Por Maria Clara Vergueiro
EM 2005 O NORTE-AMERICANO Richard Louv publicou um livro sobre os efeitos que a distância da natureza têm produzido em crianças do mundo inteiro. Sem pretensões de fundar um movimento, ele acabou cunhando o termo nature deficit disorder (distúrbio de déficit de natureza). E soou um alerta importante sobre a saúde física e mental da geração nascida nos anos 2000, pouco acostumada às vivências ao ar livre, viciada no conforto e na segurança de casas e escolas, comandada por eletrônicos de todas as espécies. O livro Last Child in the Woods (A Última Criança na Floresta, ainda sem edição em português) virou best-seller nos Estados Unidos, abrindo os olhos de pais e educadores para a essência do tema.
Hoje, quase uma década mais tarde, o autor de sete outros livros vê iniciativas e programas se espalharem por seu país com o objetivo de reestabelecer esse laço perdido e, assim, evitar efeitos colaterais relacionados à carência de verde, como obesidade, déficit de atenção e depressão infantil, entre outros males. Escolas e organizações como a Children & Nature Network (childrenandnature.org), criada por Richard, têm se empenhado em reduzir o estrago provocado pelo desenvolvimento urbano desenfreado. Entre suas iniciativas, está o incentivo a atividades que ampliem o tempo de jovens e crianças fora da sala de aula e estimulem o conhecimento por meio da observação e da interação com elementos mais “vivos”. “Ficar mais perto da natureza não é a cura para todos os problemas, mas sem dúvida promove transformações muito relevantes nas crianças”, diz Richard. “Os estudos são firmes em atestar que esse contato ajuda no aprendizado e na construção da autoconfiança”, diz o autor.
De que formas podemos promover a interação genuína com a natureza, quando na maior parte das vezes estamos cercados de estruturas tão artificiais? Richard acredita que precisamos pensar em cidades diferentes no futuro, que ofereçam mais espaço para a natureza. No entanto, em um âmbito mais próximo de todos nós, há muito que fazer. Segundo Bebel Barros, engenheira florestal e fundadora da Outward Bound Brazil (OBB), braço nacional da organização que se dedica à educação por meio da vida ao ar livre em diversos países do mundo, uma das melhores maneiras de fazer essa conexão é a partir do que ela chama de “livre brincar”, ou seja, deixar que a interação aconteça sem muitas regras estabelecidas, espontaneamente. “A natureza é o espaço de pertencimento da criança, que nessa fase da vida se expressa principalmente pelo movimento”, diz ela. “A prática de esportes em grupo, como futebol, vôlei e basquete, por exemplo, não substitui a importância do contato direto com a natureza”, completa a educadora.
Enquanto em países como os Estados Unidos – onde a vida ao ar livre é mais difundida – pais e filhos experimentam um número maior de situações em meio à natureza, no Brasil esses momentos são mais raros. Uma das explicações para essa diferença, na opinião de Bebel, pode ser histórica: nossos antepassados portugueses nos ensinaram a relacionar a natureza a um ambiente “selvagem”, a olhar para o lado de fora da janela com desconfiança, preferindo o interior da casa, da escola e da igreja, como manda a religião católica. “As pessoas não veem isso com bons olhos. Querem que os filhos freqüentem o shopping, que não se sujem, não corram riscos. Têm dificuldade de ver utilidade em acampar, caminhar, brincar”, afirma Bebel, que enxerga em países influenciados por nações como Inglaterra e França sociedades mais adeptas da aventura.
O próprio Richard Louv se apoia na “cultura do medo” para explicar a resistência que existe até hoje em deixar as crianças brincarem sozinhas na natureza: os perigos são muito mais alardeados do que as maravilhas de se estar lá fora, entre árvores, bichos, insetos e imprevistos. Pode chover. Uma vespa pode te picar e desencadear uma alergia. Você pode cair e quebrar a perna. Tudo pode dar errado. O mais seguro e menos trabalhoso para todos é manter as crianças brincando onde podemos calcular os riscos. As pesquisas mais recentes, entretanto, apresentam algumas consequências dessa escolha: um trabalho realizado na Cidade do México identificou o aumento de 12% no risco de se desenvolver obesidade infantil para cada hora do dia em frente à televisão – não apenas por desviar a criança das atividades físicas, mas por induzir à ingestão de alimentos calóricos, por meio de suas propagandas. Isso para não falar dos danos relacionados ao uso intenso de eletrônicos. As sociedades médicas na Inglaterra e nos Estados Unidos recomendam que crianças abaixo de 12 anos usem o mínimo possível deles, sob o risco de prejudicar as conexões neurais e afetar o comportamento.
“Não sou avesso ao uso da tecnologia na educação”, rebate Louv. “Mas temos que equilibrar: quanto mais high tech a vida se torna, maiores devem ser as doses de natureza para compensar tanta parafernália eletrônica.” Na opinião do autor, a mais moderna habilidade deste século é a capacidade de conciliar o mundo físico com o mundo digital, combinando os poderes primitivos de nossos ancestrais com a velocidade digital dos adolescentes de agora. Em outras palavras, diz ele, temos de ter um “cérebro híbrido”, e este seria o novo desafio das escolas do mundo inteiro: usar o convívio com a natureza como fonte de conhecimento, ampliando as áreas externas e capacitando professores nesse sentido.
O conceito de “tempo” também é mais orgânico fora das telas. Médicos alertam para o risco de a relação exagerada com a tecnologia estimular a ideia imediatista de que tudo se consegue automaticamente. Os especialistas enfatizam a importância da simples contemplação. “Devemos encorajar especialmente o tempo que é aproveitado sem uma estrutura específica: trekking, camping, pescaria e observação de pássaros, animais selvagens e nuvens no céu”, sugere Richard. A presença dos pais em algumas dessas experiências também pode ser importante, não para mediar as atividades, mas para ajudar as crianças a ganhar terreno, avançar e ampliar limites e conquistas.
O ESTUDANTE DE ECONOMIA Lucas Consiglio, de 21 anos, nunca mais esqueceu a primeira vez que subiu em um bote inflável ao lado do pai e do avô. Durante o passeio, encontrou um grupo de tartarugas-marinhas e golfinhos. Ex-aluno do extinto Núcleo 16 – braço juvenil da assessoria esportiva paulista Núcleo Aventura –, Lucas sempre acompanhou os pais nos programas outdoor e, ainda menino, passou a frequentar o Acampamento de Aventura Go Outside (organizado por esta revista, em parceria com outras empresas), primeiro como aluno e hoje como monitor, o que lhe permitiu trocar de posição e observar o comportamento das crianças.
“Algumas demoram para se entregar à brincadeira e à rusticidade do acampamento, mas quando a semana acaba não tem uma que não esteja coberta de lama, lamentando o fim da festa. Elas percebem que o mundo é um enorme parque de diversões e que precisamos cuidar dele”, diz Lucas. Olhando assim, não parece tão difícil devolver os pequenos às brincadeiras na natureza. Talvez a preguiça seja só dos adultos. Richard Louv vai mais longe: enquanto a conexão com a natureza, especialmente entre as crianças, não for garantida como um direito de todos, ela não será levada a sério como se deve.
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Deixe-os em paz
Dicas simples e eficientes para aproximar as crianças da natureza
> Permita que as crianças explorem sozinhas pequenas áreas abertas (ou pelo menos faça-as acreditar que estão sem supervisão, livres para explorar). A autonomia ao ar livre estimula a autoconfiança e melhora a autoestima.
> Regule o tempo que os pequenos podem dispor de eletrônicos, reduzindo-o ao mínimo possível. Brincar estimula a criatividade, o senso de pertencimento, a sociabilidade e a segurança. Nada disso pode ser substituído por um IPad.
> Promova atividades familiares fora de casa. Vale acampar no quintal, construir cabanas e castelos de areia, fazer uma pequena caminhada na praia, andar de bicicleta em uma trilha ou estrada de terra.
> Não reprima as iniciativas das crianças, principalmente ao ar livre. Voltar para casa com os tênis imundos de lama, a camiseta rasgada ou o joelho ralado é sinal de que elas ousaram e ampliaram limites físicos e emocionais.
> Estimule a convivência entre crianças de idades diferentes. Com isso, a troca de experiências e conhecimento é muito mais rica e facilmente assimilada.
VÁ LÁ
Acampamento de Aventura Go Outside
Próximas temporadas: De 12 a 16 e de 19 a 23 de janeiro de 2015.
O que é: Cinco dias de acampamento rústico em uma fazenda a 80 quilômetros de São Paulo, com atividades esportivas e experiências na natureza, comandadas por Cristina Carvalho, Shubi Guimarães, José Roberto Pupo e Caco Alzugaray – nomes de peso da cultura outdoor no Brasil – e uma equipe de monitores ultracapacitados. O acampamento é uma iniciativa da revista Go Outside em parceria com a Canoar, o Núcleo de Aventura e a Liga Outdoor.
Atividades: Mountain bike, caminhadas, canoagem, técnicas verticais, brincadeiras e camping.
Preço: R$ 2.140 (desconto de 15% para irmãos).
Inscrições: shubi@ligaoutdoor.com.br ou criscarvalho@nucleoaventura.com.br
Esta matéria foi publicada originalmente na Go Outside 113, de novembro de 2014
DO MATO: Criança perto da natureza é criança feliz (Foto: David Nunuk)
LARGA O MENINO: Brincar e se arriscar é parte do aprendizado infantil (Foto: Kennah Harvey)