Por Bruno Romano
A VIDA DE JEREMY MCGHEE daria um filme campeão de bilheteria. O roteiro envolvente seria rodado na Califórnia, contando a história de um surfista de alma, salva-vidas de profissão e fera do snowboard. A trama mudaria de rumo com um acidente trágico, brigas de família e um irmão viciado em metanfetamina. O protagonista acabaria paraplégico e sem teto. Depois de tudo, conseguiria dar a volta por cima para reescrever seu destino e reinventar os limites do esporte adaptado. Talvez a vida de Jeremy acabe mesmo em Hollywood, mas por enquanto ela é bem mais crua, intensa, real e inspiradora.
É melhor começar essa história pelo fim: Jeremy tem hoje 38 anos, é de carne e osso, ainda que pareça dotado de uma força sobrenatural, e depende de uma cadeira de rodas para se locomover, mesmo que ele insista em deixá-la de lado para quebrar diversas barreiras no mundo dos esportes outdoor. Morador de Cardiff, uma comunidade de 12 mil habitantes ao sul de San Diego, na Califórnia, Jeremy é capaz de subir pirambeiras e encarar downhills técnicos de mountain bike, pegar onda com estilo e dropar em pistas de esqui nível “faixa preta”. Tudo isso depois que, aos 25 anos, ele e sua moto foram devastados por um carro em alta velocidade no ano de 2001.
Para entender como Jeremy é osso duro, vamos direto ao ponto. Há quatro anos, ele desceu de esqui o trecho mais insano da Bloody Mountain, uma montanha californiana na parte leste de Sierra Nevada, com 3.800 metros de altura e uma inclinação que atinge 55º. Esse trecho da montanha tem status de ritual de passagem para os atletas e aventureiros mais destemidos da região. Em outras palavras, uma descida sinistra até mesmo para snowboarders e esquiadores experientes que não precisam de nenhum equipamento adaptado – Jeremy usou um sit ski feito especialmente para a aventura.
Alguns meses antes, Jeremy havia atingido o fundo do poço (ou um pouco mais abaixo que isso). Sem família, sem grana e sem mobilidade, por um triz não acabou largado na rua. Para chegar ao drop de esqui decisivo, arrastou-se literalmente até o topo, se puxando com a força dos próprios braços, amarrado a um trenó – o esforço contou com uma equipe de apoio e logística.
“Chegar lá em cima foi emocionante em vários sentidos, pois eu não sou próximo da minha família, então aquela intimidade com as pessoas que me ajudaram a chegar lá, se esforçando por minha causa, foi muito importante para mim”, conta Jeremy, direto da sua casa na Califórnia, onde vive na companhia do labrador Freedom. Após a expedição à Bloody Mountain, Gabe Taylor, um dos integrantes da equipe de apoio, disse à imprensa norte-americana que nunca havia visto tanta paixão em uma pessoa e que a garra que Jeremy mostrou chegava a intimidar muito aventureiro experiente.
JEREMY JÁ É UM EXPOENTE do esporte extremo adaptado, um nicho de poucos, porém valentes atletas. Seu sit ski possui uma dinâmica incrível, graças a um inovador sistema de suspensão; sua mountain bike é a primeira do mundo a reunir amortecimento e relação de marchas para paraplégicos com alto rendimento; e sua nova prancha de surf promete revolucionar a vida de pessoas com a mesma paixão. Mesmo assim, ele vive quase no anonimato, e suas fotos são curtidas por apenas algumas dúzias de pessoas no Facebook.
No último mês de julho, o aventureiro partiu para mais uma missão inédita, desta vez na Molakai2Oahu, tradicionalíssima prova de paddleboard e stand-up paddle ligando as duas ilhas havaianas que dão nome à competição, em um trajeto de 32 milhas (pouco mais de 50 quilômetros). “Foi mais difícil do que na Bloody Mountain, pois o ambiente do oceano é mais imprevisível e hostil”, conta. A aventura foi interrompida na metade por uma grave infecção no pé, fruto de um corte, o que fez Jeremy abandonar a tentativa.
Atualmente ele se encontra em uma encruzilhada: dedicar-se a mais uma experiência na Molokai em 2015 ou iniciar um novo projeto. Sua única certeza é a de querer estar perto da água, alimentando a alma de free surfer – logo após a entrevista para a Go Outside, ele iria dar uma conferida em seu novo protótipo de prancha. O cara é ativo, não se intimida e, para se manter sempre pronto para desafios ao ar livre, treina forte: “Eu não sou muito de rotina e não gosto de academia, mas é o único jeito de me preparar de verdade. Faço treino de força com um preparador físico e me exercito em uma bike ergométrica adaptada, além de fazer muito, mas muito alongamento. Eu já pratiquei bastante ioga também, mas larguei, preciso voltar”.
Recentemente, seu esforço foi reconhecido pela equipe da estação de esqui e snowboard de Mammoth Mountain, na Califórnia, seu mais novo e importante patrocínio – que ele define como “a primeira vez que sinto ter uma família de verdade”. Depois do acidente de moto, Jeremy voltou para casa da mãe, junto do irmão mais novo, que usava sua grana para comprar metanfetamina. Jeremy insistiu tanto para a mãe expulsar o caçula de casa, que, quando conseguiu, acabou tomando uma surra do próprio irmão, mesmo na cadeira de rodas. Hoje, Jeremy até fala esporadicamente com os pais, mas não consegue se aproximar deles. Seu irmão finalmente está melhor, em um processo de limpeza do vício.
“Costumam resumir a minha história à de um cara que sofreu um grave acidente e que hoje faz coisas maneiras, mas isso é apenas um pequeno pedaço da minha vida. A parte mais importante é que, graças a tudo isso que eu passei, do jeito mais difícil possível, meu irmão se curou”, desabafa. “Acreditar em mim mesmo é minha maior vitória até hoje, acima de qualquer feito esportivo que eu já realizei ou que ainda possa realizar”, completa. Segundo Colin Farrell, líder do projeto Drop In (dropinproject.wordpress.com), que registra as aventuras de Jeremy em fotos, vídeos, textos e palestras, quando Jeremy quer alguma coisa de verdade, nada é capaz de detê-lo.
Recuperado do incidente em Molokai, o californiano já está se preparando para a continuação do projeto Drop In. Prestes a dar seu próximo passo, Jeremy aproveita para refletir: “Todo mundo corre o risco de cair na preguiça, no sedentarismo. A única diferença minha para os outros é que sou mais ‘visível’ ao ar livre. Veja, não há nada de legal em precisar de uma cadeira de rodas para viver, mas minha motivação para aventuras é idêntica à de alguém que anda sozinho. Para ser bem sincero, eu sou exatamente a mesma pessoa antes e depois do acidente, continuo vivendo cada momento, perseguindo trilhas, swells e nevascas. E assim sou feliz”.
Matéria originalmente publicada na Go Outside 15, de janeiro/fevereiro 2015.
RELAX: Jeremy posa para a foto em Cardiff, sua pequena cidade natal, próxima a San
Diego (EUA). (Foto:Gretchen Dunn).
HABILIDADE: Jeremy tira sua foto descendo em seu sitski (Foto: Arquivo pessoal).
NINGUÉM SEGURA: O norte-americano se diverte a bordo de sua pinoeira MTB adaptada (Foto:
On Point Productions)