O imperador aventureiro

Texto e fotos por André Pessoa

APESAR DO INTENSO CALOR, a tarde começava a ganhar o brilho dourado do sol quando os navios que traziam a comitiva do imperador dom Pedro II e da imperatriz Teresa Cristina viram ao longe a torre do farol da Barra, em Salvador. Era a primeira vez que um representante da família real iria visitar o interior das províncias do Norte do Brasil. Corria os primeiros dias de outubro do ano de 1859 e o projeto da “expedição” era desbravar trechos dos atuais estados da Bahia, Sergipe e Alagoas, percorrendo o rio São Francisco em barcos a vapor, em lombo de burros e a cavalo.

Por todo o trajeto da viagem, que durou cerca de dois meses, o imperador foi anotando fatos, impressões pessoais, comentários, esboços e conjecturas sobre o país que começava a descobrir. O que transparece no relato é um homem com espírito aventureiro, perfeccionista, técnico, frio e ainda mais despojado do que se supunha. Alguém que, apesar de imperador e das facilidades que a Coroa costuma oferecer, dormiu em acampamentos, qual um mochileiro, hospedou-se em casas sem muita estrutura, cavalgou por horas seguidas no quente sertão nordestino, bebeu água salobra, arriscou-se a enfrentar a caatinga selvagem e colecionou desenhos, plantas, pedras e artesanato.

Depois da frota real deixar o Rio de Janeiro foram seis dias em mar aberto com pequenas paradas no litoral até a chegada na capital baiana, onde o imperador visitou igrejas, colégios, quartéis, hospitais e prédios públicos. Ao longo das visitas, dom Pedro II fez doações em dinheiro e registrou em seu diário críticas ao nível do ensino nas escolas e à limpeza da cidade. “As ruas são estreitas e enlameadas”, escreveu. Poucos dias depois, já recuperado do imenso deslocamento, dom Pedro deixou a imperatriz confortavelmente instalada em Salvador e seguiu viagem, agora em direção à foz e depois ao interior do Velho Chico. O objetivo era percorrer o Baixo São Francisco até a cidade alagoana de Piranhas, de onde seguiria a pé ou a cavalo em direção à cachoeira de Paulo Afonso, o trecho final de sua viagem àquelas bandas até então desconhecidas.

“Os registros das peculiaridades que dom Pedro encontrou no rio São Francisco apresentam cunho técnico e podem ser considerados como um verdadeiro diagnóstico desse trecho do Nordeste”, afirma o historiador Jairo Oliveira. E isso se comprova no encontro do grande rio com o oceano, motivo para um relato de como foi atravessar a correnteza. “O vento tem zunido, mas o vapor nem respira. Passamos o cordão [arrebentação] e o espetáculo foi belo”, registrou. Apesar de toda a imponência da região, o imperador fez uma observação crítica: “A vista da barra desta posição não merece os gabos que lhe dá o Vieira de Carvalho”, provavelmente se referindo a um artigo publicado alguns anos antes na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro destacando a natureza do lugar.

Naquela época, mesmo na foz do rio, onde teoricamente sua profundidade deveria ser maior, os problemas ambientais já começavam a cobrar seu preço. “O Iguatemi [um dos barcos da comitiva] passou adiante e içou bandeira encarnada como sinal de que não havia fundo suficiente; recuamos e fundeamos.” Dali, o imperador foi obrigado a mudar de navio para seguir viagem, constatando o terrível assoreamento do rio.

Exatos 150 anos depois desse registro, sobrevoamos a foz do São Francisco num helicóptero e fizemos algumas incursões de barco pela região. A imagem que observamos, apesar da beleza, parece confirmar o relato histórico. Grandes dunas de areia tentam segurar a correnteza que chega ao mar com dificuldade. Fica claro que o desmatamento de suas margens e o assoreamento vai aos poucos sufocando o rio da unidade federal.


VAMOS LÁ: Uma das embarcações que acompanharam a viagem

VENCIDA A CORRENTEZA, a comitiva real chegou ao pequeno povoado de Piaçabuçu onde foi recebida com bandeiras coloridas e ao som de rabecas – festa que se repetiu em todos os lugares por que passou. Não demorou para o imperador registrar novos comentários: “Tenho notado mais indivíduos do sexo feminino do que masculino pelas margens do rio, e comecei a reparar nas flores atirando para cor de rosa da cana fístula, árvore abundante, segundo já me parece”.

Na histórica cidade de Penedo, onde além das igrejas centenárias e dos prédios públicos, ele fez questão de visitar a rocha que dá nome ao lugar, veio a aprovação real: “O local é muito bonito e creio que deverá estar aqui a capital da província”, registrou ele, admirado com a prosperidade do município que ainda hoje apresenta um constante vai-e-vem de riquezas através do São Francisco. No entanto, com uma visão ambientalista extremamente moderna para a época, dom Pedro fez um importante alerta para o ritmo de destruição do rio com a construção desordenada de barragens de terra em seu leito. “Já chamei a atenção do presidente das Alagoas, como nocivas à pobreza e à procriação do peixe.”

Quase dois séculos depois, nossa expedição utilizou uma pequena lancha para subir o rio São Francisco, procurando fazer a mesma rota do imperador. Passamos pela cidade sergipana de Própria e pelo município alagoano de Porto Real do Colégio, lugar onde dom Pedro teve um encontro com os índios kariri-xocós e deixou registrado no diário: “Apareceram-me bastante descendentes dos índios de raça já bastante cruzada com seus cocares de pena, arco e flechas”. No dia de nossa chegada ao povoado, também tivemos o privilégio de conhecer alguns caboclos descendentes dessa mesma etnia e que ainda hoje vivem da pesca e da pequena plantação.

Daquele ponto em diante, o rio fica ainda mais bonito e interessante, com os morros que ocupam as duas margens do Velho Chico cobertos de plantas da caatinga, como mandacarus, xiquexiques e coroas-de-frade. Essas cactáceas, muito comuns nessa área do Nordeste, foram motivo de detalhadas observações por parte do imperador que fez questão de descrevê-las e até coletar algumas espécies, que levou para o Rio de Janeiro.


PENEDO: Interior todo em ouro da Igreja Nossa Senhora da Corrente

Da mesma forma que citava as plantas, D. Pedro II fez questão de relatar a fauna que ocupava as margens do rio naquela época, principalmente aves, serpentes e alguns mamíferos – sem deixar de citar, é claro, os peixes que lhe chamavam a atenção, como a piranha. Um dos animais observados pelo imperador foi a ema. Atualmente, esse bicho está praticamente extinto nos estados de Alagoas e Sergipe, sobrevivendo apenas em alguns lugares do cerrado baiano, há mais de 500 quilômetros de onde foi avistada em 1859.

Passamos ainda pelas cidades de Traipú e Pão de Açúcar, e pelos povoados de Ilha do Ferro e Entremontes, todas elas visitadas pela comitiva real, até chegar à pequena, simpática e colorida cidade de Piranhas, ponto final da expedição pelo rio. Dali em diante, a comitiva teve que seguir a cavalo até Paulo Afonso, numa dura viagem cruzando a caatinga e suas plantas espinhentas. Foi nesse trecho que dom Pedro demonstrou verdadeiramente seu espírito aventureiro.

Por dias seguidos dormindo em acampamentos improvisados na caatinga, cavalgando por estradas de terra com muitas pedras, comendo praticamente o mesmo que os sertanejos da região – arroz, feijão, farinha e carne seca – e tendo que beber da água que se encontrava pelo caminho, muitas vezes pesada e sem qualidade, dom Pedro comprovou que realmente tinha no sangue a energia de explorador.

Foram dias de muito calor e esforço físico até chegar às cachoeiras de Paulo Afonso, onde dom Pedro II fez o seguinte relato: “Na distância de meia légua é que se ouviu o ruído da cachoeira. Logo que me apeei comecei a vê-la e só voltei para casa podendo torcer a roupa do corpo molhada por causa do exercício. É belíssimo o ponto de que se descobrem sete cachoeiras que se reúnem na grande, que não se pode descobrir daí, e algumas grandes fervendo a água em caixão de encontro à montanha que parece querer subir por ela acima; o arco-íris produzido pela poeira de água completava esta cena majestosa”.

Infelizmente, nossa equipe não teve o mesmo privilegio que o imperador, pois com a construção do complexo hidrelétrico de Paulo Afonso o curso do rio teve que ser desviado e as cachoeiras foram controladas. Hoje, o local é ponto de atração para modernos aventureiros que fazem rapel, tirolesa e até bungy jump da ponte que corta a cidade. Entretanto, percorrer o mesmo trajeto feito 150 anos atrás foi extremamente importante para documentar as belezas e mudanças no ambiente e comprovar que aquela viagem real ao interior do sertão nordestino foi decisiva para o desenvolvimento dessa parte do país.


ÍNDIOS: Kariri-xocós em Porto Real do Colégio

EXATOS 21 DIAS DEPOIS DE TER DEIXADO O CONFORTO do palácio no Rio de Janeiro, o imperador tinha alcançado seu objetivo. Agora, restava a viagem de volta, com paradas em cada um daqueles povoados ou cidades que ficavam pelo caminho. Em todos eles, sem exceção, dom Pedro II fez questão de assistir aulas em escolas públicas e conhecer alunos e professores. Era como se o atual presidente do Brasil fosse a uma escola em cada visita oficial que faz durante seu mandato.

Mas o imperador não se contentava apenas em visitar os colégios. Ele quase sempre inquiria professores e alunos, e depois fazia comentários escritos sobre o desempenho de ambos – um verdadeiro relatório sobre o nível do ensino no interior do país. Nos relatos dessa expedição, fica claro que Pedro II tinha opiniões sobre praticamente todos os assuntos importantes. Era a favor de eleições livres e ardoroso defensor da educação como instrumento democrático. “Sem bastante educação popular não haverá eleições como todos, e sobretudo o imperador, primeiro representante da nação, e, por isso, primeiro interessado em que ela seja legitimamente representada, devemos querer”, escreveu.

Cansado das cerimônias que tinha que participar como representante da família Real a cada parada das viagens que fazia, ele desabafou: “Nasci para consagrar-me às letras e às ciências, e, a ocupar posição política, preferiria a de presidente da República ou ministro à de imperador”, escreveu ele numa espécie de desabafo, feito em 1861 no diário habitualmente dedicado a registrar fatos mais rotineiros.

A paixão por conhecer o Brasil e o mundo era tanta que se transformou num de seus pontos fracos, politicamente. Durante seu reinado, percorreu quase todo o Brasil, viajou para várias partes do mundo, visitando a América do Norte, a Rússia, a Grécia e muitos outros países da Europa, e o Oriente Médio, procurando trazer para nosso país várias inovações tecnológicas.

Não é preciso ser admirador de Pedro II nem ignorar os pontos negativos de seu reinado para reconhecer que ele foi um estadista de valores elevados e ideias do lado nobre do espectro político. Dom Pedro II e a monarquia em geral são ridicularizados há quase dois séculos como anacrônicos, absurdos e pretensiosos, além, é claro, de perversos exploradores do povo. Mas há nisso muito das distorções históricas responsáveis pela síndrome de rejeição que impede, se não de apreciar, pelo menos de tentar compreender melhor a singularidade da história brasileira, que começou com a inédita transferência de um governo inteiro, o de Portugal, da Europa para o Novo Mundo.

Por causa da vinda do príncipe que depois virou o rei João VI, seu filho (o primeiro Pedro) fez uma ruptura sem violência com a potência colonial, exceção no continente americano. E o filho dele, dom Pedro II, legou, no mínimo, a continuidade territorial de um país-continente e a unidade nacional que hoje parecem atributos naturais do Brasil.


TRADIÇÃO: Mulheres de grupo folclórico de Traipu

Turismo no Caminho Real

Rota usada por D. Pedro II vira atração turística e pode ser refeita

Aproveitando-se do gancho histórico para promover a inclusão produtiva da população que vive às margens do Baixo São Francisco, o Governo do Estado de Alagoas, numa ação que envolveu as Secretarias de Cultura, Turismo, Planejamento e Comunicação criou um roteiro que envolve 12 municípios alagoanos mais Propriá (SE), Jatobá (PE) e Paulo Afonso (BA). O objetivo é levar turistas pelo mesmo trajeto feito por dom Pedro II em 1859 (e agora pela reportagem da GO Outside). Para o governador de Alagoas Teotonio Vilela Filho, a rota “Caminhos do Imperador” representa o resgate da história e da cultura. “Dom Pedro II esteve por aqui há 150 anos desbravando essa região e conhecendo nossa gente, nossas belezas. Agora, queremos fazer com que os turistas também descubram e se apaixonem por esses lugares”, enfatiza.

Para inaugurar a rota foram convidados operadores de turismo, jornalistas, políticos, historiadores, prefeitos dos municípios da região e o governador de Alagoas – uma verdadeira comitiva que contou com a nobre presença do Príncipe Dom João de Orleans e Bragança, trineto de dom Pedro II e bisneto da Princesa Isabel. A visita de um príncipe ao sertão alagoano mexeu com o imaginário e o cotidiano da população local, e as homenagens que os ribeirinhos fizeram tocaram o herdeiro da família real brasileira. “O governo de Alagoas está de parabéns pela iniciativa de resgatar a história por meio do turismo e, dessa forma, aquecer essa indústria que é uma das maiores do mundo”, disse dom João. A expedição que refez o trajeto percorrido por dom Pedro II foi uma oportunidade para se aventurar em meio a desfiladeiros de tirar o fôlego, ou descortinar paisagens como as dos municípios de Piranhas e Penedo, que de tão belas foram tombadas como Patrimônio Histórico e Paisagístico Nacional.


CANOA DE TOLDA: Acompanhou a expedição pelo rio

Nasce um imperador

D. Pedro II era mais que um nobre

Um trajeto de carruagem no meio da noite, rumo a um destino desconhecido, marcou a dramática guinada da vida de Pedro, o segundo e último imperador do Brasil. Aos 5 anos, ele foi tirado do único lar que conhecia e levado para um desfile festivo pelas ruas do Rio de Janeiro. Seu pai, Pedro I, ia-se embora do Brasil e deixava para trás o menino que, em prantos, sem noção do que acontecia, era aclamado como o pequeno imperador. Na pia batismal ele recebeu seu nome completo: Pedro de Alcântara José Carlos Salvador Bibiano Francisco Xavier de Paula Leocádio Miguel Gabriel Rafael Gonzaga.

Quando foi coroado imperador, também em clima de aclamação popular, o “pupilo da nação” ainda era um garoto de 15 anos, sem a barba patriarcal e a altura imponente – 1,90 metro – da imagem que ficaria mais conhecida. Tinha paixão pelos estudos, provável refúgio para a desolação emocional. O governante passou à história como um intelectual apreciador da ciência, das artes e da liberdade de informação, e como homem tolerante, aberto ao diálogo e às transformações da vida social.

Para historiadores, Dom Pedro II continua mais vivo do que nunca: em qualquer lista que se faça sobre as personalidades mais influentes dos 500 anos de história do Brasil ele costuma disputar o primeiro lugar com Getúlio Vargas. Pedro II governou o Brasil por quase meio século, de 1840 até a proclamação da República, em 1889.

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de março de 2010)