O Éden das pipas

Por Bruno Romano

ÀS 10 HORAS DA MANHÃ de um sábado de setembro, um vento forte agitava a água cristalina de uma lagoa e fazia voar areia por todos os lados. Imensas dunas compunham esse oásis surreal. A paisagem lembrava, talvez, a de outro planeta. Na verdade, tratava-se de uma inóspita área do Parque Nacional dos Lençóis Maranhenses, palco escolhido para a largada do Red Bull Rally dos Ventos, um evento inédito que reuniu grandes nomes do kitesurf mundial. Há pelo menos uma década a nata do kite já está acostumada a aproveitar as condições perfeitas de vento do Nordeste brasileiro. Mas, neste ano, a abertura da temporada nacional explorou os limites do esporte, misturando corrida extrema na areia com trechos velejáveis nas lagoas, em uma nova modalidade batizada de kite endurance.


PRIVILÉGIO: A nata do kitesurf mundial desbravando os Lençóis Maranhenses no Red Bull Rally dos Ventos
(Foto: Marcelo Maragni / Red Bull content pool)

O percurso do rally foi mantido em segredo pela organização até o momento da largada. Os atletas, que surgiram de trás das grandes dunas com cara de espanto diante do desafio e da beleza do lugar, inflaram seus pulmões e equipamentos, para depois vestir os coletes e trapézios e subir as pipas no ar. No kite endurance, os competidores ficam livres para escolher seu trajeto, na areia ou na água, conectando a largada com a chegada. No Rally dos Ventos, isso significou 13 quilômetros em linha reta, o que, na prática, quer dizer pelo menos 17 quilômetros em um traiçoeiro ziguezague no “deserto”.

Fazendo seu kite deslizar nas lagoas (e também na areia) como um tapete mágico, o cearense Alexandre Neto puxou a fila e venceu a competição em 37 minutos. “Foi um sofrimento maravilhoso”, resumiu o atleta de Cumbuco (CE). Ele terminou seguido de perto pelo vice-campeão Carlos Mário, seu conterrâneo e também um dos expoentes da nova geração brasileira que está fazendo barulho no mundo do kite. Alexandre estreou neste ano em provas de freestyle do circuito mundial, mantendo-se entre os top cinco do ranking da PKRA, a Associação Profissional de Atletas de Kiteboarding. No freestyle, os competidores são julgados pela ousadia e criatividade nas manobras, em baterias curtas. No Rally dos Ventos, no entanto, também marcaram presença atletas de outras modalidades consagradas do kite como wave e race (surf e velocidade, ambas a bordo das pranchas e pipas).


PARAÍSO: o Red Bull Rally dos Ventos, nos Lençóis Maranhenses (Foto: Marcelo Maragni / Red Bull content
pool)

Para Eduardo Fernandes, o “Rato”, idealizador e diretor-técnico do inédito endurance em Lençóis, além de promover uma competição, a ideia central foi transmitir a mensagem de que o kite é um esporte limpo, sem impacto à natureza. “O kite está conectado diretamente ao ambiente e pode ser feito nos lugares mais incríveis do planeta”, diz Eduardo. É verdade, ainda mais se pensarmos que, a poucos quilômetros dali, fica um verdadeiro paraíso das pipas. A faixa litorânea que se estende do Rio Grande do Norte ao Piauí, passando pelo Ceará, se transformou em pouco tempo na Meca do esporte, além de celeiro de talentos nativos. Junte isso ao clima agradável, a receptividade dos locais, as lagoas próximas da costa e a boa comida para criar um ambiente perfeito para a prática da modalidade.

“EU AMO O BRASIL, e o que os brasileiros fazem com um kite é insano. São as melhores condições do mundo, por isso venho para cá todos os anos”, diz Kristiin Oja, kitesurfista eslovena e primeira colocada no Rally dos Ventos entre as mulheres. Kristiin saiu dos Lençóis Maranhenses direto para Barra Grande do Piauí, para participar de uma etapa oficial do circuito mundial da PKRA no fim de setembro. Desde 2011, o Brasil não recebia um evento da associação – e pela primeira vez Barra Grande foi sede.

Na onda do kite, escolas e lojas especializadas pipocaram na região, fomentando o esporte. Cidades inteiras acabaram evoluindo em estrutura turística em torno do kite e, atualmente, estão na lista de desejos dos principais atletas do mundo. Daí para o surgimento de novas feras locais foi apenas questão de tempo. “No começo já dava para ver que os nativos seriam uma potência no cenário nacional e até mesmo mundial, mas foram necessários alguns anos para lapidar o talento bruto. Agora, eles começam a colher bons resultados”, comenta Guilly Brandão, 33 anos, tricampeão mundial e pentacampeão brasileiro de kite wave. Atleta experiente, ele acompanhou de perto toda a evolução da nova geração nacional.


PIONEIRA: A experiente kitesurfista Susi Mai curte uma sessão livre no Maranhão (Foto: Marcelo Maragni /
Red Bull content pool)

Guilly diverte-se ao contar de um “boato” sobre a molecada do Nordeste: segundo reza a lenda, eles passavam o dia velejando e não baixavam o kite nem para almoçar. “Dizem que a meninada comia um prato de comida com a pipa ainda no alto. Se isso era verdade ou não, eu não sei, mas que os meninos ficaram bons rapidamente, ah, isso ficaram”, completa Guilly. Para Bruna Kajiya, atual terceira colocada no ranking mundial de freestyle (e melhor brasileira do circuito), não há lugar melhor no mundo para velejar do que o Nordeste brasileiro. A paulista, que não perde uma temporada de ventos nordestinos, foi vice-campeã na etapa 2014 do PKRA, em Barra Grande, com direito a vitória sobre a líder do ranking, a polonesa Karolina Winkowska, em uma das baterias.

Até mesmo o belga Christoph Tack, de 21 anos, que ocupa o topo da lista da PKRA de atletas do freestyle, se rende ao Brasil e não desperdiça as chances de treinar e competir por aqui. “Mesmo sem tantos recursos ou equipamentos de ponta, os brasileiros fazem coisas incríveis, e muito vezes saem-se melhor do que vários profissionais que até ganham mais”, observa Chris. “Eles fazem por amor ao esporte e é justamente por isso que são tão bons.” A paixão nacional pelo kite e a perfeição de condições do Nordeste não são mais segredo para ninguém – a questão é saber até onde isso pode nos levar. Já não há dúvida de que a região está ajudando um dos caçulas dos esportes outdoor a voar baixo. E parece que os ventos estão soprando a nosso favor.


KITE LIFE: O brasileiro Alex Neto (de boné preto) e o espanhol Alex Pastor (de bermuda azul e branca)
lideram o bonde em busca dos ventos no nordeste (Foto: André Magarao)

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Deixe a pipa te levar

Melhor brasileira no ranking mundial de kite freestyle, Bruna Kajiya recomenda abaixo três picos cearenses ideais para você evoluir com pranchas nos pés e pipas no ar:

CUMBUCO

Curta o destino consagrado pelo kite velejando na lagoa salobra do Cauípe, bem ao lado do mar. Aproveite várias opções para comer na vila local.

Onde ficar: Kitecabana (hospedagem próxima à praia, com bons preços; kitecabana.com); Windtown (pousada aconchegante, de frente para o mar (windtown-brazil.com).

PREÁ

Opção tranquila, que ficou famosa pelos ventos fortes durante todo o ano, que chegam a atingir até 32 nós (60 km/h) no auge da temporada. Se quiser agito, estique pela praia por 20 minutos de carro até Jericoacoara.

Onde ficar: Pousada Vila Bela Vista Preá (ideal para você descansar de dias intensos de kite; vilabelavistaprea.com); Rancho do Peixe (hospede-se à beira-mar nesta pousada top; ranchodopeixe.com.br).

URUAU

Fuja do crowd em um local sossegado e com ótimas condições. Além de contar com uma lagoa de água lisa pertinho da costa, Uruau tem um mar que costuma receber bem quem quer tirar uma onda de kite wave.

Onde ficar: ProKite Brasil (pousada, escola de kite e restaurante italiano; prokite.com).

Reportaem publicada originalmente na Go Outside 113, em novembro de 2014.







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