientistas não têm certeza dos motivos – pode ser também que os homens sejam socialmente condicionados a esconder isso. A maioria das pessoas, diferentemente de Conrad, parece ficar com mais medo de certas atividades conforme envelhecem. Quando ficam mais velhas, tanto homens como mulheres produzem menos testosterona, um estimulante natural de coragem, e suas habilidades e reflexos declinam. Independentemente disso, o medo não é uma reposta fixa, conforme diz Kevin. Podemos, ele acredita, aprender a controlá-lo.

NO LABORATÓRIO, SAIO DO EXPERIMENTO de víboras e dou uma olhada no meu gráfico. Parece um vale montanhoso, cheio de altos e baixos. “Você é uma boa cobaia de testes. Você se assusta bem”, diz Kevin, que cresceu em cidades grandes e prefere uma academia às aventuras outdoor, o que pode explicar seu apreço pela tecnologia como uma janela para entender a alma. “Seu corpo respondeu à presença de aranhas e cobras, mas mostrou uma resposta maior quando a imagem da cobra estava ligada aos choques.” Kevin aponta para uma forte elevação no gráfico. “Os choques começaram aqui. As curvas sumiram quando os choques pararam. Clássico.”

Kevin me assegura que ao fim da sessão 3D, meu cérebro já havia aprendido a desconsiderar a ameaça. Essa recuperação é chamada de terapia de extinção do medo ou terapia de exposição. É a base para os métodos mais eficientes para o tratamento de transtornos como as fobias: mostre à pessoa fóbica cobras amigáveis até que ela se sinta confortável, até mesmo pronta para segurá-las. A ideia por trás disso é que você essencialmente cria novas e melhores memórias que competem com as antigas e vencem as mais assustadoras. O mais legal a respeito da realidade virtual, diz Kevin, é que você pode mostrar qualquer tipo de gatilho de medo em qualquer contexto. Cobras na mata; cobras no escritório; cobras na cama (Freud explica). Os estudos de Kevin mostram que a terapia de extinção é mais eficaz quando realizada em ambientes variados.

A estratégia de criar situações seguras de exposição ao medo também pode funcionar fora do consultório ou do laboratório. É como a maioria de nós aprende a encarar riscos em esportes ao longo do tempo: um pouco de cada vez, ganhando assim habilidade e confiança. Na ponta extrema desse iceberg, está o base jumper norte-americano Jeb Corliss, cujas recentes façanhas incluem voar a 198 km/h com uma roupa de wingsuit (aqueles macacões com asas tipo de morcego que flutuam no ar) por entre duas paredes de um cânion de apenas oito metros de largura.

“Eu passei a minha vida inteira confrontando o medo”, diz Jeb, de 38 anos. “Sou obcecado por ele desde criança. Quando alguma coisa me aterrorizava, me sentia compelido a confrontá-la. Eu tinha medo de cobras, por isso comecei a pegar cobras – primeiro cobrinhas não peçonhentas, depois cobras maiores e cascavéis. Então fiquei obcecado por tubarões, por isso comecei a mergulhar. Não queria que esses medos tivessem poder sobre mim.”

Então, na África do Sul em 2012, Jeb saltou de um penhasco, errou o alvo e bateu em um paredão rochoso a 190 km/h. Quebrou a fíbula esquerda e os dois tornozelos, rompeu o ligamento anterior cruzado, ficou com cortes no corpo todo e sofreu insuficiência renal. Após uns meses e alguns enxertos de pele, ele estava de volta ao wingsuit.

Ok, Jeb é um ponto meio fora da curva. A maioria de nós sofre após um acidente grave. Infelizmente os métodos de exposição dos estudiosos nem sempre funcionam, em especial para medos violentos ou complexos. O cérebro é um órgão de 1,5 quilo feito para proteger nossa sobrevivência. Ele não quer necessariamente que você se sinta confortável ao fazer coisas perigosas, ele quer que você vá para casa e faça doces. “Mesmo com sessões regulares de terapia de extinção, pode haver um retorno do medo”, conta Marie Monfils, professora de psicologia da Universidade do Texas em Austin. Isso ocorre porque a memória do trauma original ainda está enraizada no hipocampo.

Essa tem sido a experiência para o surfista de ondas grandes Greg Long, que quase morreu ao surfar uma onda do tamanho de um prédio de três andares em Cortes Bank, no sul da Califórnia, em 2012. Greg tomou uma vaca gigantesca e foi forçado a ficar submerso embaixo de três ondas enormes até que perdeu a consciência. Um piloto de jet ski finalmente o tirou da água. Retornar ao mar não foi fácil. “Eu voltei menos de um mês depois”, conta Greg, de 31 anos. “Foi a coisa mais aterrorizante que já fiz. Senti medo e pânico e tive pensamentos com os quais não queria lidar. Ainda é difícil para mim voltar para as ondas grandes. Para superar esses medos, é preciso ir além das emoções e respeitar seu processo de recuperação. Às vezes essas emoções estão presentes, às vezes não. Gosto de pensar que fica mais fácil quanto mais pratico meu surf, mas sei que vou carregar esses medos comigo para sempre.”

Como Greg está descobrindo, a antecipação de uma ameaça pode ser tão ruim quanto a ameaça em si. Como ele e Kevin LaBar descrevem, a memória está colada à emoção sobre coisas das quais devemos nos lembrar. É por isso que memórias de medo fazem nossa palma da mão suar. Por isso a principal ideia em uma série de técnicas de domínio do medo é separar a memória da emoção. Para descrever isso tudo de um jeito mais zen, não é o dragão que nos assusta, é nossa resposta ao dragão. O truque, então, é domar a nós mesmos.

Nossos dragões viajam até o cérebro por meio de uma rota sensorial, tal como o tálamo ótico, explica Kevin. Em 100 milissegundos, antes mesmo de nosso cérebro consciente se dar conta, o sinal de ameaça corre até a amígdala cerebelosa, nosso pequeno, mas poderoso centro das emoções. É a amígdala que aciona o alarme em nosso sistema nervoso autônomo para acelerar os batimentos cardíacos, o que resulta em respiração acelerada, contração das entranhas e aquela sensação de frio quando o sangue sai das camadas superficiais para ir para os músculos. A essa altura, a informação já voltou ao nosso neocórtex por meio de neurotransmissores como o cortisol, a adrenalina e a dopamina.

Se a amígdala é nossa dona-de-casa histérica interna, o altamente evoluído neocórtex é nosso negociador estilo “vamos ser razoáveis”. Ocorre entre eles uma certa disputa de poder. Em algumas pessoas, a amígdala tende a ficar no controle, enquanto em outras o processo de tomada de decisões rápidas e estratégicas toma as rédeas. Parte dessa tendência é geneticamente herdada, mas também está sujeita a manipulações por meio de treinamento, força de vontade e uma boa dose de remédios como o Xanax ou propranolol, um beta-bloqueador que evita que adrenalina se ligue aos receptores das células. O propranolol também é conhecido como uma droga para “medo do palco”: um cantor de ópera uma vez me deu um para minha primeira palestra sobre um livro meu. Ao reduzir os batimentos cardíacos, o propranolol te deixa calmo, relaxado e controlado. Mas, infelizmente, ele não te transforma em Winston Churchill, um dos maiores oradores que a história já conheceu.

EM UM MUNDO PERFEITO, nós reagiríamos da melhor forma possível ao medo, usando-o para avaliar os riscos, calcular nossas melhores opções e retornar rapidamente à condição normal. Quando o guia norte-americano de esqui Allen O’Bannon se deparou com um pedaço de neve podre durante uma escalada no gelo na Cordilheira Wind River, no estado do Wyoming, em 1995, ele se viu caindo 100 metros montanha abaixo. Naquela hora, o tempo desacelerou. Veio à sua mente uma conversa com outro escalador de gelo que sobrevivera a uma queda. Esse cara havia dito a Allen que ele se enrolara como uma bola para impedir que seus crampons e seu piquete de gelo batessem na encosta e piorassem o impacto. Allen encolheu os braços e pernas até que a corda finalmente deteve sua queda. Hoje com 50 ano, ele trabalha para uma empresa que ajuda na organização e logística de expedições científicas e esportivas para lugares remotos como o Ártico e altas montanhas.

Em uma situação de crise, explica Allen, algumas pessoas entram em pânico, outras conseguem manter a calma. A grande maioria, contudo, entra no que ele chama de “estado desorientado”, no qual simplesmente não fazem nada para retomar o controle da situação. “No meu trabalho dando consultoria a essas expedições, insisto na importância de treinar, fazer simulações, para estar preparado para diferentes situações”, conta. “A que distância você vai conseguir pegar seu spray repelente de ursos em tempo? Como você vai reagir quando cair em um rio? Se você não puder treinar, visualize a cena. Então sua resposta ao perigo fica mais automática.”

Quando Greg Long não conseguiu respirar ao ser engolido pelas ondas, ele manteve a calma e, lentamente, tentou nadar até a superfície. Ele havia treinado por anos a prender a respiração além da zona de conforto e sabia qual era a sensação. “Não teve pânico, nem dúvidas, só pensei ‘isso é o que preciso fazer se quiser sobreviver’”, conta. “Não tive pensamentos negativos ou desperdicei energia. Eu estava totalmente focado.”

Às vezes o medo pode fornecer o foco de que precisamos. As pessoas que se sentem confortáveis em desafiar seus limites sabem como usá-lo em seu benefício. “O medo é uma grande energia”, diz Jaimal Yogis, surfista e autor do livro The Fear Project, que analisa por que o medo nos paralisa. O medo, diz ele, é mediado por sistemas de excitação similares aos usados para o sexo e o exercício físico. É por isso que temos uma sensação boa quando o experimentamos no contexto de um filme de terror ou em uma corredeira de rio não muito treta. Quando nosso sistema nervoso está excitado, mas não em alerta total, estamos prestando atenção. Nossos sentidos são intensificados. Nossa memória operacional aumenta. Nós nos sentimos vivos. O lado bom do medo é o flow, aquele delicioso estado no qual o tempo se desfaz e você está completamente engajado no momento presente.

Sian Beilock, neurocientista da Universidade de Chicago, estudou o que acontece com voluntários ao realizarem provas de matemática com tempo marcado. A maioria das pessoas sente ansiedade em relação à matemática. Seus níveis de cortisol se elevam, e sua tristeza e falta de autoconfiança acabam inibindo sua memória operacional, fazendo com que tenham um desempenho pior do que teriam. Mas uma coisa interessante acontece nas pessoas que têm confiança em suas habilidades matemáticas: o cortisol na verdade as deixa mais focadas.

Isso quer dizer que estamos perdidos se tivermos medo de matemática? Não, diz Sian. Podemos aprender a desligar os pensamentos negativos que drenam nossa preciosa energia cognitiva. Em outras palavras, você pode se transformar de alguém que congela quando está com medo em alguém que é impelido por ele a seguir adiante. Mas é preciso se esforçar para evoluir, diz Sian. “As pessoas podem treinar para isso. Você pode cantar uma música, se distrair no momento. Ou pensar no resultado desejado em vez de focar nos seus joelhos tremendo. Tenha um mantra, uma palavra que te ajude a superar o medo e enfrentar uma situação.”

A esquiadora norte-americana Kaya Turski diz que, se ela pode se controlar, qualquer um pode. “Eu sou uma pessoa muito ansiosa, umas das atletas mais nervosas que existem”, conta esta medalhista de ouro do X Games. “Tenho a tendência a pensar demais nas coisas. Quando vou para uma competição, geralmente sinto como se o destino do mundo estivesse em jogo.” Depois que Kaya detonou o ligamento cruzado anterior do joelho pela terceira vez seis meses antes da Olimpíada de Inverno de Sochi, que rolaram neste ano, ela sabia que sua recuperação seria tão mental quanto física. Devido a suas ansiedades, a esquiadora já tinha começado a trabalhar com Michael Gervais, um psicólogo dos esportes de Los Angeles. Foi ele que ajudou o paraquedista e base jumper austríaco Felix Baumgartner a superar seus ataques de pânico antes de despencar do espaço em 2012, numa queda livre de 39 quilômetros na qual rompeu a barreira do som.

O ponto crucial do trabalho de Michael e Kaya tem sido o treinamento de autoconsciência. “Eu medito todos os dias”, conta a esquiadora. “Quando a mente divaga é que o medo aparece. É preciso focar no agora. Ainda não aperfeiçoei minhas técnicas de meditação, mas a prática mudou minha vida 100%.”

O trabalho foi central para seu retorno ao esporte, ajudando-a ganhar sua oitava medalha de ouro em X Games. Mas não pôde evitar que ela pegasse um forte resfriado e caísse duas vezes em Sochi. Conquistou um insatisfatório 19º lugar. “Essa experiência me abalou mais do que qualquer outra”, diz Kaya. “Foi um despertar para a realidade. As coisas nem sempre saem do jeito que você quer. Então voltei a meditar. A vida não é tão ruim. Você precisa encontrar sua luz. Aprendi que posso sobreviver a algumas situações.”

POUCOS PARECEM ter dominado o medo tão completamente quanto os escaladores norte-americanos Alex Honnold e Dean Potter. Ambos realizam feitos inimaginavelmente aterrorizantes a centenas de metros do chão, geralmente sem qualquer equipamento de segurança.

“Não é que eu não fique com medo”, diz Alex, de 29 anos, conhecido por suas escaladas freesolo (sem qualquer corda para segurá-lo em caso de queda). “Sou apenas mais racional em relação a situações que geram medo. Se você está completamente no controle das variáveis em jogo, não há nada a temer.” Mas essa atitude levou tempo para ser desenvolvida com clareza. “Acredito que o domínio do medo é uma habilidade”, conta. “Pode ser que eu tenha mais habilidade em escaladas freesolo. E hoje fico menos nervoso com as coisas.”

A mãe de Dean Potter era professora de yoga. Essa consciência da importância da calma da mente foi útil em 2012, quando ele atravessou um slackline de quase 40 metros de comprimento, preso a mais de um quilômetro do chão, na China. Isso sem usar nenhum tipo de equipo para protegê-lo em caso de queda. “Não sou tão bom em ficar sentado quietinho no chão e meditar”, conta Dean. “Uso essas habilidades muito melhor quando estou em movimento. Sempre que tenho dificuldades, foco na respiração, em respirar relaxadamente. Se sinto uma combinação de calma e medo, acesso estados mentais muito além da consciência normal. É por isso que escolho fazer coisas assustadoras.”

Seja lá quais forem os poderes de Alex Honnold e Dean Potter, os militares adorariam poder engarrafá-los, assim como um monte de treinadores de atletas profissionais. Embora o exército prefira uma pílula à posição de lótus, as pesquisas científicas sobre a capacidade de a meditação acalmar os nervos é impressionante, explica Martin Paulus, diretor do Laureate Institute for Brain Research, de Oklahoma (EUA), especializado em estudos do cérebro. O treinamento dos fuzileiros navais, por exemplo, já inclui uma “respiração de combate” para ser usada em situações de estresse.

Às vezes, simplesmente falar ou escrever sobre o medo reduz seu poder sobre nós, diz Matt Lieberman, neurocientista da Universidade da Califórnia. Seu laboratório examinou um grupo de voluntários que tem pavor de aranhas e os fez passar por terapias de exposição (só que com artrópodes verdadeiros). Os pesquisadores disseram a metade do grupo que falasse o quão aterrorizado estava. Matt chama esse processo de “rotular o medo”. Não surpreendeu ninguém quando esses foram os pacientes que tiveram mais sucesso na superação do medo, os que “puderam eventualmente por a mão na gaiola e acariciar as aranhas com cotonetes”, conta Matt. Segundo o pesquisador, articular seus medos em voz alta ativa uma parte diferente do cérebro, o córtex ventrolateral pré-frontal, que desvia esse sentimento do tronco cerebral. Os participantes do experimento conseguiram se manter mais racionais, literalmente, já que a racionalidade acontece fora da amígdala cerebelosa.

Kevin e outros estudiosos também estão tentando ajudar o córtex a retomar o controle no lugar da amígdala, o que tem implicações no tratamento de TEPT. Lembre-se que na terapia de exposição, duas memórias estão competindo por dominância: a memória traumática e a memória segura. Se você pode literalmente cutucar neurônios em certas partes do córtex – por exemplo, a zona mediana ventral, associada com regulação emocional –, então pode ajudar a memória segura a ganhar a disputa. Baseado em estudos em ratos, uma maneira de fazer isso é por meio de eletrodos implantados no cérebro ou por estímulo transcraniano magnético, já usados ocasionalmente para tratar a depressão grave.

Dá uma trabalheira suprimir memórias ruins, mas os cientistas acreditam que em breve conseguirão descobrir atalhos, com a ajuda de drogas, tecnologia, ou uma combinação de diferentes abordagens. Mas não seria melhor apagar a má memória – ou substituí-la completamente?

A IDEIA DE QUE PODEMOS dominar nossos medos é atraente. Mas, como os cientistas estão aprendendo, a mente, e não só o cérebro, é biológica também. As próprias memórias são fixadas nos neurônios por meio de cálcio e proteínas, e todo o processo é mediado por um neurotransmissor chamado glutamato. As memórias existem em lugares específicos de nosso hipocampo, como livros em uma biblioteca, de onde podem ser recuperadas. Os cientistas costumavam supor que essas memórias estáticas ficavam lá para sempre. Porém pesquisas recentes sugerem que toda vez que você checa essas memórias, elas têm o potencial de serem atualizadas ou alteradas.

De acordo com a psicóloga Marie Monfils, da Universidade do Texas, o ato de recuperar as memórias parece ativar certas proteínas e reações químicas, o ponto de a própria memória fica brevemente desestabilizada. Marie estuda esse efeito em ratos que, à semelhança do que aconteceu comigo, foram condicionados com eletrochoques a reagir com medo a um sinal (no caso deles, um tom sonoro em vez de uma aranha). Se os ratos forem expostos a sons inofensivos por até seis horas depois do último susto, a memória perde sua conexão com o medo. Marie acredita que, se você cronometrar a terapia de exposição com essa janela de tempo, é possível “reconsolidar” a memória de uma maneira positiva.

“Nós podemos atualizar a memória e evitar o retorno do medo”, diz. Isso é promissor para humanos com TEPT, assim como as intervenções com drogas beta-bloqueadoras durante a reconsolidação de memória. Mas ainda estamos no amanhecer dessas descobertas científicas. “Seria irresponsável sugerir que já se tratam de técnicas reais e efetivas. Neste momento, estamos ainda numa fase de ‘ficção científica’”, diz Elizabeth Phelps, professora de neurociência na Universidade de Nova York e colaboradora nas pesquisas de Marie.

É difícil pensar nisso sem se imaginar em filmes como A Identidade Bourne, pois se tratam de implicações profundas e um tanto assustadoras. Sem suas memórias originais, você ainda é você? Estamos dispostos a sacrificar um pouco de nossas identidades em nome de um melhor desempenho esportivo?

Pessoalmente, não estou pronta para perder todos os meus medos. Eu gosto desse espaço que existe entre o medo e a coragem. É nesse ponto que montanhas são escaladas e corredeiras são enfrentadas e os heróis ainda voltam para casa. Acima de tudo, é nesse ponto onde ocorrem os grandes atos de criatividade – e, com eles, histórias sobre medo e coragem. Ao contar essas histórias, e ao ouvi-las, nós celebramos a fusão entre nossos cérebros primitivos e modernos – que é onde, no final das contas, nós nos tornamos humanos.

Conselhos de pró

Conversamos com atletas outdoor que conhecem bem o medo. Aqui eles nos contam como aprenderam a ouvi-lo, quando devem ignorá-lo e de que maneira manter o foco e a calma diante da paúra.

Prepare-se para o pior.

CONRAD ANKER, 51, MONTANHISTA

Por que não fico com transtorno de estresse pós-traumático? Acho que na guerra, por exemplo, você não está lá por vontade própria. Nas montanhas, conheço as artimanhas da morte. De certa forma, isso me cura.

Eu li um livro uma vez sobre sobreviventes, pessoas que estiveram envolvidas em missões de guerras e bombardeios. Quando uma delas visualizava antes a pior hipótese possível que poderia ocorrer, tudo saía melhor. Quando estou escalando, faço isso: se eu não usar direito determinado equipamento, posso falhar; se eu armar minha tenda em uma zona de avalanche, talvez eu morra. O lance é como você reage quando algo dá errado. Se eu estou andando perto de um lugar exposto na montanha e um pedaço enorme de gelo se solta, para que lado eu vou? Prepare-se para as piores situações. Isso te dará resistência para enfrentar o caos.

Lembre-se de sua paixão.

JEB CORLISS, 38, BASE JUMPER

O medo é o fator motivador da minha vida. Eu já estive em situações nas quais tremia incontrolavelmente, tinha vontade de vomitar, chorar. E ainda assim me jogo em minhas aventuras, mesmo que seja uma experiência horrível. Você nunca supera o medo de verdade. Mas sempre quis entendê-lo e chegar do outro lado desse sentimento. E, geralmente, do outro lado está a vida.

Eu não corro atrás da morte. Corro atrás da vida. Não vou deixar o medo me impedir de fazer as coisas que amo. Na vida, você precisa descobrir quem é, qual sua paixão, a razão pela qual você acorda de manhã. Aí, então, você precisa ter a coragem para se lançar nessa paixão. Todos nós temos sonhos. Só que os meus são os pesadelos da maioria das pessoas.

Permaneça em sua zona de habilidade técnica.

DEAN POTTER, 42, ESCALADOR, SLACKLINER, BASE JUMPER

Eu costumava ter problemas com lugares altos. Sentia-me frustrado, perdia o controle e chorava, era avassalador. Mas me mantive no caminho do que eu amava e queria para mim. Agora consigo ficar inteiro no momento presente.

Você não consegue chegar ao seu estado mais elevado se estiver nervoso. Você precisa relaxar ou fará besteira. O segredo é manter a calma. Quando caminho para um penhasco para saltar de base jump, eu já estou me preparando, tentando respirar, imaginando toda a situação que está por vir. Eu desenho imagens em minha mente, tomo todos os passos necessários. Não farei nada que exceda o limite das minhas habilidades. Caso contrário, não sigo em frente. No ano passado, mais de 23 pessoas morreram voando de wingsuit – cerca de 10% do total de praticantes sérios dessa modalidade. Eu parei um pouco para pensar e para me acostumar com essa situação. Saltar de wingsuit é mesmo seguro, ou eu estou apenas sendo sortudo? Nesse tempo, fui escalar montanhas em vez de saltar. Eu precisava recarregar minhas baterias. Se você se assusta demais, pode acabar precisando de anos para voltar ao ponto onde estava. É uma grande lição.

Esteja sempre presente no aqui e agora.

KAYA TURSKI, 26, ESQUIADORA

Não conheço nenhum atleta que se livre do medo totalmente. Nem sei se eu quero, já que o medo também ajuda a nos manter seguros. Forçar a si mesmo a um desafio tem muito a ver com encontrar o equilíbrio entre o que você pode fazer e o que sua intuição está te dizendo, que é para ser cuidadoso.

Em 2011, comecei a trabalhar com o psicólogo dos esportes Michael Gervais. Uma das primeiras coisas que ele me disse foi: “Nossa, você é muito ansiosa”. Agora medito todos os dias. É muito útil principalmente na largada de uma prova. É um momento no qual, se você bobear, fica fácil pensar sobre patrocinadores, fracassos e lesões do passado. O truque é trazer a si mesmo para o presente. Quando você se sente assustado ou ansioso, é porque está preocupado com o que vai acontecer. Se estou vendo a neve cair, se estou ouvindo passarinhos, não existem problemas, pois não existe o medo.

Respeite seu processo de recuperação.

GREG LONG, 31, SURFISTA

Eu voltei a surfar menos de um mês depois de quase me afogar, em 2012. Ainda amo o surf de grandes ondas, mas sinto medo todas as vezes que enfrento mares gigantes. Você precisar ter um desejo enorme e uma chama interna profunda para se desafiar assim, e não tenho essas coisas como antigamente. É nesse ponto que eu me encontro agora.

Uma das razões pelas quais surfo ondas grandes é para aprender a controlar minha mente. Dá uma sensação de superação da adversidade e de conquista de objetivos. Toda vez que me coloquei em meio a grandes ondas, essas emoções estavam lá. Você precisa aceitá-las e saber usá-las. Agora sou mais seletivo quando surfo. Se você não está sentindo essa chama, se ela não está ressoando com você, se você não está se divertindo de verdade, então precisa repensar seus objetivos.

Respire.

ALEX HONNOLD, 29, ESCALADOR FREESOLO

Se você não está se desafiando, não vai evoluir. As pessoas usam a palavra medo para se referir a um enorme espectro de coisas. Se você tem medo porque está meio inseguro, esse tipo de medo é uma coisa boa – ele significa que você está forçando seus limites. Se você está realmente em perigo, aí já é outra coisa. Nesse caso, você precise avaliar a situação e ver se pode mesmo encará-la.

Já caí um monte de vezes. Posteriormente essas quedas tornaram mais fácil eu controlar meus medos. A parte racional do meu cérebro pode reconhecer: “Ei, você está entrando em pânico”. Quando sua visão se estreita, você fica todo agitado. Então me centro de novo. Uma respirada profunda é a melhor maneira de isso acontecer para mim.







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