O líder da matilha


CAPITÃO DO TIME: Lance e seu cão Amp


Por Josh Dean

UM DOS MAIORES DESAFIOS da corrida em trenó é oferecer calorias suficientes para os cães conseguirem sobreviver a tanto frio e esforço físico. Incríveis atletas de endurance, esses animais precisam consumir entre 10 e 14 mil calorias diárias quando estão correndo. Alguns param de comer por diferentes razões, e é aí que entra um segredo campeão: a carne de castor. “Nem o mais cabeça dura dos cachorros consegue resistir”, diz Lance Mackey, um dos maiores “mushers” (corredores de trenó) do Alasca.

Enquanto serra um pedaço de carne de castor congelada no quintal de sua casa, este homem de 43 anos parece de fato um cara que já passou milhares de horas em pé sobre um trenó, enfrentando rajadas de vento congelantes. Ele é magro como uma vara. Seu rosto tem a pele queimadíssima pelo vento, os olhos muito azuis estão frequentemente irritados e sulcos em forma de meia-lua enfeitam as bochechas. Porém o cavanhaque castanho é surpreendentemente bem aparado e comportado. O lado direito do seu rosto e do pescoço são afundados, resultado de várias cirurgias de câncer que acabaram por retirar a maior parte do tecido entre a pele e os ossos. Lance normalmente usa boné – até quando está pilotando um trenó, mas daí coloca um capuz de pele de animal por cima – e mantém o cabelo pouco lavado preso num rabo de cavalo que vai até a altura dos ombros ossudos.

Graças aos rígidos invernos das colinas ao norte de Fairbanks, em um maltratado terreno de 20 mil metros quadrados onde fica seu canil Comeback Kennel, as imensas quantidades de carne não necessitam de cuidados especiais de estocagem. O que é ótimo, já que Lance precisa cortar quase três toneladas de carne só para prover alimento aos cães durante as duas grandes corridas de trenó nas quais planejava entrar quando o visitei em janeiro de 2013: a Yukon Quest e a Iditarod. Essas duas penosas travessias de 1.600 quilômetros cada acontecem com um intervalo de um mês entre uma e outra, no começo de fevereiro e início de março. Poucos mushers se atrevem a enfrentar ambas em uma mesma temporada. Vencer as duas no mesmo ano era considerado impossível – até que Lance conseguiu realizar a proeza, em 2007. E repetiu o feito em 2008.

Se não tivesse conquistado nada mais além disso, Lance Mackey já seria uma lenda. Porém ele acabou vencendo as duas provas quatro vezes e se tornou o primeiro a ganhar a Iditarod por quatro anos seguidos, de 2007 a 2010. “Ele é o melhor de todos os tempos”, disse Sebastian Schnuelle, campeão da Yukon Quest em 2009, que desistiu da carreira de musher devido aos desafios de competir em um esporte que consome muita energia e grana, mas paga pouco em prêmios e patrocínios.


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Cuidar de um canil com 80 cachorros é um trabalho exaustivo, e a maior parte da preparação de comida e limpeza de cocô nos últimos invernos foi deixada para dois jovens assistentes a quem Lance frequentemente se refere como seus “filhos”. Cain Carter, de 21 anos, é filho da ex-mulher de Lance, Tonya, um dos pilares do canil durante muito tempo, mas que foi expulsa durante uma separação feia, em 2011. Braxton Peterson, de 26, é ex-namorado de uma das irmãs mais velhas de Cain. Ele se mudou para a casa da família Mackey quando eles viviam na Península de Kenai, na costa sul do Alasca, e veio junto em 2006 quando todos se mudaram para o sítio no interior de Fairbanks. De uma vez só, seis humanos e sete cachorros se aglomeraram em um chalé de dois dormitórios, sem água encanada ou eletricidade. Quando visitei o canil Comeback Kennel, Cain e Braxton eram as únicas pessoas que trabalhavam e ficavam lá em período integral.

Os rapazes também são pilotos de corrida de trenó (ambos já completaram a Iditarod), companheiros de baseado, autointitulados mulherengos e rappers amadores, que gravam músicas de hip hop (a maioria sobre cachorros) sob o nome de Musherz. Os dois têm a cabeça quase completamente raspada e tatuagens em profusão, várias das quais feitas no verão anterior, quando trabalhavam em um barco na Califórnia. Lance os mandou para o sul dos Estados Unidos para ganhar dinheiro e custear suas corridas de trenó, mas a dupla gastava tudo o que ganhava. Por isso nenhum dos dois iria competir no inverno de 2013, e Lance não estava nada feliz com isso.

Aliás, Lance não era o tipo de cara que ficava feliz com muita coisa quando eu o visitei no Alasca. Fazia três anos que ele vencera sua última Iditarod, e ele ainda continuava participando da prova mesmo assim. A comida de cachorros lhe custa mais de US$ 30 mil por ano (fora as generosas contribuições de seu patrocinador de ração, a Red Paw, e da rede de amigos que lhe ajuda a comprar as carnes mais caras). “Isto aqui é cordeiro da melhor qualidade”, disse, apontando para uma caixa de madeira. “Não dou cordeiro nem para os meus dois meninos.”

Apesar de ganhar algum dinheiro com as corridas, patrocínios e treinamento de mushers, Lance está com as contas totalmente no vermelho, tentando sobreviver à desgraça financeira das corridas de cachorros. O vencedor da Yukon Quest de 2013 ganharia US$ 19 mil dólares, um número baixo para uma prova dessa dimensão. E o prêmio da Iditarod, o “Super Bowl” da modalidade, era de apenas US$ 50.400, um valor não muito alto diante dos gastos em se manter os cães. “Parece piada”, diz o Lance. “Já venci mais provas do que qualquer musher, mas estou na pindaíba.”

A preparação e a viagem para uma prova de trenó puxado por cães têm alto custo. A única maneira de se vencer a Iditarod é aparecer com uma equipe de cachorros endurecida por uma temporada de competições, capaz de suportar infinita dor, mau tempo e problemas técnicos. Conseguir isso significa entrar em provas com pouca premiação. “Gastar US$ 100 para ganhar US$ 20 é normal para um musher”, afirma Lance. Ao decidir participar da edição 2013 da Iditarod, Lance sabia que, se não conseguisse ser competitivo, certamente perderia fãs e patrocinadores.

À medida que ele se preparava para as duas maiores competições da temporada, Lance estava quase quebrando. Cães de corrida são sua verdadeira paixão, mas a pressão estava ficando insuportável. “É quem eu sou. É o que faço. Sei que haverá dias e anos ruins. Mas, financeiramente, não dá para segurar muito tempo antes de ser forçado a cair fora.”

LANCE GOSTA DE DIZER que “nasceu no esporte dos cães de trenó”, o que é praticamente verdade. Sua mãe ficou em quarto lugar no campeonato norte-americano feminino em 1970, grávida de sete meses. Seu pai, Dick, foi um dos criadores da Iditarod e venceu a prova em 1978 por apenas um segundo – uma margem recorde que persiste até hoje. Cinco anos depois, Rick, irmão mais velho de Lance, também ganhou a competição. Para os dois Mackey, a vitória veio apenas na sexta tentativa, e ambos tinham o mesmo número de competidor que Lance usaria mais tarde: 13.

Lance era um musher júnior promissor, conhecido por ter uma conexão praticamente física com os cães, mas se afastou da modalidade durante a adolescência. Segundo sua autobiografia, The Lance Mackey Story (lançada em 2010 e sem edição no Brasil), ele abandonou o esporte, trabalhou por pouco tempo acima do Círculo Polar Ártico, em um posto de serviços para caminhões e, depois, passou dez anos como pescador, bebendo e abusando das drogas. Lance estava cada vez mais longe de ter uma vida decente quando, em 1997, reencontrou-se com Tonya, amiga de escola cujo problema com drogas era praticamente tão sério quanto o dele.

Tonya tinha três filhos pequenos, mas Lance casou-se com ela em poucos meses, acolhendo a turma toda. Durante um curto espaço de tempo, as duas almas perdidas se apoiaram em seus maus hábitos. Até que, em 1998, eles decidiram ficar limpos juntos, escolhendo o dia do aniversário de Lance – 2 de junho – como o fim de uma era e o começo de outra. Ele tinha 27 anos.

Mudaram-se para a Península Kenai, ao sul de Anchorage, e viveram em uma cabana na praia, que pertencia a um amigo. Eles eram tão pobres que Tonya precisou cortar os cabelos das filhas, pois a família não tinha dinheiro para comprar xampu. Mas, segundo Tonya, “Lance era como um vulcão em erupção. A energia da sua personalidade tinha que levá-lo a algum lugar”. Com o tempo, ele conseguiu juntar dinheiro suficiente com a pesca para comprar um pedaço de terra e construir um chalé pequeno, onde se reconectou com os cães de trenó.

Lance inscreveu-se em provas curtas e, lentamente, começou a construir seu próprio canil, usando “cachorros que ninguém mais queria” e uma só cadela premiada chamada Rosie, adquirida por US$ 100. Ele cruzou Rosie com um cão famoso do canil de um amigo e, quando foram dividir a ninhada, escolheu um filhote de nome Zorro, “uma bolinha de pelos” vira-lata que tornou-se a fundação genética do canil de Lance. Zorro depois se transformaria em um dos cachorros mais famosos a correr pelo Alasca.

Em 2001, Lance sentiu-se preparado para entrar na Iditarod, mas se sentia incomodado por uma dor crônica na mandíbula e no pescoço. Ele estava certo que era apenas um problema no dente e, com a permissão do dentista, foi para a corrida. Mas dores horrendas o atormentaram durante todo o percurso. Depois de terminar em 36o lugar, decidiu consultar um especialista, que o diagnosticou com câncer na mandíbula e no pescoço – carcinoma que pode ter sido causado por exposição excessiva ao sol ou pelo uso do tabaco.

Em uma cirurgia de urgência, os médicos removeram uma boa quantidade de tecido do rosto e do pescoço de Lance, assim como a veia carótida, as glândulas salivares e a maior parte de um grande músculo que segurava o braço direito, fazendo com que ele ficasse praticamente deficiente desse membro. A radioterapia o enfraqueceu ainda mais. Perdeu dez dentes e, como o pescoço é cheio de terminações nervosas, sofreu danos nas mãos e nos pés, o que resultou em dores crônicas e suscetibilidade ao frio – um problemão para sua carreira de musher.

A remoção extensa de tecidos deixou uma pequena camada de pele cobrindo uma das principais artérias do cérebro de Lance. Os médicos lhe disseram que o simples estar perto de cachorros poderia ser perigoso. Para completar, sem suas glândulas salivares Lance teria que carregar água o tempo todo só para poder engolir.

Ainda assim, apenas seis meses depois da cirurgia, Lance fez planos de entrar na Iditarod de 2002. Ele aguentou 700 quilômetros antes de desistir, principalmente por que o Ensure (suplemento nutricional líquido) que ele carregava para colocar em sua comida congelava o tempo todo, tornando praticamente impossível sua alimentação.

Ele estava muito debilitado para correr a Iditarod no ano seguinte, então focou em fortalecer a si e a sua equipe. Aumentou as distâncias das provas menores e correu todo um circuito de competições. Em 2004 terminou a Iditarod em 26o lugar. Mas seu verdadeiro foco foi em 2005, quando fez sua primeira tentativa na Yukon Quest, uma corrida treta, de Fairbanks a Whitehorse, em Yukon (Canadá), considerada ainda mais dura do que a Iditarod. E ganhou.

Poucos mushers já correram a Quest e a Iditarod no mesmo ano, já que a sabedoria popular diz que é muito esforço para os cachorros, que dirá para os humanos. Mas Lance notou um fato curioso sobre seus cães – quanto mais corriam, mais fortes pareciam ficar. No ano da sua primeira vitória na Quest, ele terminou a Iditarod em 7o lugar. Os fãs de corrida de trenó ficaram espantados.

Lance voltou a vencer a Quest em 2006, e novamente em 2007. E na sexta tentativa, como seu pai e seu irmão, venceu a Iditarod, tornando-se a primeira pessoa a ganhar as duas competições no mesmo ano. “Nada que eu fazia era errado para eles”, conta, sobre sua matilha. “Eu poderia dar um pedaço de cigarro para meus cães que eles iriam agradecer e começar a correr de novo.”

No ano seguinte, sua equipe estava tão forte quanto no ano anterior, e Lance conseguiu um histórico bicampeonato. E, como disse Frank Gerjevic, membro do comitê de seleção do Hall da Fama de Iditarod, ao premiar Lance em 2009: “A Iditarod e a Quest no mesmo ano? Duas vezes? Inacreditável.”

Em 2011, Lance teve a chance de se igualar a Rick Swenson, conhecido como o “Rei da Iditarod”, por ser o único pentacampeão da história do evento. Mas terminou em 16o lugar e recebeu críticas surpreendentes. “De repente, o temido e dominante musher tornou-se apenas mais um competidor”, escreveu um repórter do jornal Alaska Dispatch.

No ano seguinte, as coisas pioraram. Maple, a principal líder da matilha de Lance, entrou no cio logo antes da Iditarod de 2012, e os machos da equipe brigavam entre si para ficar com ela. Os cachorros não comiam, ficaram desidratados e mal conseguiam trotar.

Lance ficou tão para trás que estava lutando para não ganhar a Lanterna Vermelha, prêmio zoeira dado ao último colocado. Ele terminou em 22o lugar e, para a surpresa de muitos, até apareceu no jantar de comemoração. “O que se pode fazer?”, disse. “Chorar sem parar?”

CONSEGUIR MARCAR uma reunião com Lance em pessoa foi uma prova de resistência. Ele não tem empresário, então você precisa encontrá-lo por telefone, o que não funciona muito bem, já que o cara raramente atende e sua caixa postal diz: “Estou numa corrida de trenó, ligue depois”.


VIDA DE CÃO?: O canil de Lance no Alasca

Tentei contatá-lo durante dois meses, conseguindo comunicação uma vez em cada 20 vezes tentativas. Finalmente consegui convencê-lo a reservar alguns dias do seu calendário e peguei um voo para Fairbanks. Depois de passar 11 horas no avião, dirigi em uma estrada de terra sob forte nevasca até o canil Comeback Kennel, onde eu esperava encontrar Lance. Em vez disso, fui recebido por Braxton na porta.

“Lance está numa corrida”, contou. “Ele viajou ontem à noite. Não faço ideia de quando voltará.” Deu de ombros e perguntou se eu queria entrar. Sentei-me à mesa da cozinha, enquanto ele e o Cain começavam o dia com ovos e tragadas no baseado, logo pedindo licença para irem limpar os canis.

Se Lance estivesse junto, talvez se juntasse a eles na rotina da fumaça. Não é novidade que a exigência de testes antidoping a partir da Iditarod de 2010 foi resultado de reclamações de outros mushers, por causa do nada secreto uso de maconha que Lance fazia na trilha – para, principalmente, aliviar suas dores (ele também foi acusado de soprar fumaça na cara dos cachorros para lhes dar fome). Lance e os garotos culpam, principalmente, seu vizinho Ken Anderson, que também é musher, pelas reclamações. Ken tornou-se persona non grata no canil Comeback Kennel e Lance nem sequer pronuncia seu nome, referindo-se a ele como “o merda do meu vizinho”. E virou um dos alvos favoritos das canções de rap dos Musherz.

No dia seguinte finalmente conheci Lance pessoalmente, no aeroporto de Fairbanks, onde ele havia ido buscar Cindy Abbott, professora da Califórnia que o contratara para ensiná-la a correr de trenó. Como Lance, Cindy é muito magra. E também sofre de uma doença – no caso dela, de Granulomatose de Wegener, doença rara, incurável e potencialmente mortal que ataca o sistema vascular. Ela queria provar a si mesma que poderia enfrentar as condições mais extremas, a despeito da doença. A professora escalou o Everest em 2010, aos 51 anos, e no ano seguinte telefonou para Lance dizendo que queria fazer a Iditarod. “Eu nunca imaginei que falaria que algo é mais difícil do que escalar o Everest, mas essa corrida de trenó é bem mais difícil”, contou.

A nosso lado, Lance estava muito ocupado devorando tortillas. Por conta de suas cirurgias e magreza, eu achava que ele não comia muito, mas na verdade o cara come como um cão de trenó, devorando um prato com um taco extra de carne e terminando com sorvete frito. “Eu como o tempo todo”, disse.

Lance tem muitas idiossincrasias como musher. Uma é que ele quase não precisa de sono. Isso tornou-se um ponto central da estratégia que ele desenvolveu com seus cachorros – Lance preferia correr mais tempo em uma velocidade mais baixa do que a de seus competidores. A técnica resultava em menos fadiga, o que permitia paradas de descanso mais curtas. Lance enche seus cachorros com a melhor comida que pode oferecer e os deixa correr devagar enquanto digerem. Em uma ou duas horas, estão com a barriga cheia e voando baixo.

Nas duas últimas temporadas, entretanto, as equipes de Lance não voaram tanto assim. De acordo com sua matemática, agora ele precisava terminar entre os três primeiros nas grandes corridas para que as provas continuassem viáveis economicamente, ou perderia muito dinheiro. Ele ficara sem três dos seus principais patrocinadores nos dois anos anteriores, resultando em uma perda total de US$ 40 mil. “E esse valor teve que sair do meu bolso, do que eu ganhei no ano passado, que foi US$ 25 mil”, afirma. “Faças as contas e você saberá o meu prejuízo.”

Até mesmo no ápice da carreira, ele nunca conseguiu sair muito do vermelho. “Infelizmente, quando comecei a me dar bem, paguei para um tal de Tio Sam uma dívida de 15 anos de impostos que eu nunca havia declarado”. Ele não tinha seguro-saúde quando descobriu o câncer, e estima ter gasto mais de US$ 700 mil em cirurgias. O único lucro que conseguiu nos últimos anos veio de palestras e vendas de cachorros, dinheiro este gasto principalmente em melhorias na casa e nos canis. “Se eu não for bem nas provas deste ano, estou acabado. Esta é minha situação atual. Estou à beira da falência.”

ATÉ MESMO O MELHOR DOS MUSHERS só se sobressai se tem cachorros realmente bons – e Lance é dono de dois surpreendentemente bons. Um é Larry, capitão de equipe de Lance há muito tempo e o único cachorro da história a ganhar o Prêmio Coleira de Ouro como melhor cão-líder nas duas provas, a Yukon Quest e a Iditarod. Larry, que como todos os cães de trenó é uma mistura de raças fortes, é tão admirado no mundo das corridas de cachorros que tem até fã-clube. Lance o adora, mas, entre as centenas de cachorros que ele criou, seu favorito parece ser Zorro.

Nascido na primeira ninhada do canil Kenai, o animal foi batizado assim por causa dos anéis acinzentados que tem ao redor dos olhos. Com 32 quilos, é grande para um cão de trenó (18 a 27 quilos é o peso mais normal). Quando Lance decidiu formar uma equipe com Zorro, seu irmão achou que ele estava doido. Mas Zorro adorava competir, tinha um apetite insaciável e nunca perdeu peso, nem mesmo durante uma competição.

Apesar de Zorro raramente trabalhar como líder de equipe, era um animal incansável, em que se podia contar como força extra, especialmente quando as coisas ficavam pretas. Durante uma subida de 900 metros até um pico chamado Eagle Summit, durante a Yukon Quest de 2008, foi Zorro que levou o time nas costas.

Aquela foi a prova mais difícil da carreira de Lance, e ele decidiu que Zorro, que já tinha oito anos, merecia um descanso. Então o deixou de fora da lista da Iditarod de 2008, já pensando em trazê-lo de volta para uma prova especial, duas semanas depois, que fecharia com chave de ouro a temporada que, Lance esperava, seria a melhor de todas. O Clube Nome Kennel estava organizando a All-Alaska Sweepstakes daquele ano, um evento esporádico que daria um prêmio de US$ 100 mil ao melhor corredor de trenó.

Na Sweepstakes, os 13 cães de Lance formavam uma equipe forte, mas não excepcional. Ele estava se esforçando para manter o terceiro lugar, tentando entender o que estava errado, quando uma rajada inesperada de vento virou seu trenó e arremessou os cachorros na neve fofa e profunda. Os danos ao trenó e à equipe foram mínimos, mas um cachorro saiu do acidente mancando. Infelizmente era Zorro.

Lance não teve opção a não ser carregar Zorro com ele no trenó, ainda que isso significasse 32 quilos a mais para a equipe puxar. Naquela noite, eles estavam confortavelmente posicionados à margem da trilha, quando veio a catástrofe: um bêbado pilotando uma moto de neve saiu da trilha e bateu em cheio no trenó, a 110 quilômetros por hora. “Foi como um caminhão atingindo um cavalo”, Lance disse. No último instante, ele pulou para fora do caminho, mas o Zorro estava no trenó quando aconteceu a colisão. No começo as lesões não pareciam graves, mas o cachorro foi piorando lentamente: ficou letárgico e sua língua comprida parecia nunca entrar de volta na boca. Lance deu um jeito de enviá-lo de avião para um veterinário em Seattle, acompanhado por Braxton, enquanto ele ficou para lidar com as questões legais a respeito do piloto bêbado.

Quando Lance chegou a Seattle, o acidente de quase-morte do Zorro havia se tornado uma notícia importante dentro e fora do Alasca. Cartas e pacotes começaram a chegar espontaneamente à casa de Lance, vindas do mundo todo. As pessoas enviavam dinheiro, petiscos caninos, cobertores e bilhetes de amor e incentivo. Quando Lance entrou na clínica, viu Zorro deitado na gaiola, conectado ao soro, profundamente adormecido. Sentou no chão ao lado da caixa e falou baixinho: “Zorro, velho amigo, como você está?”. O cachorro não abriu os olhos, mas deve ter se dado conta de quem estava falando. Sua cauda começou a bater forte.

Os veterinários não tinham certeza de que Zorro voltaria a andar, mas Lance logo começou o processo de reabilitação no Canil Comeback. Seis vezes por dia, ele e um dos rapazes passavam uma tipoia por baixo do corpo do Zorro e o colocavam em pé. No começo, o cão caía na mesma hora, mas em uma semana ele já tentava dar os primeiros passos. Quando Zorro conseguiu dar 15 passos, Lance soube que seu amigo voltaria a andar.

“Sua recuperação me fez lembrar da minha”, escreveu Lance em sua autobiografia. “E percebi o quanto Zorro era mais forte mentalmente do que fisicamente.” A carreira de competições do Zorro havia terminado, o que não era problema, já que ele estava prestes a se aposentar de qualquer forma. E, se conseguisse voltar a andar, Zorro conseguiria reproduzir. “Os genes dele são muito fortes”, diz.

É impossível dizer exatamente como um musher pode passar de dono do pódio a competidor mediano com a rapidez com que isso aconteceu a Lance, mas esse tipo de coisa não aconteceu só com ele. Há um padrão entre muitos vencedores da Iditarod e da Yukon Quest: um musher domina a cena durante alguns anos e, depois, cai no ostracismo. Aconteceu com Susan Butcher, Martin Buser e Jeff King. Lance é apenas o mais recente.

A melhor explicação talvez esteja nos cachorros. A base da matilha que levou Lance à grandiosidade agora aposentou-se, para levar uma vida de lazer no quintal do canil. Larry passa os dias em uma das poucas casas aquecidas da propriedade, um abrigo onde Lance deixa seus cachorros relaxarem depois das corridas de inverno. Zorro – antes ereto e esguio – agora luta para mover as patas traseiras. Sua anca está caída, fazendo com que ele se pareça com um velho lobo, e tufos de penugem branca embaraçada aparecem por entre a pelagem, que costumava ser toda preta.

Lance diz que faria qualquer coisa por Zorro, e é verdade. Ele se lembra de uma noite, mais ou menos um ano atrás, quando os cachorros ainda viviam em um morro acima da sua casa. Duas cadelas ficaram no cio ao mesmo tempo, e ele acordou com uma gritaria: Zorro estava tentando cruzar com elas. Lance pulou da cama e correu para ajudar o cão que, apesar de estar cada vez mais frágil, ainda carregava genes importantes. “Fui até lá de cueca e fiquei segurando-o até que terminasse”, contou. “Não tenho nenhuma vergonha de dizer que bati uma punheta para ajudá-lo a completar o negócio.” Enquanto Lance me mostrava a propriedade em uma manhã gelada, fez um sinal com a cabeça em direção à matilha e às casinhas dos cachorros. “A casa inteira é dele”, referiu-se ao Zorro. “Se ele quiser a minha cama, durmo no sofá. Se você estiver no sofá e ele quiser seu lugar, vou te dizer para sentar no chão.”

É claro que Lance sabe que o futuro gira em torno de outros cães. Se ele quiser reerguer sua reputação de musher, terá que reconstruir seu canil. E é exatamente o que vem fazendo nos últimos dois anos – apesar da má sorte, do envelhecimento dos animais e dos problemas pessoais. Durante o outono e o inverno, ele fica de olho nos melhores candidatos, tentando identificar quais cachorros são rápidos, resistentes, de mente forte e com bom apetite. Não é uma tarefa fácil, e há muitos fatores para compor um bom cão de trenó. Nenhum é mais importante do que a lealdade e a confiança no dono.

“Hora de ver meus bebês”, diz Lance, espalhando amor e tapinhas de casinha em casinha, enquanto caminha por entre os 18 cachorros que formam sua melhor equipe do canil. Nota-se a ausência de Maple, premiada cadela-guia: ela ainda estava amamentando os filhotes da última ninhada, nascida no mês anterior. Mas Lance ainda pode contar com Rev, um cão-líder veterano, identificável por ter uma orelha e meia.

Lance possui 76 casinhas de cachorro no quintal e ainda está no processo de selecionar os melhores animais para a temporada 2013. Sua estratégia atual: se um cão não demonstrou potencial para ser líder de um time, ou não for um veterano especial que mereça uma aposentadoria confortável, será vendido. “Não tenho tempo nem dinheiro para manter todos aqui”, conta.

Cães felizes saltam e latem enquanto ele oferece pedaços de salmão congelado. “Eu acho que vamos conseguir sair dessa”, diz, abaixando-se para que um dos empolgados animais possa lhe dar um beijo no rosto. “Vou precisar de um pouco de sorte, mas vamos conseguir.”

LAMENTAVELMENTE, AS COISAS NÃO FORAM MUITO BEM na Yukon Quest de 2013. Lance começou mal, com uma equipe promissora de cães, mas que estava um pouco lenta. Ele passou pelo primeiro PC na cola do líder, Allen Moore, porém caiu para sexto na segunda parada. As temperaturas estavam inexplicavelmente quentes, os cachorros não queriam comer e Lance tomou a dura decisão de cortar animais do time, pois a saúde dos cães é para ele sempre mais importante do que os resultados. Aos poucos foi deixando os cachorros em cidadezinhas pelas quais passava a prova. Na metade do caminho – mais de um dia atrás do líder e com apenas sete dos 14 cachorros originais ainda fortes o suficiente para correr –, ele fez algo que não acontecia desde a Iditarod de 2002: abandonou a corrida. Lance ficou chocado e envergonhado, além de inseguro sobre o que viria a seguir. A corrida foi a mais decepcionante de sua carreira.

“Foi como um soco no meu estômago.” O mais difícil foi que, pela primeira vez desde 2010, ele estava bem preparado e confiante em seus cachorros. “Eu fiz uma temporada boa, o tempo estava ajudando e minha atitude era positiva.” A matilha não era só grande e forte, mas “provavelmente a melhor equipe que a Quest já vira, mas eles quebraram depois de 80 quilômetros”.

Todos que seguem o esporte falam da atitude positiva de Lance, de como ele encara bem a má sorte. Mas o sentimento dele nessa edição da Quest foi arrasador. “Não sou do tipo que desiste facilmente das coisas, mas naquela situação senti que poderia jogar tudo para cima e me mandar. Deixar o canil para os rapazes e ir para um lugar onde ninguém me conhece.” Mais tarde, testes mostraram que um desequilíbrio de ferro nos suplementos dos cachorros fez com que perdessem o apetite. Segundo Lance, saber disso não tornou mais fácil aceitar sua derrota, mas pelo menos ele conseguiu “um pouco de paz de espírito”.

Quando Lance voltou para casa, começou imediatamente os preparativos para a Iditarod. Sua matilha principal estava em frangalhos, e ele tinha poucas semanas para treinar novos cães, inclusive dois que competiriam pela primeira vez. Ele não tinha escolha, a não ser baixar as expectativas. As chances de terminar em primeiro lugar eram poucas.

No meio da prova de 2013, o primeiro a chegar em Iditarod – a cidade-fantasma que marca a metade da competição e lhe dá seu nome – foi Lance Mackey. Ele bateu o segundo colocado, Sonny Lindner, por 91 minutos e abandonou apenas um cachorro, Stiffy, porque o filhote parecia estar desidratado. Foi um bom começo.

Mas Lance avisou a todos que seu time não era do mesmo calibre de antigamente, em seus dias de glória. Logo Lance e seu grupo começaram a perder ritmo, caindo para 13o em Unalakleet, a poucos dias da chegada. E mais três cachorros tiveram que parar. Ele perdeu um dos dentes que lhe sobravam: caiu quando comia caramelos durante o percurso. Um dentista lhe deu penicilina para afastar a possibilidade de infecção e Tylenol para aliviar a dor causada pela raiz exposta.

A corrida foi emocionante, com Mitch Seavey mantendo a liderança à frente de vários competidores, em um trajeto molhado e com um tempo inacreditavelmente quente. Tornou-se o mais velho vencedor da história do evento. Lance não fez bonito, mas melhorou seu resultado em comparação com os dois anos anteriores, terminando em 19o lugar, cerca de 13 horas atrás do ganhador.

Nenhum musher consegue vencer um desafio desses com cães medianos ou inexperientes, e assim segue o ciclo natural das coisas: boas equipes vêm e vão. A capacidade de um competidor em vencer novamente após a derrota depende da sua competência em reconstruir a si mesmo e a sua matilha. Jeff King conseguiu. As cinco vitórias de Rick Swenson ocorreram em 14 anos. E a única vitória anterior de Mitch Seavey fora em 2004. “Eles se reconstruíram”, disse Sebastian Schnuelle, comentarista da corrida. “O tempo dirá se Lance conseguirá o mesmo.”

Sebastian acredita que Lance possui dois pontos positivos que lhe dariam habilidade para se reerguer, se quisesse. O primeiro é sua incrível conexão com os cachorros. “Ele consegue obter dos animais muito mais do que todos nós juntos.” O segundo é sua “imensa positividade e motivação”. Segundo o comentarista, “com o câncer, Lance encarou problemas que poucos já tiveram que enfrentar e saiu vendo o lado positivo da vida. As coisas que botam muitos de nós para baixo, como pequenos problemas que nos afetam ao longo de uma prova, não são grandes questões para ele”.

Lance ficou na cidade para o jantar final da Iditarod, depois voou de volta a Fairbanks e, mais uma vez, foi difícil encontrá-lo. Eu achava que ele estava só descansando após uma temporada cansativa de corridas. Mas, nos últimos dias de março, Braxton Peterson escreveu um post no Facebook que me chamou a atenção. Dizia: “Fim do canil Comeback. Hora de recomeçar”. Enviei uma mensagem a Braxton, que me respondeu que ele e Cain Carter haviam deixado o canil. Uma semana depois, finalmente encontrei Lance.

Ele estava visivelmente irritado. Disse que os garotos haviam “ido embora para sempre”. Quando perguntei o motivo, respondeu: “Bom, só preciso dizer que são dois garotos”. E suspirou. Dava para sentir cansaço em sua voz, além de uma mistura de tristeza e raiva. “Eles fizeram coisas inaceitáveis. Eu fiz bastante besteiras quando era jovem, então sei do que estou falando. Em resumo: não posso ter esse tipo de coisa por aqui. É ruim para os negócios. Ruim para a reputação. Ruim para os cachorros”.

Lance contratou alguns tratadores para ajudar a socializar um grupo grande de filhotes e jovens cães enquanto ele e sua namorada, uma violoncelista, saíam em uma turnê de palestras. Eu o lembrei do que ele me havia dito: se não vencesse uma das duas corridas, ou pelo menos conseguisse uma boa colocação, iria desistir da carreira de musher. “Presumo que você tenha mudado de ideia”, eu disse.

“Não mudei, não”, respondeu. “Na verdade, vendi meu time principal de cães quando terminei as provas. Vou tirar uns anos de folga, experimentar coisas novas, redescobrir meus interesses e reencontrar meu entusiasmo. E ganhar dinheiro. Estou quebrado.”

Eu citei uma frase que Lance havia dito durante a Iditariod: que sua equipe estava crua ainda, mas que seria capaz de vencer em 2014. “Ah, aquele time poderia vencer. Eles têm um futuro brilhante. Mas eu não tenho como treinar, alimentar e competir adequadamente.” Então ele vendeu 20 de seus melhores cães para o musher Sonny Lindner, mantendo apenas seus cinco cachorros-líderes da velha guarda – Rev, Amp, Munch, Mare e Maple – e 55 filhotes. “Se eu decidir competir novamente, terei uma equipe excelente daqui a dois anos.”

Foi exatamente assim que Lance começou em 2002, com filhotes que ele mesmo criou. “É o que eu farei de novo. Apertei o botão de “reset”. Limpei a casa – tratadores, ex-mulher, cachorros velhos. É um recomeço completo e total.” Não foi fácil tomar essa decisão. “Quando coloquei os 20 cachorros na caminhonete do Sonny, foi o dia mais difícil da minha vida”, contou. “Passei por muita coisa ruim, mas essa foi a mais difícil que já enfrentei. Eram meus bebês. Mas Sonny tem dinheiro, não vai economizar em comida. E posso vê-los em ação. Os melhores times vencendo com cachorros ou crias do meu canil. Isso, por si só, é uma grande satisfação.”

Revelou ainda que, no fundo, nem queria muito participar da Iditarod de 2013. “Eu preciso dar um passo atrás, respirar fundo e recuperar meu amor pelo esporte. Eu não comecei isso tudo para vencer a Iditarod. Comecei para me divertir com meus cachorros.”