Seque-se quem puder


BEM-VINDA: A cidade de Udaipur, no Estado do Rajastão, durante a primeira grande chuva do ano, em junho. A cidade sofria com a seca e a chuva fez muita gente, inclusive crianças, sair às ruas para comemorar

Por Chuck Thompson

NÃO TEM NADA MELHOR para te mostrar que está chovendo canivetes que uma cobertura de zinco do lado de fora da janela de seu quarto de hotel. Os indianos dizem que as monções são o melhor clima para se dormir, mas na minha segunda noite na cidade montanhesa de Munnar, no estado de Kerala, no sul da Índia, não consigo engatar o sono. A principal razão disso é meu entusiasmo – finalmente, as monções! –, mas os colchões do país também desempenham seu papel. Passe algumas semanas fritando em um deles e você vai entender porque esse povo teve que inventar a ioga. “Está chovendo canivetes!”, disse meu motorista, guia da natureza e novo melhor amigo, Baiju, ao me cumprimentar pela manhã. “Agora você está contente.”

No pior momento da minha busca de um mês pelas monções, sob um céu na Índia tão ensolarado que parecia ter saído do Disney Channel, eu acabei encontrando Baiju na cidade costeira de Cochin, em Kerala. Por um dia ou dois, ele foi um bastião de cortesia e profissionalismo. Só falava “Sim, senhor”, e “Deixe que eu carrego isso para o senhor”, e “Não compre chá nessa loja, senhor – ela é conhecida por ser operada por um criminoso”. Mas agora que ele já se sente confortável comigo, suas tendências mais locais estão começando a aflorar.

Fotógrafo amador, Baiju tem ainda mais fissura que eu por fotos impactantes de monções. No meio de um dilúvio tão forte que mal dava para ver do outro lado do párabrisa, ao se aproximar de uma esquina tão alagada que tinha sua própria arrebentação, ele aponta para uma senhora de idade subindo pela rua carregando uma sacola de feira. “Prepare sua câmera!”, alerta ele, pisando no acelerador e girando a direção como um moleque de 6 anos jogando videogame. “Olha a onda quando a gente passar por ela!” Baiju reduz a marcha, aumenta o volume enquanto toca os Melhores Duetos de Bollywood, e aponta para a mulher como um zagueiro mirando a canela de um atacante manco.

– Não, Baiju, não precisa fazer isso. Não acho que a gente deva.

– Você não gosta? Não é problema! Ela não liga!

– Não! Eu não gosto!

– Ótima foto!

Mergulhamos no mini-lago e um paredão de água barrosa – esgotos entupidos são um grande problema durante as monções – sobe três metros. Tiro algumas fotos pela janela porque… bem, porque quem não gosta de ver uma camada de água suspensa no meio do ar? A velhinha desaparece dentro da onda como um surfista profissional entrando em um tubo havaiano. Baiju vai embora no maior gás, salivando atrás de novas presas, enquanto as biribinhas de chuva continuam estourando no teto do carro.

As monções são assim mesmo: mesmo com um teto sobre sua cabeça, você não consegue escapar delas, não de verdade. Se você não está em um lugar aberto, sendo encharcado até os ossos, você está na sala de estar, sentindo as meias ficarem molhadas com o carpete. Como uma campanha de marketing agressiva e eficiente, as monções formam uma força que se espalha e que impregna a vida na Índia, dando de vez em quando um tapa na sua cara, se você não estiver prestando atenção.


CORAÇÃO DE MÃE: Garotos dividem um guarda-chuva em Cochin, Kerala

O QUE A MAIOR PARTE DA ÍNDIA é para o filme Quem quer ser um milionário?, o estado costeiro de Kerala é para montanhas altas, florestas de sândalo e, o mais importante, as monções. Todo verão, nesse estado estreito que ocupa a ponta sudoeste da Índia, as ferozes chuvas e ventos que se originam no oceano Índico atingem o continente primeiro aqui.

Isso acontece com incrível consistência a partir do dia 1 de junho, quando as monções chegam a Kerala e começam a se espalhar pelo país, avançando para o norte em um sistema de tempestades que cria poderosos ventos nordeste. Em 10 de junho, eles normalmente já atingiram Mumbai e Calcutá. Em 15 de julho, a Índia inteira vai estar coberta por uma claustrofóbica cúpula de peltre que se posiciona sobre o país como a tampa de uma lata de lixo. Ao norte, ao longo da fronteira com o Paquistão, até mesmo as aldeias paupérrimas no deserto de Thar recebem chuva por um mês.

Mas Kerala é o epicentro. Durante o ciclo de quase meio ano das monções, elas nunca abandonam completamente este encharcado Éden subtropical. Em uma estação de monções típica, as costas nordeste e oeste da Índia recebem cerca de 3 mil milímetros de chuva (para se ter uma idéia, São Paulo, recebeu 460 ml durante o mês de janeiro de 2010). Isso é uma quantidade ao mesmo tempo gloriosa e perigosa de água doce para um período de quatro a seis meses, mas não passa de uma média. Em julho de 2005, Mumbai recebeu 940 ml em apenas um dia. Em setembro passado, 900 mil aldeões fugiram de seus lares depois que o rio Kosi transbordou, transformando grande parte do estado de Bihar em um extenso lago.

Para os viajantes, a estação das monções é considerada a pior época para se visitar a Índia, mas era disso mesmo que eu estava atrás. Passei minha vida nas florestas tropicais do sudeste do Alasca e da região noroeste do Pacífico dos Estados Unidos, por isso já agüentei toda chuva que precisava para uma encarnação. Mas, não. Por mais incrível que pareça vindo de alguém que tem 14 capas de chuva, eu geralmente fico com gostinho de quero mais, quando o assunto é precipitação atmosférica. As chuvas lá no noroeste são, como os moradores locais, nebulosas, agradáveis e educadas; muitas vezes meio depressivas, mas raramente chamativas. Nós temos chuva, mas quase nunca da forma teatral que acontece nas tempestades do meio-oeste e do sudeste.

Décadas de garoazinhas agradáveis me deixaram morrendo de sede por uma chuva de verdade. Chuva belicosa. Chuva tão forte e constante que até os peixes ficam de saco cheio. Essa idéia acabou inevitavelmente me fazendo pensar na Índia. E isso, por sua vez, fez com que todo indiano com quem falei sobre viajar a Kerala em junho me perguntasse se eu tinha pirado. “Vai chover todo dia”, avisaram. “Você não vai aguentar o calor.” “Junho é a pior época de todas para se visitar a Índia, e um perfeito inferno em Kerala.”

Isso foi uma surpresa para mim. Eu achava que os indianos deviam adorar as monções. Antigas músicas ragas as fundiram à mitologia nacional. O ciclo de vida do país inteiro gira ao redor desse sistema climático que, em seu clímax, cobre um terço do planeta.

Entretanto, quanto mais eu conversava com indianos, mais eu ficava com uma sensação que as monções podem não ser mais o assunto célebre que já foram no passado. As chuvas sazonais costumavam significar a sobrevivência em um país onde há pouca irrigação, mas os avanços na preservação de alimentos eliminaram o pior da fome nos campos. Meios de transporte mais desenvolvidos significam que as aldeias não ficam mais isoladas por enchentes anuais. Até mesmo as famosas danças de sári molhado dos filmes de Bollywood – que por décadas foi o único jeito legítimo dos indianos poderem ver um pouco de peito e bunda – foram ultrapassadas pelos saltos altos e pelas microssaias das “Bombabes” que estão trazendo a moda das periguetes para todos os cantos do país.

E, mais importante, os motoristas odeiam os lendários engarrafamentos que as chuvas trazem, e são os motoristas que estão dirigindo (no sentido literal e figurado) a Índia em seu desejo quase maníaco de acompanhar o desejo também quase maníaco da China de assumir a primazia econômica mundial. “E voltamos à mesma história, que se repete todos os anos”, reclama um artigo típico do jornal Times of India. “As monções caem espalhando o caos nas ruas das cidades, e as pessoas presas no trânsito ficam rezando por um alívio e xingando as autoridades.”

Como ninguém gosta de um forasteiro que está no país só há três semanas e que sai por aí dando lição sobre a cultura deles, trabalhei com a suposição de que os nativos ficariam morrendo de raiva da minha teoria de que o estado moderno ultrapassou as monções. De estações de trem a lojas de especiarias, espalhei para todo indiano que conversava comigo minha tese de que as monções já eram, mas, incrivelmente, ninguém pareceu se ofender com meu questionamento à sua identidade nacional. Depois de testar minha velha capa de chuva e minha teoria em Déli e Mumbai, decidi que ambas estavam prontas para o duelo final em Kerala.


BRINDE: Copo na mão e cigarro bidi na boca, este indiano comemora com os amigos a chegada das monções ao topo das montanhas Cardamom, em Kerala

O PLANO ERA SEGUIR para o interior de Kerala e encontrar o melhor lugar para esperar pela chuva. Depois de um bocado de pesquisa, decidi ir para Munnar, uma cidadezinha montanhesa na Cordilheira de Gates Ocidental. Além de serem impossivelmente lindas, essas são algumas das montanhas mais úmidas do mundo.

Em uma loja em Cochin, um providencial encontro ao acaso me levou a Baiju, que insistia que sua única deficiência era sua altura. “Baixo demais para o exército da Índia”, contou, em um tom de voz que sugeria que uma vida praticando tiro ao alvo e fazendo exercícios de madrugada seria perfeita para ele. “A altura mínima para comissões permanentes é de 157,5 centímetros”. Faltaram dois centímetros a Baiju.

Levou quase um mês, mas finamente eu havia encontrado um homem honesto entre os motoristas malandros da Índia. De tórax largo e barbudo, Baiju é um exemplo a ser seguido. Seu carro, um Ambassador 2004, é limpo e mantido em um estado semelhante ao que meu avô engenheiro deixava seu Caprice Classic. Baiju sabe sentir a hora de ficar em silêncio e deixar a paisagem falar por si mesma. E, sendo também um fotógrafo amador, é esperto quanto a ângulos e luz e pontos de parada, sempre que eu via uma boa oportunidade para uma foto – o que acontecia o tempo todo.

Os Gates Ocidentais são os maiores picos da Índia ao sul do Himalaia, enormes torres de pedra que se erguem a 2.440 metros, o que torna as quatro horas de carro de Cochin a Munnar uma viagem espetacular. As encostas mais baixas são cobertas por plantações verde-fluorescentes de chá. À medida que subíamos, fragrâncias de canela, cardamomo, coentro, cuminho, baunilha, pimenta, gengibre, alho e cravo-da-índia entrava por nossas janelas – é em Kerala que cultivam a maior parte dos temperos que você usa – com a fumaça de pequenos fogos de cozinha.

Em um mirante, saímos do carro para imergir em um constante tamborilar de chuva e observamos uma promissora massa de nuvens escuras no horizonte. Do outro lado do estacionamento, quatro caras na casa dos 30 e tantos anos estão encostados em um SUV e passando um copo de mão em mão. “Olá! De que país você é?”, grita o mais amigável deles. Então ele se inclina na minha direção com um sorriso doido e aparentemente com a ideia de me dar um beijo barbado na boca. Viro o rosto bem a tempo de receber uma babada na bochecha e que escorregou pescoço abaixo.

Baiju e eu havíamos nos deparamos com a versão indiana dos viajantes de fim-de-semana: amigos que saíam para beber nas monções. Ou só beber – uma desculpa para sair da cidade. “Nós quatro somos de Cochin”, um dos caras grita para mim, inclinando a cabeça para pegar uma lufada de chuva morna e pondo um copo sujo na minha mão. “Essa é nossa viagem anual para as montanhas. Nada de esposas e filhos. Agora, um brinde às monções!”

Normalmente, eu sou bem sociável nessas situações, mas gente bêbada em uma estrada nas montanhas não deve ser encorajada, principalmente quando se está bebendo um negócio chamado White Mischief, que pelo que parece é uma vodca indiana bem popular. Dou só um golinho por educação antes de darmos no pé dali.


LAMABOL: Partidas de futebool na lama são comuns na Índia durante as chuvas. O difícil é saber onde está a bola

QUANDO A FÚRIA das monções finalmente chega a Munnar, dois dias depois de nossa chegada, ela é anunciada por um forte e solene vento que colide conosco com a força de uma bola de demolição. Cães e gatos correm para se esconder. As aves desaparecem. Em segundos, o ar está repleto de poeira, galhos, folhas, sacos plásticos, páginas de jornal, embalagens de comida e todo tipo de lixo de rua – e este lugar é especialista em lixo de rua.

A chuva bate como chumbinho na cobertura de barracas de feira. As multidões se dispersam – mil direções para mil pessoas. As mulheres lutam para controlar seus sáris. Homens em bicicletas e mobiletes abaixam a cabeça para suportar o ataque. Em menos de meia hora, as sarjetas urram como pequenos rios e bueiros entupidos cospem jorros de água suja.

Motivado por um editorial de jornal reclamando que os indianos hoje em dia mais provavelmente preferem ficar em casa jogando videogame do que sair para aproveitar a chuva, joguei minha teoria sobre as monções no colo de um keralano mais velho. “Eu cresci na década de 1940”, conta ele em um tom de voz meio rabugento. “A gente ia para a escola no meio das monções, e quando a gente chegava lá nossas roupas estavam completamente encharcadas. Hoje em dia as crianças só andam de carro ou ônibus. Elas podem ficar sentadas durante as monções e continuarem secas”. Um indiano mais jovem é mais objetivo.

“Claro, você pode ter razão”, admite. “Não existem mais poesias sobre as monções. Não existem mais histórias sobre as monções”.

No dia seguinte, acordamos com as galinhas e quando amanheceu Baiju e eu já estávamos na estrada. Foi aí que encontramos quatro caras sete metros abaixo de uma estrada de pista dupla nas montanhas. Eles tentavam empurrar uma moto Kawasaki para cima da encosta íngreme e barrenta. Momentos antes, um jipe fazendo uma curva às cegas pela contramão – algo tão comum na Índia quanto fazer uma curva às cegas na mão certa – quase causou uma colisão. “Eu freei de repente e minha moto escorregou de debaixo de mim”, contou o cara da Kawasaki, ainda meio em choque. “Fui salvo pelos arbustos. Minha moto caiu morro abaixo”.

Kerala é conhecida na Índia pela “trilha do sangue” causada pelas estradas sinuosas, asfalto molhado e pelo que o Departamento de Transporte chama na cara-dura de “motoristas ineptos”. Apesar de ter apenas 3% da população do país, Kerala tem 10% dos acidentes de tráfego. Em 2007, houve 3.778 mortes em 39.918 batidas. Isso dá mais de dez mortes por dia no trânsito.

A Kawasaki é tão pesada que os caras lá embaixo parecem estar empurrando uma vaca ferida. Finalmente, aparece alguém com uma corda forte. Uma ponta é amarrada na moto, a outra jogada para cima, pousando a um metro dos meus pés. Os indianos do sul são notavelmente baixos e magros, e como eu meço 1,91 metros e meu povo detonou tudo por aqui sem cerimônias duzentos anos atrás, sou a escolha mais óbvia para servir de âncora para a turma da corda. Com quatro caras empurrando de baixo e cinco puxando de cima, pensávamos que seria fácil resgatar a moto, mas pensamos errado. Ainda assim, a organização necessária para fazer oito hindus e muçulmanos e um americano realizarem qualquer coisa juntos foi um inspirador momento cultural.

Com muito esforço, puxamos o monte de metal e borracha por cima das raízes, troncos, árvores, arbustos e pedregulhos. Assim que a Kawasaki manca voltou à estrada, Baiju e eu entramos no carro com a satisfação de um bom samaritano. Mas Baiju está um pouco triste com uma coisa. “Se tivesse um ferimento sério”, reclama ele enquanto seguimos pela estrada, “talvez tivesse fotos melhores.” O GRANDE DRAMA DO DIA acontece durante um momento de trégua nas chuvas no final da tarde, quando o sempre alerta Baiju avista três elefantes – um macho, uma fêmea e um filhote – bebendo no lado oposto de um lago a uns 800 metros da estrada. Estamos tão longe que olhar para eles é como fazer um exame de vista.

Consegue ver o bebê atrás da mãe?, pergunto.

— Sim, vejo agora.

— Aquele macho parece ser bem grande.

— Sim. Mas também parece bem pequeno daqui.

Após alguns minutos assim, um homem de idade usando um quepe de policial bem pontudo aparece do meio do mato. Ele é um guarda florestal que, após uma breve conversa com Baiju, nos mostra um lugar onde a cerca que protege o habitat dos elefantes foi cortada. Se vocês estão tão interessados em elefantes, diz ele estendendo a mão com a palma para cima, por que não pulam essa cerca e vão até o lago enquanto ele olha pro outro lado?

O jogo do “pagar para poder” é, é claro, bem antigo na Índia. Decido ajudar o cara a manter a integridade de sua posição. “Não, estamos bem”, digo, tentando demonstrar a imensa satisfação pessoal que sinto em respeitar o território de animais selvagens. “Estamos felizes de assistir daqui.”

Baiju, entretanto, não tem a menor intenção de deixar passar a chance de burlar a lei com a anuência de um policial, principalmente com a rara oportunidade de tirar um close da vida selvagem. Ele dispara mato adentro, gritando “Vamos, vamos!”, não porque ele esteja com medo que eu perca alguma coisa, mas porque ele sabe que minha cara lente de zoom Canon de 200 mm vai se encaixar direitinho no corpo de sua velha EOS. No lugar de sua lente falsificada de 50 mm, minha fera ocular vai fazer dele um fotógrafo quatro vezes melhor.

Segui Baiju cerca adentro. Descemos por uma encosta de morro escorregadia com grama alta. Gotinhas de chuva batem em nosso rosto. No sopé do morro tiramos uma boa foto dos elefantes do outro lado da água, a uns 45 metros de distância. Dou a 200mm a Baiju.

“Consigo ver os pelos do traseiro dele! É fantástico!” Baiju tira 20 fotos idênticas, tremendo de satisfação toda vez que focalizada uma tromba na mira da câmera, mas com um novo ataque das chuvas se assomando sobre nós, não consigo evitar me preocupar com minha lente. Escondo minha câmera debaixo da camisa por proteção, mas Baiju fica balançando seu/meu equipamento como se fosse feito de borracha.

Depois de ficarem bufando à margem por um tempo, os elefantes dão um mergulho surpresa na água e começam a nadar direto para onde estamos. Julgando pelos montes de esterco fresco, a grama amassada e a rápida aproximação dos paquidermes, ficou claro que Baiju e eu estávamos bem no meio de um dos lugares preferidos deles. Resmungo algo sobre nossa provavelmente ilegal e certamente mal-educada invasão do pedaço dos elefantes, mas Baiju continua agachado no meio dos juncos.

Enquanto Baiju gasta a memória do seu chip, sinto uma leve coceira perto do meu calcanhar. Olho para meus pés de papete no meio da grama molhada e vejo duas linhas pegajosas pretas arroxeadas, como linhas de ranho escuro, agitando-se no meu pé direito. No começo não faço ideia sobre o que é isso que estou vendo, mas logo me dou conta. “Sanguessugas! Baiju, porra, sanguessugas! Vamos dar o fora daqui!” A chuva trouxe os malditos para a superfície com força. Limpo meu pé e grito para as sanguessugas como um gorila tentando intimidar um rival.

Firme na sua posição, Baiju nem percebe meu horror. Disparo pela trilha dos elefantes de volta para a estrada. O guarda florestal ainda está lá, de pé na chuva do lado do nosso carro, sorrindo como se esperasse uma gorjeta. Eu o ignoro e conduzo uma cuidadosa busca pessoal por sanguessugas. Baiju surge do mato cinco minutos depois de mim, sem fôlego, sem bateria e, o mais alarmante, completamente fora dos limites do profissionalismo. “Tinha muitos sanguessugas onde eu estava”, conta ele. Ele tira uma de sua panturrilha, como se tivesse tirando fiapos de um suéter, e a mostra para mim. “Eu lhe peço a generosidade de me permitir uma chuveirada quente em seu quarto de hotel hoje de noite. Você pode ter que pedir uma toalha extra.”


LAVA RAPIDO: Elefante e carros são lavados no rio que se formou com a água das chuvas perto da cidade de Choti, em Kerala. O elefante da foto é alugado pelo dono para festivais e eventos religiosos

POR DOIS DIAS APÓS o acidente de moto e os elefantes e sanguessugas, Baiju e eu viajamos de carro por uma região maravilhosa, nos expondo à intensidade total das chuveiradas onipresentes. Devolvemos as contagiantes risadas de estranhos buscando abrigo em soleiras de portas. Assistimos garotos escorregando, deslizando e gritando em jogos de futebol cobertos de lama. Rimos quando dois homens saem correndo de um ônibus e literalmente dançam no meio de pingos de chuva tão grandes que parecem meteoros. Como as temperaturas são muito altas, dá para ficar na chuva para sempre sem sentir frio.

Isso tudo é ótimo, mas para cada milímetro de chuva que cai, vou vendo minha teoria sobre as monções sendo levada embora por uma enxurrada de alegria coletiva. Longe de serem hostis ou indiferentes às monções, o povo de Kerala as recebem de braços abertos, claramente obtendo da chuva uma reconfortante segurança comunal. A natureza ainda tem importância, ao menos para esses indianos.

Em algum momento no meio disso, a velhinha e o paredão de água marrom voltam para assombrar meus sonhos. Entre esse sentimento de culpa e o colchão ruim, minha última noite na Índia se transforma em um inferno sem descanso que me deixa, na hora que Baiju me apanha na manhã de meu voo para casa, anormalmente irritado. “Por que você não me disse?”, reclamo enquanto abrimos caminho pelo trânsito da cidade.

— Disse o quê?

— Que eu estava errado.

Minha teoria. Falamos sobre isso uma semana inteira. Você traduziu entrevistas. Você me disse que eu era um homem abençoado com uma visão apurada.

— Eu acho que sua teoria é boa para cinco dias da semana. Olhe pela janela. É segunda-feira de novo. Os jogos de futebol e as danças você só vê no fim-de-semana. Agora as pessoas estão voltando para o mundo real, como se diz. É só outra segunda-feira com tempo ruim.

Uma das melhores coisas de se viajar é chegar ao ponto onde você esquece em que dia da semana está. Eu abro a janela. Chuva suja, cheiro de diesel e o barulho irritado de buzinas de carro de quem está atrasado para o trabalho entram no Ambassador. Parece com a Índia moderna de novo. Eu reclino o banco, fecho meus olhos e me acomodo para a lenta viagem até o aeroporto.

Para os coitados a caminho do trabalho em ameaçadores escritórios de TI, telemarketing e fábricas de automóveis que mudam o mundo, é com certeza só outra segunda-feira com tempo ruim. Para mim, entretanto, as coisas parecem ótimas. Graças a Baiju, consegui tirar algumas ótimas fotos das monções, apesar da falta de sangue; uma carona confiável de volta à garoa suave do mundo real; e pelo menos cinco sétimos de uma teoria que, como as monções, ainda tem um pouco de força.


M
AIS FUTEBOL: A água não é obstáculo para mais uma pelada nas ruas de Cochin. Quando esta foto foi feita, várias partidas aconteciam simultaneamente no local


Ciclo de enxágue

1. Muitos fatores contribuem para as condições de monções. A principal força que as move é o sol de verão, que aquece o continente asiático mais rapidamente que o oceano que o cerca.

2. Um intenso sistema de baixa pressão se desenvolve; ventos repletos de umidade vindos do sudoeste atingem o continente, trazendo com eles um dilúvio. O ciclo se inverte no inverno.

3. Conforme o ar quente e úmido das monções bate no Himalaia, ele é forçado a subir a se resfriar. O ar mais frio não consegue segurar a umidade, causando assim fortes chuvas.

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de março de 2010)