O gene do esqui


ALTA MONTANHA: Entre nuvens e Bella Coola, Colúmbia Britânica, Canadá

Por Nick Paumgarten
Fotos por Paolo Marchesi

NUMA MANHÃ DE FEVEREIRO DE 2006, meu pai deu de cara com uma árvore enquanto esquiava. Era uma árvore morta – sem galhos ou casca, cinzenta, da mesma cor do céu, e talvez parcialmente escondida atrás de uma árvore maior e mais saudável, da qual ele tinha acabado de desviar. Bateu nela com tudo, de cara, e o impacto o lançou rolando por uma encosta íngreme abaixo, deixando uma trilha de equipamento e sangue.

Nessa hora eu estava numa clareira mais embaixo e do outro lado da encosta, longe demais para ver o acidente, esperando meu pai aparecer feliz da vida do meio dos pinheiros. Fazíamos parte de um grupo de 12 clientes de uma operadora de esqui que trabalhava na região de Kootenay, perto de Nelson, na província canadense de Colúmbia Britânica. Nosso guia, como é de praxe, nos instruiu para que quando esquiássemos no meio das árvores, formássemos duplas para o caso de alguém se perder, atolar ou se machucar. Há anos meu pai e eu não seguíamos essa recomendação muito à risca. Como adoramos a neve tipo powder, saíamos à toda pela mata e só nos perguntávamos onde estava o outro quando chegávamos ao final da descida. Mas, dessa vez, eu esperei: tinha me separado do grupo, como é comum com quem adora a neve como eu, e tive que retornar seguindo minha trilha para encontrar a do guia. Queria ter certeza que meu pai tinha feito a curva.

Ele não fez. É possível que, ao tentar acompanhar a minha trilha, ele não tenha visto a árvore. Não tenho como saber. Não vi acontecer. Ele só foi parar depois de deslizar por metade do caminho. Cego, mas ainda consciente, começou a gemer por ajuda. Depois de alguns instantes ouvi esses gemidos e escalei a encosta para chegar até ele. O último esquiador do grupo, que serve como guia-assistente e que carregava um rádio, chegou nele na mesma hora que eu. Meu pai estava sentado na neve powder funda. Ele não usava capacete. Assim que o vi – seu rosto coberto de sangue e feridas a tal ponto que não dava para reconhecê-lo; olhos tão inchados que nem conseguia enxergar; escorrendo sangue da boca e nariz; falando coisas sem sentido, de um jeito bastante preocupante – senti que meu pai estaria morto em poucas horas.

Dali a três dias – depois de uma difícil remoção com trenó e helicóptero, uma série de viagens de ambulância para hospitais maiores, muitas horas sombrias e depois, aos poucos, uma ou outra boa notícia – eu já era capaz de recordar o momento exato no qual passou o sentimento ruim, quando realmente acreditei que ele ficaria bem. Foi no hospital em Nelson, quatro horas depois do acidente. A enfermeira disse para meu pai, naquela voz alta de falar com idosos que às vezes as enfermeiras usam (meu pai só tinha 60 e estava em ótima forma), que ela cortaria as roupas de esqui dele.

“Ah, não vai, não”, retrucou, com uma impressionante clareza para quem tinha fraturado o crânio e quase todos os ossos da face. Acharam que ele estava brincando, mas estava falando muito sério. O cara adora seu equipamento.


TAL PAI, TAL FILHO: O autor desta matéria, Nick Paumgarten Júnior, e seu pai

MEU PAI SE RECUPEROU sem maiores problemas. Ganhou um nariz novo, já que o velho virou um air-bag ao amaciar o impacto e não poderia ser usado novamente. A testa, no final das contas, é ainda mais dura entre os olhos. Ele saiu da situação praticamente sem alterações. Talvez tenha ficado com uma aparência um pouco mais velha, e perdeu os sentidos do olfato e do paladar, mas a voltagem elevada e as tiradas impertinentes permaneceram intactas. Ele se sentia sortudo por não ter morrido, com uma nova compreensão (como se já não tivesse isso) de como esquiar pode ser perigoso.

Meu pai aprendeu a esquiar quanto tinha três anos de idade, na Áustria, terra natal do pai dele. Meu avô era esquiador e alpinista e competiu pela Áustria nas Olimpíadas de Lake Placid, em 1932, mudando-se para os Estados Unidos depois dos jogos. Enquanto dava aulas de esqui em New Hampshire, conheceu uma mulher da Filadélfia com quem se casou e teve cinco filhos. Depois da Segunda Guerra Mundial, comprou uma casa em St. Anton, na Áustria, para onde levava a família nas férias de inverno. Meu pai, o caçula, passou dois invernos esquiando lá com o pai e a tia, que também era esquiadora, campeã mundial. Mas quando meu pai tinha seis anos, meu avô foi morto por uma avalanche enquanto esquiava sozinho numa encosta íngreme de St. Anton. Duas décadas depois, em 1972, uma das irmãs do meu pai morreu em outra avalanche em Aspen. Ela também esquiava sozinha e encontraram seu corpo soterrado só de noite. Fica uma sensação que a má sorte da montanha nos segue. Simplesmente mencioná-la já parece arriscado.

Eu também aprendi a esquiar aos três anos de idade, primeiro numa pista para passeios de cachorro no parque Carl Schurz, atrás de Gracie Mansion, em Manhattan, Nova York, e depois nos morros de Vermont. Meus pais me ensinaram tudo e nunca colocaram a mim ou meu irmão mais novo em escolas de esqui. Alguns anos depois, nos levaram para o oeste dos EUA e depois para a Europa, onde nós todos pegamos o gosto por esquiar fora dos limites das estações, primeiro por conta própria e depois – após meu pai ser apanhado por uma avalanche enquanto esquiava comigo em Verbier – na companhia de uma guia. Isso nem sempre nos mantinha longe de problemas – ainda sou assombrado pela lembrança da vez em que fiquei pendurado numa versão para fracotes de uma cruz de ferro, sobre uma fenda perto de Zermatt –, mas possibilitava que tentássemos trilhas cada vez mais ambiciosas e remotas. Esquiar se tornou a coisa de que mais gostávamos de fazer. É difícil pensar em outra coisa que nos dê tanto prazer ou nos aproxime tanto. Nós vivemos para isso.

Meu pai e eu voltamos para a Colúmbia Britânica no final do outono de 2007, 17 meses depois do acidente. Almoçamos no fim de 2006 em Nova York com Beat Steiner e Peter Mattsson, os donos de uma operadora de heli-esqui chamada Bella Coola Heli Sports. Eu já tinha ouvido falar da região de Bella Coola e me maravilhei com fotos e filmes feitos lá. Ela tinha ganhado uma reputação de ter alguns dos melhores terrenos alpinos do planeta: quase 1,5 milhão de acres de terreno ermo e escarpado nas Montanhas Costeiras, 435 quilômetros a noroeste da cidade de Vancouver. Por causa de alguns recentes ajustes na tolerância de risco e outras considerações (tempo e dinheiro) eu achei que, enquanto Mattsson e Steiner falavam de seu paraíso, eu nunca o veria.

Mattsson, um sueco e experiente guia, conhecido nos círculos de esquiadores como O Sueco, parecia completamente pirado: agitado, brusco e incrivelmente persuasivo. Começou a falar sobre junho em Bella Coola. As montanhas, disse, ainda estavam cobertas de neve firme e se você chegar na hora certa, poderá aproveitar uma neve de primavera absolutamente perfeita, também conhecida como corn (milho), com 1.300 metros verticais sem interrupção. Dava para encarar as elevadas encostas sem medo de avalanche.

“E não tem árvores!”, bradou, tirando uma da cara do meu pai. O esqui é quase todo acima da linha das árvores, até a neve ficar fofa demais. De tarde, pescariam nos rios locais, cheios de salmão.

“Tô nessa”, disse meu pai. Para o desespero das pessoas que o amam, ele já planejava novas viagens de esqui. E do mesmo modo que em outonos passados, ele começou a organizar suas roupas de esqui em pilhas no quarto de hóspede da casa dele, em Long Island. E eu me vi, apesar de promessas contrárias, tentando me incluir no plano.

Meu irmão, Xander, 36, um corretor de imóveis em Stowe, no estado canadense de Vermont, afirmava que meu pai e eu tínhamos a tendência de nos meter em problemas quando esquiávamos juntos. Ou seja, ele meio que me culpava porque eu estava no local do acidente, e culpava a si mesmo porque ele não estava lá. Ele foi conosco para Bella Coola para tentar quebrar a maldição.

A viagem, como muitas outras, deixou minha mãe morrendo de medo. Ela ficaria em casa. Ela é uma ótima esquiadora, mas tem medo de altura e acredita muito no poder da intuição, e por isso tende a ter maus pressentimentos. E, além disso, quem já ouviu falar de esqui em junho?

Parecia mesmo absurdo. Mas durante o nosso vôo de Vancouver para Bella Coola, ao passar pelos campos de gelo do monte Waddington, vimos que havia neve de sobra. Nunca tínhamos visto um terreno tão vasto. Parecia os Alpes, mas jurassicamente desprovido de sinais de ocupação humana. De certo modo, tudo aquilo pertencia a Steiner e ao Sueco e, portanto, a nós.

CHEGAMOS SOB UMA LEVE GAROA, com o verão à toda – flores, beija-flores, grama verde e abundante. Em 2003, Steiner e o Sueco abriram uma operadora em Tweedsmuir Park Lodge, um refúgio de 80 anos dentro de um parque a 40 minutos do aeroporto pelo vale de Bella Coola. A maior parte dos hóspedes de inverno ficava em isolados chalés ao redor de uma clareira, de onde o helicóptero os apanhava todas as manhãs. Mas, como cobaias do experimento de junho de esqui-e-pescaria do Sueco – que ele batizou de Springs&Corn para imitar o Kings&Corn, um programa similar que existe há nove anos no Alasca – a gente se sentiu, no meio dessa bela paisagem e de nossas preocupações meteorológicas, uma dupla de otários.

A previsão do tempo não era das melhores. Uma frente de baixa pressão estacionara na costa, ameaçando mandar nuvens e chuva em nossa direção por uma semana inteira. E outras chuvas já tinham aumentado o nível dos rios, conforme descobrimos naquela tarde, quando partimos numa pequena frota de botes para pescar no Atnarko, que passa perto dos chalés. O rio estava lamacento e caudaloso e não havia salmão à vista. Pescando com iscas e arrastando linhas, lutamos com a água sentindo cada vez mais desesperança. Quando olhei para meu pai, que olhava para as montanhas melancolicamente, me ocorreu que ele odiava pescar. Nunca tinha visto ele com uma vara na mão.

Não demorou até ele começar a encher o nosso guia, um bella-coolano chamado Jim Knudsen, para tentar remar o bote. “Que desleixo, Jim”, disse, enquanto o guia se esforçava para pegar uma contracorrente. Meu pai é um ávido canoísta de corredeiras há 20 anos, embora leve seus caldos ocasionais, sendo que foi campeão de remo na universidade. E estava a fim de experimentar Atnarko. “Não vai rolar”, respondeu Jim. Soou como uma regra inviolável. Assim como a placa que estava na porta dos chalés na manhã seguinte, junto com o som desanimador da chuva: “Nada de esqui hoje”.

Mas no outro dia a nossa sorte mudou. O helicóptero nos deixou às 8 da manhã no topo de uma encosta coberta de neve. As nuvens e a neblina cobriam e depois revelavam espetaculares montanhas – as Tetons – e muito terreno bom para esqui, indo do mais fácil ao completamente pirado. Enormes glaciares, grandes esporões de granito e dezenas e dezenas de canais e rampas. A paisagem era uma colcha de retalhos sem fim de branco e marrom e as montanhas nuas pareciam ainda mais complicadas no verão. O vôo de helicóptero, passando por buracos nas nuvens, picos e vales, virou minha cabeça. Ríamos uns para os outros como macaquinhos. Sim, esqui hoje. Vai rolar.

Uma camada quase imperceptível de neve nova havia caído no alto da montanha. A superfície estava firme, mas macia, refinada pelos elementos. Na primeira descida parecia que estávamos esquiando em pedra-pomes. Mas do lado sudeste, em terreno virado para o sol matutino (por mais fraco que fosse), a neve tinha uma consistência granulosa, como se fosse milho. Esqui na primavera é complicado. Quando a gente cai, pode ser difícil parar de escorregar. Quinze anos atrás, esquiando numa amanhã de junho, vi uma amiga perder um esqui e descer escorregando encosta abaixo até um precipício. Ela rolou por um campo de pedras até uma parte sem neve, de mata fechada. Foi horrível. Resgataram-na de helicóptero. No final, ela ficou bem: outra sortuda. Mesmo assim.

Meu pai esquia como uma águia, com os braços abertos, do jeito clássico. Para ele, esquiar desleixado é sinal de mau-caráter. Em nossa segunda trilha – uma descida de 1.200 metros chamada King Richard – ele estava seguindo por um vasto campo moderadamente coberto de pedras quando seu esqui escapou. Ele raramente cai, mas dessa vez caiu como se tivesse levado um tiro. Começou a deslizar. O outro esqui também foi lançado para longe. A neve voava enquanto ele tentava se segurar. Não havia nada em volta para ele colidir ou cair, mas ainda assim vê-lo a centenas de metros de distância, ganhando velocidade e completamente indefeso, me fez lembrar – uma preocupação que geralmente aflige mais aos pais que aos filhos – que nem sempre dá para controlar o que acontece com os outros. O universo faz de nós o que lhe apetece.


TODO SANTO AJUDA: O irmão do autor, Xander, numa curva perfeita no glaciar do vale de Tsini Tsini

Depois de um tempo ele parou de deslizar, é claro, e fez sinal que estava tudo bem. Nós rimos e nos perguntamos se alguém tinha tirado uma foto. Não foi nada de mais, afinal. Mas mostrou que, mesmo na primavera, com neve estável e sem árvores, um pequeno erro perto de pedras ou precipícios pode ter enormes conseqüências. Nosso guia, Paul Berntsen, nos manteve longe das pistas técnicas. Mais tarde, perto do sopé de uma longa e espetacular trilha chamada Vishnu, após uma curva, quase caímos num buraco dos grandes. Era um rio que surgia do nada, correndo debaixo da neve por um túnel natural.

Diferentemente das operadoras mais tradicionais e conhecidas de heli-esqui, como a CMH e a Mike Wiegele, em Bella Coola os helicópteros são pequenos e leves, o programa é flexível e os guias estão mais abertos a sugestões. Acaba sendo uma experiência mais personalizada e extravagante de muitas maneiras – totalmente obscena, na verdade – e, ao mesmo tempo, mais rústica e alpina. O terreno é tão vasto e o número de clientes tão baixo que não é necessário cuidar da neve, como se diz: nada de poupar as trilhas. Dentro do razoável, você pode seguir o trajeto que quiser. Os grupos são pequenos – quatro ou cinco passageiros por vôo – então não é preciso passar pela ansiedade (por mais imperdoável que seja) de ficar disputando trilhas com dezenas de outros fissurados e egoístas.

Durante nossa viagem, o helicóptero – um AStar pilotado por um quebequense cheio de artimanhas chamado Richard Lapointe, que enfiava e tirava a aeronave de lugares difíceis como se fosse uma extensão do seu corpo – servia a dois grupos. O outro era formado por dois empresários de prospecção da Colúmbia Britânica e um pai e um filho da Escócia, que estavam com um amigo também escocês e a mãe e avó islandesas do filho, que não esquiavam. Os dois grupos pulavam de uma vale remoto para o próximo, sem quase nunca precisarem esperar. Nós nos alternávamos com alegria no uso do apertado AStar, lutando uns com os outros pelos cintos de segurança. Na primeira manhã, em poucas horas, esquiamos sem pressa por 6 mil metros.

O dia inteiro teve um ar meio alienígena. A luz mudava constantemente, com o céu escurecendo e clareando de repente. As distâncias eram difíceis de medir. Bergschrunds – fendas formadas quando um glaciar se separa da neve compactada – surgiam repentinamente sob nossos pés. As trilhas terminavam em neve ruim, salpicada do que se chama “taças de sol” ou perfuradas pela chuva. Várias vezes, enquanto esperávamos pelo helicóptero, os mosquitos nos atacavam e o ar parecia úmido e quente. Nossa última volta foi num glaciar móvel, que se erguia contra um par de torres de granito no início do vale de Tsini Tsini. Meu pai e eu subimos numa elevação do terreno, saboreando a visão de um anfiteatro muito irado, enquanto meu irmão descia nele, 300 metros abaixo. Um minuto num lugar deste pode fazer o seu ano.

EM 1932, MEU AVÔ se juntou a uma expedição de estudantes de Harvard rumo às montanhas costeiras, 950 quilômetros a noroeste de Bella Coola, na cordilheira Fairweather, na faixa de terra que se estende no Alasca. O grupo, liderado pelo alpinista e fotógrafo Bradford Washburn, tinha a intenção de escalar os 3.879 metros do Crillon, um dos picos mais altos da cordilheira, e vasculhar a região. Para isso, tinham o verão inteiro.

Depois meu avô escreveu um longo relato da viagem, que foi publicado no jornal do clube alpino alemão e austríaco. Seu estilo era clínico e operático, como o costume naquela época (“A costa, em sua porção meridional, é aterradoramente recortada e dividida em baías, que marujo algum ousaria adentrar”). Os membros da expedição chegaram em junho e fretaram um avião que os levou à remota baía na base da cordilheiras, de onde transportaram 700 quilos de equipamento pelo glaciar acima, até o acampamento-base próximo à linha das árvores. Desde que chegaram, viram-se engolidos por neblina e chuvas torrenciais. Ao longo do verão inteiro o clima os impediu de subirem os picos mais altos.

Uma ou duas clareiras lhes deram um gostinho da majestade das montanhas e uma chance de se divertirem nos campos de neve acima do acampamento: “Aqueles dentre nós que buscava um prazer especial partia para esquiar ao entardecer”, escreveu.

Mas então voltou a chover, dessa vez por semanas sem trégua. “Estamos absolutamente desencorajados pelo tempo adverso”, relatou. “Não podemos realizar qualquer tipo de exploração, tampouco podemos levar nosso equipamento para o mais alto”.

Durante sua subida, uma tempestade das grandes os atingiu, forçando-os a voltar. Não lhes restaram escolha se não recolher tudo e ir embora. Setembro chegou e um barco esperou por eles na baía, para levá-los para casa. Meu avô, que era um cara saudável e abstêmio, terminou seu relato com uma observação final: “Mesmo os índios que se assentaram aqui foram destruídos pela umidade, embora o fim deles tenha certamente sido apressado pela influência destrutiva da vodka e do uísque”.

Ah, a umidade. É claro que estávamos numa situação melhor que a do meu avô há 75 anos. Não éramos alpinistas, éramos clientes pagantes, indulgentes esquiadores recreativos. Mas nossa janela de oportunidade era bem menor – uma semana, em comparação aos dois meses e meio – e, portanto, também ficamos absolutamente desencorajados pelo tempo adverso. Mas era possível que a nossa estadia em meio à umidade tenha sido aliviada pela influência benéfica da bebida. Ao longo da semana tivemos mais dias de espera do que ação e bebemos para valer. Os outros hóspedes também acumulavam pilhas de latinhas de cerveja vazias por onde passassem, como aquela nuvem de poeira que segue o Chiqueirinho nas tirinhas do Snoopy. Nosso grupo fez o melhor possível para manter o ritmo, mas na noite final não conseguimos. Nessa noite, que era a do solstício, o Sueco, vestido com um moletom de imitação de veludo e com bijuterias bizarras, desafiou seus hóspedes para uma competição de canções de bebida.

Nós, norte-americanos, percebemos que não conhecíamos nenhuma – o preço que se paga por crescer cantando Bruce Springsteen.

O terceiro dia foi completamente perdido: nada de esqui, não vai rolar. “Cresce fungo em cimento aqui?”, brincou Richard, o piloto. Em vez disso, descemos de bote um longo trecho do rio Bella Coola. Vimos águias carecas em toda parte, mas salmão que é bom, nada. Jim, o guia, ainda não deixava meu pai assumir o remo e este não desistia de tentar. Ele pedia de novo a cada 10 minutos. “Você perdeu uma remada ali, Jim”, dizia. “Já te falei que fui campeão nacional?”

Havia três botes. Um era guiado por Les Koroluk, um nativo local falador com a jovem esposa tailandesa, que alegava ser capaz de preparar em uma hora 24 iscas para peixe feitas de penas. O líder dos guias, uma figura de aparência severa chamada Kenny Corbould, mal abria a boca. De tempos em tempos ele molhava uma escova de dente no rio e limpava seus dentes. Ficamos nos perguntando se a boca dele tinha alguma substância que atraía salmões. Todos os três guias estavam incomodados com as águas elevadas e a ausência de salmões, assim como o Sueco. “Não tenho certeza sobre esse lance de pescaria”, resmungou daquele seu jeito característico. Começou a ameaçar contratar guias de pescaria nativos, para que pudéssemos usar redes. Mas, naquela noite, Woody Tribe, um dos guias de esqui, relatou que, ao sair para pescar sozinho, apanhou um peixe de 20 quilos. “Quando ele bateu na margem foi como um terremoto”, contou. Depois de uma longa luta, o peixe escapou.


DUPLA QUASE INSEPARÁVEL: Pai e filho em King Richard

PARTIMOS DE HELICÓPTERO na manhã seguinte, furando as nuvens e a neblina em busca de algumas trilhas. A luz e a temperatura ainda variavam de um jeito doido, mas as pistas estavam excelentes, incluindo a melhor de todas na viagem, uma descida glacial de 1.500 metros chamada French Connection: um percurso no topo de neve fresca de inverno, que depois dava lugar a quase dois quilômetros de um perfeito “corn”. Acabamos num bosque e, após tirarmos os esquis dos pés, andávamos ao redor com um contentamento parecido com aquele de depois do sexo. Meu pai abraçou Xander e eu – gesto que indicava o equivalente emocional de um alinhamento planetário. Ele experimentara o que havia de melhor, e estava com seus meninos. Além disso, ele ficou com medo no topo, por causa do ponto de pouso muito exposto. “Eu não tinha gostado daqui”, contou.

“Eu sei que não”, respondeu Xander. “Eu também não”.

“Sabe quem realmente não teria gostado?”

“A mamãe”.

Mas ela teria gostado da neve. Corn é como heroína. Quanto mais você experimenta, mais quer. Mas na nossa descida seguinte a neve mudou – com partes molhadas escorregadias – e a manhã terminou de forma abrupta. Seria nossa última esquiada.

Mesmo assim, nosso bom humor resistiu. Sabíamos que as coisas às vezes são assim mesmo e ter esquiado um pouco que seja, sem incidentes, já foi muita sorte. E como era junho, o próximo inverno nem estava tão longe assim.

Em nosso último dia inteiro, voltamos para o rio, descendo a parte de baixo do Atnarko até a junção com o Talchako, onde, anunciou o Sueco, com certeza haveria salmão. Pescamos nas piscinas naturais do lugar, sem resultados, e nos resignamos com outro passeio cênico. Meu pai voltou a encher o saco do Jim, anunciando mais uma vez seu currículo de remador. “Já apareci na Sports Illustrated duas vezes!” Contou uma história de seu tempo de faculdade, quando remou no rio Schuylkill, na Filadélfia, e encontrou um cadáver no rio. “Era o cara que não me deixava remar”, concluiu.

Faltando 1,5 quilômetro para a chegada, durante um desses momentos de silêncio que rolam em passeios de bote, Jim de repente disse “está pronto?”. Ele liberou os remos e meu pai assumiu a posição. Jim se sentou ao seu lado, na proa, e anunciou que não sabia nadar.

Meu pai nos guiou pelo meio de um monte de toras flutuando na água, entrando em águas mais rápidas, que Jim pedira que evitasse. O bote foi oscilando em meio às ondas, com o rio golpeando por todos os lados. Jim ficou sentado, tenso, com as mãos pousadas nas coxas. “Nervoso?”, perguntei.

“Eu nasci nervoso”, foi a resposta.

Nosso novo capitão não parava de sorrir.

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de junho de 2008)