Mim quer remar


NA RAÇA: Alfredo (esq.) e "Toyberto" deslizam seus pranchões pelo rio Xingu

Por Piti Vieira
Fotos por Kristina Kala

O BAIANO ALFREDO VILLAS-BÔAS, 44 anos, foi um dos primeiros big riders a encarar as ondas gigantes de Jaws, na ilha havaiana de Maui, onde mora. Ele chegou lá em 1990, para surfar, e acabou ficando. Aos poucos, Alfredo conquistou respeito dentro e também fora d’água, até que, em 1996, foi efetivado como salva-vidas do Estado (Ocean Safety Officer é o nome oficial do cargo). Vinte anos depois, o brasileiro, que hoje é casado com uma havaiana, resolveu conhecer o Parque Nacional do Xingu e fazer um documentário sobre e seus habitantes, a fim de provocar um maior diálogo sobre a construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte – que será a terceira maior do mundo em capacidade instalada, atrás apenas das usinas de Três Gargantas, na China, e da binacional Itaipu, na fronteira do Brasil com o Paraguai. Detalhe: para isso, ele remou um total de 85 quilômetros em cima de uma prancha, praticando outra paixão que alimenta, o stand up paddle (SUP).

Alfredo é parente dos irmãos Villas-Bôas, os maiores indigenistas que o Brasil já teve, idealizadores da reserva que foi a primeira terra indígena homologada pelo governo federal, em 1961. No começo de outubro, ele e mais três amigos – Cristiano Fabrizzi (responsável pela filmagem), Marcelo “Toyberto” Abreu (atleta de SUP) e a fotógrafa Kristina Kala – partiram rumo a São José do Xingu, no Mato Grosso, a 60 quilômetros do parque. De lá eles saíram, Alfredo e Marcelo de SUP e os outros de barco, para cobrir os 60 quilômetros até a aldeia Piaraçu, comandada pelo cacique kaiapó Megaron Txcurramãe. “Todo dia eu pesquisava maneiras de navegar o imenso rio Xingu para conhecer as pessoas que conheceram os Villas-Bôas”, conta ele. “A expedição foi alucinante, um sonho. Mas todo o tempo estava pensando na segurança da nossa expedição, pois esse é o meu ramo aqui em Maui. Nenhum de nós poderia se machucar de nenhuma forma. Estávamos a mais de 500 quilômetros de qualquer hospital.”

O rio Xingu nasce em Mato Grosso, corta o Pará e deságua no rio Amazonas, 1,8 mil quilômetros depois. Embora a usina de Belo Monte esteja prevista para ser construída no Pará, os índios mato-grossenses afirmam que não se pode esquecer que o rio nasce nesse Estado. “O cacique Megaron acredita que o rio será atingido em toda a sua constituição e que todos os povos indígenas que dependem dele serão prejudicados”, diz Alfredo. “Não podemos ficar esperando que o governo se preocupe com os índios, por isso é preciso lutar.” O projeto da usina já foi aprovado e ela deve começar a operar em fevereiro de 2015, com as obras estendendo-se até o fim de 2019. Leia a seguir a entrevista que Alfredo Villas-Bôas concedeu à Go Outside, por e-mail, sobre a Xingu Expedition (xinguexpedition.blogspot.com).


FORA D’ÁGUA: A parte chata de deslocar as pranchas

GO OUTSIDE: Como surgiu a ideia da expedição?

ALFREDO VILLAS-BÔAS: Sempre tive vontade de visitar esse lugar especial com um povo idem, sendo eu um Villas-Bôas e tendo o senhor Orlando e os outros irmãos Villas-Bôas [Cláudio e Leonardo] como meus heróis. Isso, misturado ao fato de viver com uma índia havaiana com quem tenho duas filhas gêmeas, acendeu em mim o fogo de ir até o Xingu visitar o cacique kaiapó Megaron Txcurramãe, da aldeia Piaraçu, na Terra Indígena Capoto-Jarina, nordeste de Mato Grosso, quase na divisa com o Pará [onde caiu o Boeing 737-800 da Gol, em setembro de 2006]. Após vê-los em vídeos no YouTube, protestando contra a construção da hidrelétrica de Belo Monte, comecei a estudar as maneiras possíveis de chegar até o Mato Grosso e tentar filmar um documentário sobre eles.

Por que ir até lá de stand up paddle?

Fui remando na minha prancha, pois remar é minha paixão. Meu objetivo é expor os problemas das tribos do Xingu e também divulgar esse novo esporte, que é o stand up paddle.


POSE PARA FOTO: Alfredo posa com Marcelo e um membro da aldeia

Qual o seu grau de parentesco com os irmãos Villas-Bôas?

Sei apenas o que meu pai, Adilson Longo Villas-Bôas, me disse: somos parentes do senhor Orlando Villas-Bôas.

Os índios sabiam que você chegaria? O que eles acharam de você chegar remando em cima de uma prancha?

Falei com o cacique Megaron por telefone e ele me pediu para mandar um fax com o meu pedido de visita. Ele me disse: “venha direto para a minha aldeia”. Eles estavam à minha espera, no dia 4 ou 5 de outubro. Pedi ajuda ao cacique para levar os equipamentos e algumas pessoas da equipe, e ele me ofereceu barco, piloto etc. Quando falei que ia com a minha prancha, eles deram muita risada, dizendo que lá não tinha onda. Mas expliquei que era uma prancha grande como uma canoa e eles entenderam.

Você sempre teve essa cultura de respeito à civilização indígena? Como isso começou?

Tenho sangue índio por parte da família do meu pai; o meu avô Alfredo dos Reis Villas-Bôas era caboclo e sempre tive sonhos predizendo coisas do futuro. Contudo, foi aqui no Havaí que fui iniciado pelo pajé Kaipo Kaneakua, que me treinou para ser um Kahuna (aquele que mantém escondido o segredo de todas as ervas e minerais), ou seja, aqui sou médico havaiano. Uso ervas,

minerais e minhas próprias mãos e rezas para a cura.

CONVIVÊNCIA: Conversando com o Pajé

Como você se preparou para a expedição?

Remava de três a quatro horas por dia, sete dias por semana, numa área que era quase como um rio, bem calma.


Em geral, o SUP é feito no mar. Como foi remar tanto tempo no rio?

Foi muito fácil, era como navegar nos céus, com muita paz e realização espiritual. No total, remamos 85 quilômetros pelos rios.

Que equipamentos e suprimentos você levou?

Baterias, lanternas de mão e de cabeça, rádios comunicadores, 400 litros de gasolina, 50 litros de diesel, laptops, telefone satelital, GPS, capacetes, coletes de impacto, três pranchas de SUP – uma 14’ Glyde, uma 10’ softop e uma 9’03 –, binóculos, carregador solar, facão, pé de pato, roupa de borracha, água, comida, material de acampamento, rede de mosquito, rede para dormir… Mais ou menos 500 quilos de bagagem extra.

Quais as dificuldades que encontrou pelo caminho?

Colocar todas as pranchas e bagagens dentro do ônibus da companhia Xavante – única que iria para o nosso destino, São José do Xingu – foi um perrengue. Meus cartões de crédito foram bloqueados várias vezes em transações nos postos de gasolina e nos caixas eletrônicos, nos deixando quase sem dinheiro. Passamos fome nos últimos dias nas aldeias.


FILMAGEM: Para o documentário

Onde vocês dormiram quando estavam nas aldeias?

Em cada aldeia abriram espaço numa casa em que eles se reúnem, superlimpa, para pendurar as nossa redes para dormir. No total foram duas noites e três dias dentro das aldeias.

O que você aprendeu com essa expedição?

Que enquanto aqui nós temos tudo para viver, eles quase nada têm de infra-estrutura e vivem muito felizes – inclusive os idosos, que continuam trabalhando para o bem-estar de todos. Que temos que proteger o lar dos índios do Brasil, pois são eles os verdadeiros primeiros habitantes do país. E que na próxima vez terei que fazer a viagem com o financiamento de um patrocinador que suporte minha missão.

O que a sua vida no Havaí tem em comum com a vida dos índios do Xingu?

Todos os povos indígenas do mundo têm o mesmo sofrimento, opressão, escravidão, roubos de terra e de água dos rios ou dos recursos naturais. Aqui, vejo os havaianos, que me passaram o segredo do curandeirismo, vivendo em harmonia com plantas, animais e pessoas. A semelhança é essa: ser nativo é sobreviver usando recursos naturais.

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de Janeiro de 2011)