Por Maria Clara Vergueiro
CAI A NOITE, TODOS DORMEM. As vias pulsam com menos carros, num ritmo mais contínuo. A paisagem é da cidade que começa a se recolher. Para muita gente essa é a melhor hora do dia para subir na bike, correr, fazer trilhas, surfar, curtir o rolê de skate com os amigos. Dormir? Essa é a última preocupação de quem prefere aproveitar a cidade depois das oito da noite ou mesmo na madrugada.
Nos anos 1970, os surfistas do Arpoador, no Rio de Janeiro, já emendavam as ondas do fim de tarde com as baterias noturnas, sob a iluminação recém-instalada que fazia jus à fama do point mais quente da cidade. Lançavam assim mais uma moda ou, no mínimo, uma boa ideia que perdura – tanto que no último verão carioca pipocaram nos jornais e revistas locais reportagens sobre a febre de ir à praia à noite para aplacar o calor da cidade. O produtor e perito em imagens subaquáticas Gustavo Marcolini, 39 anos, é um dos adeptos do mar noturno. Há três anos ele aproveita o horário nobre para invadir as águas do Arpoador ou de Copacabana para remar no pranchão de stand up em dias de pouca ondulação. “Para quem faz outras atividades no mar, a noite pode ser um horário mais perigoso. Mas para a prática do stand up é bem tranquilo, o mar não tem crowd nenhum”, diz ele. Com Gustavo, outros amigos se encontram duas vezes por semana para aproveitar o mar flat, treinar remadas, ganhar equilíbrio e força nos músculos do tronco, e finalizar o dia em grande estilo.
Nos parques e nas ruas, alguns amantes da corrida também podem ser vistos nas sombras da noite. A personal trainer Cristiane Bunduki, 27, que costuma treinar grupos em São Paulo, observa que existe uma diferença no perfil dos alunos noturnos. “Em geral, quem treina à noite tem um ritmo de trabalho mais puxado e funciona melhor nesse horário. Além disso, esses alunos costumam sair menos, o que preserva melhor os resultados.” O publicitário Matheus Falconi, 29, começou a correr há três anos para participar de provas de 10 quilômetros. Escolheu fazer os treinos de tiro às 20h, quando o trânsito dá uma trégua e o clima é mais ameno. Quando corre sozinho, em geral no Parque do Ibirapuera, começa depois das 21h. “Saio meio pilhado do treino, mas depois do jantar relaxo e durmo muito melhor.” Nos finais de semana, ele aproveita para fazer o treino de luxo: desce para o litoral norte e assim que o sol começa a ir embora, sai para correr na serra. “Reservo o fim de tarde de sábado e de domingo para curtir o pôr do sol correndo e dar um mergulho depois do treino, quando já é noite.”
QUEM TREINA PARA PROVAS LONGAS, como maratonas de bike e Ironman, está acostumado a sacrificar parte do sono ou dos horários de almoço para aprimorar a performance. Na maioria das vezes, não são atletas em tempo integral e precisam adaptar os treinos em função de outras atividades. Para correr a Race Across America (RCAA), prova de ciclismo de mais de 4.800 quilômetros, Fabio Gasperini, 35, diretor de marketing e apaixonado por bike desde os 14 anos, passou a treinar de madrugada.
Descobriu que as vantagens vão além das pistas vazias. “A melhor coisa de pedalar de madrugada é deixar o frequencímetro em casa. Ouço os meus batimentos, o barulho da roda girando, a troca das marchas. É um sossego e um silêncio impressionantes”, declara. Para conciliar os treinos com o trabalho e os filhos pequenos – que já participam de provas de corrida – ele sai de casa quando todos estão na cama. “É um jeito de ninguém sentir a minha falta, de estar presente nos momentos em que estão todos lá.”
Para os notívagos de carteirinha, a noite sorri por outras razões. Ronaldo Franco, 35, dorme invariavelmente às quatro da manhã, a menos que o trabalho interfira na natureza do fotógrafo. Um dos criadores do Rolê Fotográfico, grupo que registra a São Paulo adormecida há cinco anos e já expôs em Roterdam (Holanda), Nova York (EUA) e Eslovênia, Ronaldo desistiu da sessão Coruja na TV e passou a organizar saídas de skate com os amigos na madrugada. As ladeiras que durante o dia são montanhas de carros, às 2 da manhã estão desertas e se transformam em terreno perfeito para o downhill. “Um dos rolês mais bacanas é descer a ladeira que acompanha o cemitério do Araçá até o Pacaembu”, conta. A tradicional Ladeira da Morte, no bairro do Sumaré, e outras ruas de acesso bem conhecidas como as ruas Aimberê e Apinagés, que descem até as Perdizes, são outros trechos que ele aproveita para descer à noite.
Veterano com 20 anos de carreira, o skatista profissional Fabio Cristiano, 33, é pioneiro entre os amantes do rolê noturno. Para andar de street, ele reúne um grupo grande, liga seu gerador de luz portátil e anda “até acabar o combustível”. Sempre que viaja, no Brasil ou fora do país, o gerador vai junto. “Comecei a andar de skate de madrugada porque menos gente vem incomodar. Ainda assim, o gerador costuma chamar bastante atenção. Evito áreas residenciais porque as pessoas costumam reclamar do barulho”, ensina.
A jornalista Renata Falzoni é outra referência entre os seres noturnos. Fundou o Night Bikers na década de 1980 para curtir as ruas vazias e o ar menos poluído. Hoje o grupo se espalha pelo Brasil, tem mais de 2.500 membros e inspira outros bikers, como Natália Garcia, 26, que passou a aproveitar muito mais a cidade depois que começou a pedalar à noite. “O mais legal é ir do bar Veloso, na Ana Rosa [no bairro da Vila Mariana, em São Paulo], até o lanche do Estadão, no centro, em 15 minutos. Escapar do trânsito, não ter que achar lugar pra estacionar o carro e poder parar a qualquer hora pra tomar uma cerveja ou conhecer gente, é muito legal. Eu não só prefiro pedalar à noite como gosto muito mais de sair depois que passei a pedalar.” O contato com a cidade é outro aspecto que, na opinião de Natália, ganha novo significado depois que se passa a descobrir os espaços públicos sobre duas rodas. “Pedalando eu estou exposta, não estou escondida dentro do carro. Vejo tudo o que a cidade tem de bom e de ruim, me aproprio muito mais dela.”
MEDIDAS DE SEGURANÇA PARA OUTSIDERS NOTURNOS
Quem se joga na noite para treinos e rolês, também precisa de alguma cautela
Bikers e corredores
>> As ruas e estradas estão mais livres nos horários alternativos, mas ainda assim é preciso ser notado pelos carros e caminhões. Para não sumir do campo de visão dos motoristas, use roupas e acessórios mais vivos, de cores flúor, por exemplo, e invista nas luzes para a bike.
>> Estar em grupo ou ter um carro de apoio acompanhando o treino também é uma boa para evitar roubos e outros episódios traumáticos.
>> Bike e balada não necessariamente combinam. Se beber além da conta, não pedale.
Surfistas
>> Prefira as praias com iluminação. À noite fica difícil ver a série, e as luzes servem de referência para quem está dentro d’água.
>> Evite entrar no mar à noite em dias de ondas grandes. Com a praia vazia fica difícil pedir ajuda em alguma situação mais extrema.
Trilheiros
>> À noite ou de dia, é sempre bom que alguém, além de você, saiba do seu roteiro. Antes de sair para a trilha, avise seu itinerário para alguém próximo.
>> No caso de trilhas noturnas, às vezes é melhor estar mal acompanhado que sozinho.
>> Não se esqueça de conferir as baterias das lanternas e levar extras para evitar ficar no breu no meio do trajeto.
Skatistas
>> Não desça ladeiras na contramão.
>> Use sempre equipamento de proteção.
>> Siga o mestre: Fabio Cristiano sugere o uso de gerador (no caso do street) e andar em grupo grande para evitar os “bichos-soltos” da noite.
VAI NESSA
Para surfar:
– Pitangueiras, Guarujá (SP): tem iluminação para o surf de 18h a 0h
– Farol da Barra, Salvador (BA): fica iluminada até amanhecer
– Arpoador, Rio de Janeiro (RJ): iluminação das 19h30 às 3h
Para correr e pedalar:
Circuito Leblon Leme (RJ)
Aberto 24 horas; 8 quilômetros de asfalto ou areia.
Lagoa Rodrigo de Freitas (RJ)
Aberta 24 horas; 7,5 quilômetros de percurso total.
Parque do Ibirapuera (SP)
Das 6h às 22h; 6 quilômetros de pista de corrida, 1,5 quilômetro de pista de cooper e 3 quilômetros de ciclofaixa.
Parque da Independência (SP)
Das 5h às 20h; 1,2 quilômetro de pista de corrida.
Parque da Aclimação (SP)
Das 6h às 20h; 1 quilômetro para corrida e caminhada. Não é permitida a entrada de bike ou skate.
Parque 13 de Maio (Recife, PE)
Das 5h às 22h; 1 quilômetro ao redor do parque.
(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de junho de 2010)
PENUMBRA: Fabio Cristiano, o "Chupeta", já ficou conhecido entre os skatistas profissionais pelos rolês noturnos. Na mala de qualquer viagem, ele leve um projetor de luz