Por Bruno Romano
QUANDO O NORTE-AMERICANO Gary Fisher decidiu colocar marchas leves e freios de moto em bicicletas velhas, todos acharam que o cara tinha pirado. No fundo de alguma garagem da Califórnia (EUA), Gary montou este “Frankenstein” chamado klunker, algo como “lata velha”. Na verdade, a bike pioneira, feita em 1974, era bem melhor do que isso. Mais ágil, versátil e resistente do que as demais até então fabricadas para se andar na cidade, o modelo se tornou o mais divertido para toda a galera que decidiu passar o verão pedalando nas montanhas californianas. A klunker fez estrondoso sucesso, e não demorou muito para Gary ser reconhecido como um legítimo precursor do mountain bike.
Mas a fama de “doidão” só o abandonou anos depois, quando o mountain bike se consolidou na cena outdoor. A epopeia une ingredientes inusitados como o boicote norte-americano às Olimpíadas de 1980 em Moscou, o inventor de Star Wars, alguns anos de estrada seguindo uma banda de rock’n’roll e um corte de cabelo negado por Gary. Para explicar bem a história, ninguém melhor do que o próprio biker, que visitou o Brasil no fim de outubro, a convite da Trek Bicycles. Entre um pedal na ultramaratona Brasil Ride pela Chapada Diamantina, na Bahia, e um rolê pelas novas ciclovias da cidade de São Paulo, o garoto de 64 anos passou a limpo com a Go Outside a trajetória do esporte que ele ajudou a criar.
GO OUTSIDE: Dizem que você inventou o mountain bike. É verdade?
GARY FISHER: Inventou é uma palavra forte. Quando as bicicletas foram inventadas, não havia estradas pavimentadas, então todo mundo já pedalava na terra. O que eu fiz foi criar a expressão, com minha primeira empresa, a Mountain Bikes, e promovê-la mundo a fora.
E como surgiu a Mountain Bikes?
Eu já tinha feito minha primeira klunker em setembro de 1974, mas ainda era apenas um ciclista de estrada. Em 1979, eu estava no centro de treinamento olímpico dos Estados Unidos quando o presidente Jimmy Carter anunciou o boicote dos Jogos de 1980 [na União Soviética, em meio a Guerra Fria]. Percebi que nunca mais iria a uma Olimpíada. E aí decidi criar a empresa. O nome que surgiu na minha cabeça foi Mountain Bikes e eu fiz dela um negócio sério. Foi isso o que eu realmente inventei.
Foi difícil convencer as pessoas e a própria indústria do que seria o mountain bike?
Nosso primeiro tiro certeiro foi no New York Bike Show, em 1981. Eu e meu parceiro Charlie Kelly [ciclista e sócio da Mountain Bikes] fizemos uma apresentação realmente incrível, mostrando a cena klunker da Califórnia. George Lucas [diretor da saga Star Wars] era amigo do Charlie e nos ajudava nessas apresentações. Logo depois da feira, fui para o Japão ensinar a galera de lá a fazer as partes da bike – eles adoraram nossa ideia. Quando as pessoas viram mais gente entrando no mercado, decidiram experimentar o esporte e aí a moda pegou de vez.
Antes de você virar esse homem de negócios, como experimentou o mountain bike?
Eu tinha uns 16 anos e meus amigos me falaram: “Vem dar uma olhada nisso aqui”. Eles pegavam as bikes mais velhas da cidade e as levavam para cima da montanha e depois desciam montados nelas. Era muito divertido, mas tinha um problema: você passava 80% do tempo fora da bike. Eu já pedalava de ciclocross (modalidade que mistura bikes de estrada e circuitos de terra, lama e areia), então para mim era óbvio que aquelas bikes precisavam de mais marchas e bons freios. Foi aí que fiz a klunker. Reverti o passeio para 80% de tempo pedalando. Comecei a montar bikes para meus amigos, tudo com coisa antiga. Não era difícil achar essas sucatas, pois o Charlie vivia viajando como roadie de uma banda. Ele chegava às cidades e perguntava: “Onde é a loja de bike mais velha daqui?”, e dali vinha minha matéria-prima.
Como era a reação das pessoas com as primeiras klunkers?
Algumas viam nossas bikes e falavam: “Nossa, essa é a coisa mais estúpida que eu já vi”. Outras diziam “Uau! Eu quero uma para mim!”. Também foi incrível perceber, desde o começo, que o mountain bike é um esporte que todo mundo poderia praticar.
Pode dividir uma boa história dos velhos tempos?
Todo pedal era uma boa história, você tá brincando? (risos). Aí vai uma, sobre uma galera durona em Crested Butte, no Colorado (EUA). Um belo dia uns caras de Aspen atravessaram de moto a pesada trilha de Pearl Pass e estacionaram na frente de um restaurante local chamado The Grubsteak. Os caras de Crested não curtiram e, só para mostrar que eram “homens de verdade”, voltaram pela Pearl Pass de bike (velharias, com uma marcha só) e as pararam no lugar de encontro dos motoqueiros. Os caras não eram atletas, treinavam bebendo cerveja e a cada quilômetro alguém vomitava. Entre eles estavam Don e Steve Cook [hoje no Hall da Fama doMTB] e Mike Rust. O Rust tinha uma mente brilhante e nunca ficou com medo de inventar coisas para bikes. Ele me influenciou e, por isso, sou muito grato a esse cara.
É verdade que você já foi expulso do seu time de ciclismo por um corte de cabelo?
É verdade, eu fui expulso pela federação de ciclismo. Um cara me disse: “Gary, eu gosto muito de você, mas agora vai ter que cortar esse seu cabelo”. É lógico que eu não cortei. Isso foi em 1966, na época que eu conheci a banda Grateful Dad. Vivi com eles durante cinco anos, cheguei a fazer shows de bikes durante as turnês. Foi uma época incrível, mas ficou insano demais para mim. Muita droga, muita loucura. Aí eu pensei: “Esquece, preciso voltar para a bike”.
Foi aí que mergulhou de vez no mountain bike?
Foi. Cada pedalada era uma aventura. Nós tínhamos na mão a chave da diversão ao ar livre. Um dia, Charlie, eu e mais um amigo chamado Fred dividimos a mesma bike, minha primeira klunker. Enquanto um pedalava, os outros dois corriam que nem loucos. Não tinha o que fazer, pois só existia uma mountain bike no mundo (risos). E esse foi o primeiro e inesquecível rolê de MTB da vida de cada um de nós três.
Costumam chamar você de louco naquela época. Isso já mudou?
Não me chamam mais de louco. Eu tive tantas ideias malucas que atingiram sucesso que nem teria como ser ainda chamado assim. Nos últimos 50 anos criei grande parte das coisas que estão aí, pois sempre trabalhei bem perto dos fabricantes de acessórios e peças. Descobri lá atrás que eu nunca conseguiria fazer nada sozinho.
Com o mountain bike em evidência, muita coisa mudou?
Mudou completamente. Agora temos muita gente boa fazendo bikes. Nos anos 70 eram apenas três tipos. Hoje, a tecnologia da Nasa e da Fórmula 1 está nas bikes. Eu amo criar coisas e vou continuar fazendo isso, mas meu grande objetivo agora é mudar o local onde pedalamos. Estão sendo construídas trilhas incríveis ao ar livre. São milhares de quilômetros desenhados por mountain bikers para mountain bikers. Os caras viraram artistas e essas são pistas divertidas de verdade. Por outro lado, temos as cidades, os subúrbios. Penso muito na bike para transporte e saúde. Já descobrimos que a vida sedentária está morta. E que as cidades estão paralisadas por causa dos congestionamentos de veículos. Por isso a bike lidera qualquer ideia de mudança dessa situação. Por que deixamos os carros tomarem conta de 100% das nossas ruas? Os carros nos matam e nos envenenam. Venho trabalhando com governos e pessoas em todo o mundo para mudar isso.
Tem visto melhoras?
As coisas estão mudando. A nova geração, que não tem grana para um carro, vai para a garagem, pega a bike e declara para ela: “Você nunca mentiu para mim”. Grandes montadores acham que quando esse garoto ganhar dinheiro vai comprar um carro, mas ele não vai. O carro é estúpido. Esses jovens estão ajudando a rejuvenescer a mentalidade dos centros urbanos.
Como você tem visto o despertar desses grandes centros urbanos para a importância da bike?
Aparecem ciclovias na frente de comércios e os donos ficam malucos: “Meu deus, cadê minha vagas de carro? Meus clientes vão sumir!”. Em Nova York eles já provaram que, onde foram colocadas vias de bike, os negócios cresceram 50%. Eu estou empolgado, pois a mudança está acontecendo e veio para ficar. Claro que tem gente que é contra, principalmente quem é da minha geração, que não entende tudo isso.
Como você gosta de descrever a sensação de pedalar?
A bicicleta é a invenção mais feliz do mundo. Antes de qualquer coisa, a bike tem um efeito relaxante em mim. Depois de um dia difícil ela te acalma. Mas ela também pode te energizar. Ás vezes você fica naquela de: “Hum… Não sei se vou pedalar, será?”. E aí você sai e depois de dez minutos já está: “Opa, me sinto bem!”. Além disso, tem todo o lance de estar em equilíbrio por causa do movimento. Pedalar é uma linda dança.
Por que o mountain bike cresceu tão rápido, logo sendo reconhecido pela União Ciclística Internacional e entrando nos Jogos Olímpicos?
Porque é muito divertido! O esporte se espalhou pelo mundo inteiro e isso, na verdade, fazia parte da minha missão também. Grandes fabricantes se interessaram pela modalidade, e aí começaram a surgir histórias incríveis por trás dos rolês. Sempre foquei na qualidade, indo atrás das grandes mídias, trocando bikes por anúncios e usando bons fotógrafos e ciclistas nas fotos. Acho que isso ajudou no processo de divulgação e popularização do MTB.
Você se sente reconhecido por isso hoje?
É uma loucura, pois conheço todos do meio e os donos das principais marcas são meus amigos. Esse sentimento é ótimo. Mas sabe o que é melhor do que isso? Em qualquer lugar do mundo que eu estiver, as pessoas me mostram suas trilhas secretas (risos).
O que tem feito ultimamente no mundo da bike?
Ainda trabalho para a Trek Bicycles, principalmente com ideias. Nos últimos tempos foquei nas lojas. Geralmente elas têm um visual mais “antigão”, mas a internet está matando lojas ultrapassadas. É preciso fazer lugares onde há ajuda de qualidade e conhecimento disponível. As vendas online só vão aumentar, porém as lojas urbanas ainda têm espaço para crescer, desde que sejam divertidas e criativas.
Você já deu conta de inventar tudo o que tem na sua cabeça? Se pudesse criar qualquer coisa, o que seria?
Sabe o que seria? Um cobertor inteligente. Depois de um rolê, eu colocaria esse cobertor em cima da minha bicicleta. No dia seguinte, eu o tiraria e minha bike estaria totalmente limpa, lubrificada, com tudo ajustado e pronta para o próximo pedal (risos).
TEORIA DA EVOLUÇÃO
Momentos que marcaram a história do mountain bike
> Anos 1970
As primeiras klunkers eram bikes de estilo cruiser (praianas) adaptadas com pneus tipo balão, com uma (ou poucas) marcha(s) e garfo rígido.
> Anos 1980
O MTB começa a se popularizar, e marcas como a Specialized começam a produzir em massa modelos como o Stumpjumper.
> Anos 1990
Primeiras suspensões dianteiras e freios a disco são feitos em larga escala; o MTB se torna um esporte olímpico em Atlanta, 1996.
> Anos 2000
Bikes full suspension ganham adeptos. Nascem os modelos com rodas 29’ e, mais tarde, as 27.5.
Matéria originalmente publicada na Go Outside 114, de dezembro de 2014.
MESTRE DOS MAGOS: Gary em sua passagem
por São Paulo em outubro de 2014 (Foto: Paula Carpi)
ESTILO INCONFUNDÍVEL: O norte-americano posa com
um dos seus primeiros modelos de bike
LADEIRA ABAIXO: Gary desce com uma klunker uma
piramba na Califórnia no fim da década de 1970
(Foto: Divulgação)
FORÇA DA MENTE: O ex-competidor de ciclismo de
estrada vibra em um rolê nos primórdios do mountain
bike (Foto: DIvulgação)
NA ATIVA: Aos 64 anos, Gary encarou um pedal na
Chapada Diamantina durante a Brasil Ride 2014
(Foto: Sportograf/Brasil Ride)
SENHOR DAS MAGRELAS: O excêntrico biker em visita ao Brasil,
em 2014 (Foto: Paula Carpi)