Comida para quem (mais) precisa

Por Denise Mota

COMER TUDO O QUE se coloca no prato deixou de ser apenas uma exigência de pais zelosos a filhos que se alimentam mal: transformou-se em uma questão de ordem mundial para combater o desperdício de comida. O problema atravessa toda a cadeia de produção e chega à cifra de 2,47 toneladas de alimentos jogadas fora por minuto em todo o planeta, segundo relatório da FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura). Isso em uma realidade na qual 805 milhões de pessoas passam fome, ainda de acordo com o órgão, em dados divulgados em setembro deste ano.

Para muita gente, esse cruel paradoxo é simples de resolver: basta (re)distribuir melhor os alimentos produzidos, sem burocracia, sem esperar por auxílio do Estado e contando com voluntários e doações. Trabalho de formiga e boca-a-boca são elementos essenciais, por exemplo, da ReFood, uma organização civil que surgiu em Portugal há três anos e que hoje distribui 15 mil refeições por mês a um custo de menos de 10 centavos de euro por cada uma delas. Recentemente o projeto motivou a epopeia do português Ricardo Mendes, que pedalou 3.000 quilômetros para levar conscientização às populações urbanas da Europa.

A ReFood (facebook.com/refoodportugal) começou em 2011 com uma ideia simples do norte-americano Hunter Halder, radicado naquele país. A bordo de sua bicicleta, ele resgatava as sobras dos restaurantes do seu bairro para alimentar outras pessoas. “Depois de um mês, Hunter não estava mais sozinho: havia ficado claro que o projeto gerava não só os benefícios previstos – menos desperdício e menos fome –, mas também um terceiro: o aumento da solidariedade de uma comunidade”, conta Paulo Santos, um dos gestores voluntários da ReFood da cidade portuguesa de Alfragide (o quinto e mais recente ponto da rede). O projeto se expandiu no continente, e filiais da ReFood também podem ser encontradas na Holanda e na Alemanha.


COLHEITA: Isabel Soares pesa maçãs para a ONG Fruta Feia, que reaproveita comida rejeitada para
comercialização (Foto: Divulgação)

Ainda que o centro da ação seja simples, sua execução requer planejamento e precauções, tanto legais como higiênicas no que diz respeito ao repasse de alimentos. “É uma grande operação de logística”, define Paulo. “Todos os dias da semana equipes de voluntários fazem a coleta dos excedentes alimentares de restaurantes, bares, armazéns e feiras. Temos rotas pré-definidas, e o que é recolhido vai para nosso Centro de Operações, onde os alimentos são identificados com o dia da coleta e colocados em frigoríficos para conservação.”

A partir daí, outro grupo de voluntários prepara as porções de refeições para as famílias com necessidade, usando o que foi recolhido no mesmo dia ou no dia anterior. “Nada é cozido, apenas conservado em frio, por um máximo de 48 horas. Antes de serem feitas as porções, toda a comida passa por uma inspeção, para confirmar que está em condições de ser distribuída. Nada fora do prazo ou com indícios de não estar em bom estado é usado.” Uma terceira leva de voluntários distribui as refeições em sacolas próprias, que as famílias vão buscar no Centro de Operações. Ao pegar uma nova sacola, elas deixam, lavados, os recipientes e as sacolas que receberam e usaram no dia anterior.

Todo o trabalho é feito por cerca de 200 voluntários, que doam duas horas semanais de trabalho. Em Alfragide, por exemplo, conta Paulo, o projeto “recolhe atualmente os excedentes alimentares de quase 50 restaurantes, bares e empresas da comunidade, com os quais são preparadas refeições diárias para 25 famílias, assegurando comida a cerca de cem pessoas”. Empresas e autoridades locais também apoiam a iniciativa.

Nesse mesmo espírito, a organização não-governamental brasileira Banco de Alimentos (bancodealimentos.org.br) trabalha desde 1998 e, atualmente, fornece alimentos a 42 instituições, o que dá um total de 21 mil pessoas por dia. “Trabalhamos em três frentes distintas e interligadas: alimentação, educação e transformação”, conta Alessandro Cochetti, gerente de comunicação e eventos da ONG. Em média a Banco de Alimentos faz a doação de 30 mil quilos de alimentos por mês. “Esses alimentos são adquiridos por meio do que chamamos de ‘colheita urbana’. Nela, doadores cadastrados cedem sobras de comercialização, ou seja, alimentos que não foram vendidos e têm o lixo como destino, embora sejam próprios para o consumo”, diz.


MÃO NA MASSA: Trabalhadores da ONG Fruta Feia em ação (Foto: Divulgação).

Outra frente de atuação da associação é a educação, por meio da disseminação de informações sobre nutrição e cidadania. “Instruímos também as cozinheiras das entidades que atendemos, com cursos e treinamentos, nos quais elas aprendem como aproveitar integralmente o alimento, além de técnicas de higiene e montagem nutricional de cardápio.” Fechando essa cadeia, a organização promove cursos, oficinas culinárias e palestras em escolas, empresas e faculdades, para ensinar e incentivar um novo olhar diante da realidade brasileira e do mundo. Você também pode participar: a Banco de Alimentos aceita voluntários (com mais de 18 anos e disponibilidade para trabalhar pelo menos quatro horas por semana).

O COMBATE AO DESPERDÍCIO também pode ser um bom negócio. Foi também em Portugal que surgiu uma das ideias mais legais sobre o aproveitamento de frutas e verduras que ninguém quer por estarem fora dos padrões considerados “normais” de cor, textura e forma. A cooperativa Fruta Feia (frutafeia.pt) nasceu há um ano e vende alimentos rechaçados pelos varejistas apenas por razões estritamente estéticas.

Calcula-se que só na Europa cerca de 90 milhões de toneladas de alimentos são desperdiçadas por ano e que, de tudo o que é produzido pelos agricultores, 30% vai para o lixo somente por serem “feios” para comercialização. A cooperativa funciona em Lisboa e vende a consumidores pré-cadastrados cestas de frutas e hortaliças da estação, que custam entre 3,5 e 7 euros.


GESTO BONITO: trabalhadora da ONG escolhendo cebolas (Foto: Divulgação)

Em Berlim, o restaurante e bufê Culinary Misfits (culinarymisfits.de) elabora pratos gourmet realizados com vegetais “feios”. Liderada por duas designers, a empresa ainda oferece workshops e compartilha receitas pela web. Na Inglaterra, Alemanha, Suíça e Áustria, algumas redes de supermercados também começaram a vender esses produtos a preços mais amigáveis.

Iniciativas como essas provam que, da produção à distribuição de alimentos, é possível não apenas evitar desperdícios desnecessários como ajudar a quem precisa. E ainda gerar lucro para produtores e comerciantes. Basta cada um fazer a sua parte.

Pedal do bem

A saga do português que resolveu viajar com sua bike por uma ótima causa

O desperdício de alimentos afeta diretamente não só os seres humanos, mas também o planeta. Além de serem fonte de emissão de gases, os alimentos, ao apodrecerem em aterros, desperdiçam outros recursos naturais, como a água e a terra que foram utilizados em seu cultivo.


CAUSA NOBRE: Ricardo pedala divulgando a ONG ReFood (Foto: Divulgação)

Para conscientizar as pessoas sobre os vários males que implica um ato tão corriqueiro como jogar comida fora, em setembro passado o português Ricardo Mendes, do núcleo ReFood de Alfragide, pedalou 3.000 quilômetros pela Europa, de Roma a Fátima. Durante a viagem, ele fazia palestras sobre a Refood, além de distribuir folhetos sobre a organização.

Aos 42 anos, Ricardo já tem os pés – e a cabeça – mais que treinados para essas aventuras. Ele já pedalou anteriormente, em nome de outras causas solidárias, na Patagônia e na Islândia. “Ao verificar o enorme desperdício que existe só no meu bairro, decidi, de uma forma ambiciosa, espalhar esse conceito e esses valores por vários bairros urbanos do planeta, ao longo de diversas rotas de peregrinação.”

Da Itália a Portugal, passando por França e Espanha, além das cidades de início e fim da rota, o caminho incluiu Orvieto-Bo, Pienza, Siena, Pisa, Florença, San Remo, La Spezia, Gênova, Arles, Toulouse, Burgos e Salamanca.

A barreira da lei

Legislações sobre distribuição de alimentos mais afastam que atraem pessoas a se solidarizar com aqueles que não têm o que colocar na mesa

A legislação brasileira responsabiliza o doador se o receptor do alimento vier a ter problemas com a ingestão do que foi cedido. No entanto, Alessandro Cochetti, da ONG Banco de Alimentos, considera que, apesar de ser um fator desmotivador para muitas pessoas, a lei em vigor não chega a ser um obstáculo real para essas ações.

“O que ocorre, na verdade, é que não existe uma lei que proteja o doador de uma possível ação civil ou criminal. Isso faz com que a maioria dos possíveis doadores opte por jogar fora os alimentos ou incinerá-los”, explica. Para ele, essa possibilidade pode até explicar o “fenômeno” da falta de doadores no país, “mas não o justifica”.

Por isso, foi encontrada na ONG uma maneira de compartilhar não só alimentos, mas também direitos e deveres: “Tomamos a responsabilidade da doação perante o doador e nos garantimos com os receptores de alimentos, que inspecionam todo o lote doado e atestam, por escrito, que o que estão recebendo encontra-se em condições perfeitas para o consumo. Com esse procedimento demonstramos, na prática, que esse tipo de atuação é possível e faz grande sentido.”

Matéria originalmente publicada na Go Outside 113, em novembro de 2014







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