Por Douglas Fields*
“VOCÊ TEM QUE SER MEIO MALUCO PARA ESCALAR”, diz o doutor. Nicholás Fayed. Neurorradiologista na Clínica Quirón de Zaragoza, no norte da Espanha, Fayed me leva ao seu consultório e pega uma coleção de imagens de ressonância magnética. São exames cerebrais feitos em escaladores profissionais e amadores depois que eles voltaram de grandes expedições. Os resultados não são belos.
“Atrofia dos lobos frontais”, diz Fayed, mostrando uma fatia em preto e branco de um cérebro. O córtex frontal – a região logo atrás da testa que comanda funções importantes da mente – parece um pedaço de uma fruta seca. Esse tipo de dano pode prejudicar funções como a habilidade de planejar, o foco e a tomada de decisões complexas. E é permanente.
“Atrofia cortical, lesão subcortical”, continua, apontando as imagens de oito escaladores amadores, cujos exames foram feitos em 1998, logo depois de uma viagem ao Aconcágua, 6.962 metros. “Este cara foi quem sofreu os maiores danos”, diz. Ele me entrega uma foto de um escalador jovem e forte parado nas encostas nevadas da montanha, com uma aparência saudável e determinada. “Quando voltou, não conseguia lembrar o próprio telefone. Sua mulher o mandava para a padaria comprar um pãozinho e ele esquecia por que estava lá.”
Nicholás Fayed é um cientista reconhecido internacionalmente, que estuda anormalidades e danos cerebrais causados por diferentes problemas de saúde. Desde 1992 ele e seus colegas, o neurologista Pedro Modrego e o neurorradiologista Humberto Morales, têm colecionado ressonâncias de 35 escaladores de montanhas como Aconcágua, Everest, Kilimanjaro e Mont Blanc. As imagens fornecem um panorama sobre o que acontece com o cérebro em altitude – e os resultados não vão aumentar sua vontade de ir para o Everest. Mas a boa notícia para a maioria dos montanhistas é que os estudos de Fayed também sugerem que uma aclimatação bem feita pode reduzir bastante o risco de danos cerebrais.
CIENTISTAS HÁ MUITO SABEM que o cérebro pode ser danificado por doenças causadas por condições extremas, como o Edema Cerebral de Altitude (HACE, na sigla em inglês), em que os vasos sanguíneos deixam vazar fluidos para os tecidos ao redor, causando inchaço do cérebro, que, por sua vez, pressiona as paredes do crânio. Mas as imagens de Fayed são as primeiras a indicar que o dano cerebral pode aparecer mesmo em quem não apresentou sintomas do mal de altitude durante a escalada, ou que apresentou apenas a letargia e a náusea comuns a qualquer montanhista. O mais preocupante é que que os danos apareceram até em pessoas que escalaram não muito mais do que 4.500 metros.
Um exemplo é o Mont Blanc, montanha de 4.810 metros. Sete montanhistas alcançaram seu cume em 1998 sem demonstrar sintomas de mal de altitude. Quando fizeram tomografia, alguns dias depois, três deles apresentaram anormalidades sérias. Dois deles tinham um aumento dos espaços VR (Virchow-Robin) no cérebro – espaços vazios na massa encefálica ao redor dos vasos sanguíneos, que mais pareciam chumbinhos brancos nas ressonâncias (espaços VR aumentados são vistos em idosos e em pessoas com Mal de Alzheimer, mas normalmente não aparecem em pessoas por volta dos vinte ou trinta anos, a idade dos escaladores). Um montanhista tinha atrofia cortical – perda permanente de massa cinzenta, que pode causar distúrbio de atenção e outros problemas – e outro tinha uma lesão subcortical, dano na rede de caminhos neurais na massa branca que pode ser a causa de inúmeros e sérios problemas.
Efeitos semelhantes foram vistos no Aconcágua. A maioria entre os oito montanhistas amadores nem chegou acima dos 6.400 metros (um deles chegou a apenas 5.480 metros). Ainda assim, nenhum teve resultado normal nos exames. Quatro dos escaladores sofreram lesões subcorticais múltiplas, sete tinham vários aumentos dos espaços VR e todos demonstraram sinais de atrofia cortical – mesmo tendo nenhum ou muito poucos sinais de mal de montanha durante a escalada.
Os riscos em altitudes extremas são claros. Estudos demonstraram que escaladores que passaram anos escalando no Himalaia sem oxigênio suplementar frequentemente apresentam problemas que podem ser detectados numa ressonância. Mas os efeitos vistos em altitudes médias são mais desconcertantes. “É fácil compreender o mal a 7 mil metros”, diz o doutor Gianni Losano, diretor do instituto Angelo Mosso, um dos principais laboratórios de estudos de altitude, localizado nos Alpes, próximo a Turim, Itália. “Mas no Mont Blanc?”.
LI A RESPEITO DOS TRABALHOS de Fayed numa edição de 2006 do The American Journal of Medicine e, como escalador e neurocientista, isso me perturbou. Nunca escalei nada como o Aconcágua, mas passei 37 dos meus 56 anos de idade subindo picos nos Estados Unidos e Alpes, todos eles com menos de 4.500 metros. Assim como a maioria dos montanhistas, eu tive minha cota de mal de montanha, então o trabalho de Fayed me fez pensar: será que todo esse tempo na montanha prejudicou meu cérebro? Para descobrir, decidi usar a mim mesmo como cobaia, escalando o popular monte Rainier, em Washington (EUA) e logo depois voando para a Espanha para que Fayed examinasse meu cérebro.
O Rainier é um bom lugar para buscar o mal de altitude. O vulcão cercado de geleiras ergue-se íngreme até 4.390 metros, e a maioria das centenas de amadores que tentam subi-lo voam até a vizinha Seattle, ao nível do mar. Asim como o Mont Blanc, o Rainier é frequentemente escalado num único fim de semana, um tempo muito curto para que o corpo consiga se aclimatar.
Meu filho Dylan, de 26 anos, foi comigo e, em nossa primeira noite, dormimos a 970 metros de altitude, num acampamento à beira da estrada que leva até a montanha. No dia seguinte, dirigimos até a entrada da trilha, a 1.650 metros e começamos nossa subida num whiteout (situação meteorológica em que a névoa se encontra com a neve e não se enxerga nada a não ser branco). Uma tempestade nos forçou a dormir a 2.570 metros, onde esperamos durante toda a noite o fim dos ventos de 80 km/h.
Na manhã seguinte, seguimos nossa bússola através da branquidão total até o refúgio no acampamento Muir, onde encontramos outras equipes e guias da International Mountain Guides, uma das empresas que comercializa escaladas do Rainier. Um dos guias, Karl Rigrish, estimou que 40% dos clientes da empresa sofrem pelo menos sintomas leves do mal de montanha naquela escalada. A chave para evitar a situação, afirmou, em consonância com outros guias, é pegar leve. Gary Talcott, guia da Rainier Mountaineering Inc., recomenda não subir mais do que 600 metros por dia e manter-se hidratado, o que ajuda a manter o sangue mais fino.
Textos médicos são até mais conservadores, indicando uma taxa de ascensão de 300 metros por dia acima dos 1.500 metros, evitando o mal agudo de montanha, ou AMS. Mas quem tem tempo para isso? No Rainier, isso significaria levar cinco dias para alcançar o acampamento médio, coisa que a maioria dos montanhistas fazem em um dia, e nós fizemos em dois. As empresas de guias ficariam muito felizes em fazer a expedição em um ritmo mais lento, mas a maioria dos clientes quer a viagem mais barata e a subida mais rápida, confiando nos guias para tomarem conta deles em caso de enrascadas.
Os resultados dos estudos de Fayed indicam que o dano cerebral das escaladas em altitude pode ser reduzido ou até eliminado com uma aclimatação apropriada, coisa que os amadores não se empenham muito em fazer. A equipe amadora no Mont Blanc levou apenas dois dias para escalar 2.500 metros até o cume, e metade da equipe demonstrou sinais claros de danos nos exames feitos após a escalada. Os amadores no Aconcágua reservaram seis dias de aclimatação para a escalada de 2.750 metros verticais (em comparação com as duas ou três semanas utilizadas pelas equipes comerciais), e todas as ressonâncias mostraram problemas (um segundo exame três dias depois não demonstrou melhora). Cinco dos 23 espanhois estudados tiveram lesões subcorticais irreversíveis – a mais séria lesão cerebral encontrada pela equipe médica. Nenhum dos 12 profissionais tiveram problemas.
Os prós não tinham nenhum dom bioquímico – seu exame de sangue indicou níveis similares de células vermelhas, que carregam oxigênio – mas parece que aclimataram melhor usando as técnicas certas, evitando erros amadores que estressam o corpo. “Os amadores têm que provar alguma coisa, então se matam para chegar até o campo base e se predispõem a ficar mal”, diz o escalador e fotógrafo Jimmy Chin. “Quando estamos caminhando até o base, um profissional como Conrad Anker fica no fim da fila, dando um tempo, sentindo o perfume das flores. Eu acho que isso ajuda.”
Em nossa escalada, a tempestade não amainou, então descemos do Acampamento Muir, a 3.290 metros. Durante a descida, fomos lembrados que a montanha oferece muito mais riscos do que o ar rarefeito. Uma hora depois de deixarmos o acampamento, Dylan rompeu uma frágil ponte de neve sobre uma fenda. Ele se arrastou para fora enquanto o bloco se esfarelava abismo abaixo.
Alguns dias depois, voei para a Espanha para fazer meu exame. Quando terminou, Fayed e Modrego observaram as fatias do meu cérebro descascando como mágica as camadas do meu córtex ondulado. “Um pequeno espaço VR”, disse Fayed. Observou alguns outros e disse “Mais um”.
“Perfeitamente normal”, assegurou Modrego. “Para a sua idade.”
Fayed queimou um CD com as imagens 3D do meu cérebro e entregou-me com um sorriso. Eu estava livre, mas alguma coisa ainda me incomodava.
ESTA CIÊNCIA AINDA ESTÁ EM SUA INFÂNCIA. Não há muitos estudos de mudanças no cérebro de escaladores de altitudes moderadas, em parte por ser difícil conseguir a aprovação necessária para se realizar um estudo em humanos em situações que os coloquem em risco de lesões, e em parte porque a maioria dos escaladores que retornam dessas viagens parece estar saudável, sem necessidade de fazer uma ressonância de três mil dólares. Mas os poucos estudos que já foram feitos parecem apoiar as descobertas da equipe médica espanhola.
Ainda não está claro até que altitude deve-se chegar, e a que velocidade, para que seus neurônios comecem a morrer em massa. O maior risco está acima dos 4.500 metros, mas não há razão para se assumir que isso não vá acontecer a altitudes mais baixas. Minha ressonância, sem alterações, é o tipo de dado sobre o qual alguém pode basear uma conclusão definitiva, mas para mim ela sugere que alguém que escalou montanhas por anos a fio deve estar bem, se tomar os cuidados necessários com aclimatação.
Mesmo assim, está claro que escaladas em altitude podem fazer muito mal. Antes da viagem ao Kilimanjaro, os sete escaladores do estudo de Fayed fizeram um exame para confirmar que não tinham lesão preexistente; depois, o exame de um deles mostrou a aparência de chumbinho branco dos espaços VR aumentados em seu cérebro. Já que os danos podem ocorrer sem sintomas de mal de montanha, só se pode assumir que, quanto pior você se sentir, maiores os riscos.
Também estamos descobrindo que, quanto mais velho, mais sucetível você fica à hipóxia de altitude. De acordo com o mais recente estudo de Fayed, publicado na internet em maio no The Journal Neurological Research, os riscos de mal de montanha e danos cerebrais aumentam com a idade – escaladores no final dos trinta anos e começo dos quarenta têm mais propensão a ter AMS ou danos cerebrais do que escaladores em seus vinte ou trinta e poucos anos.
Pode-se pensar que tudo isso levaria à hesitação aquelas pessoas cuja paixão os leva às mais altas montanhas. Mas ao perguntar a Fayed se algum dos escaladores do estudo deixou o esporte ao ver os resultados, ele respondeu: “Eles ainda estão escalando. Nossa proposta não é convencer ninguém a parar de escalar. É apenas alertar as pessoas e mostrar-hes que precisam se aclimatar corretamente”.
A maioria dos escaladores e montanhistas com quem conversei parecia despreocupada quanto aos riscos. A atenção deles está voltada a perigos muito mais imediatos e mortais. E muitos deles já suspeitam há anos que altitudes elevadas têm algum efeito no cérebro. “O montanhismo em altitudes elevadas certamente mata células cerebrais”, diz Melissa Arnot, guia da Rainier Mountaineering Inc.. “É isso que eu faço da vida. É minha profissão.” Um escalador conhecido internacionalmente me confidenciou que não tem certeza de que suas funções cognitivas se recuperam totalmente após grandes escaladas, ou se ele simplesmente se acostuma a uma capacidade diminuída. Outro guia da RMI, Alex Van Steen, me disse que “às vezes você não volta ao normal depois da escalada”.
Eu não vou parar de escalar. Mas a ciência de Fayed é concreta, e já mudou a forma como encaro a coisa. Não vou cair mais na tentação de passar do limite da dor do mal de montanha para tentar alcançar o cume. Escaladores estão sempre procurando sinais externos de que deveriam dar meia volta: o tempo que vira, colegas enfraquecidos, neve instável. Agora, está claro que o mal de montanha é um aviso interno de que se deve tratar esse assunto com mais respeito. O neurobiólogo Douglas Fields é editor do jornal Neuron Glia Biology e autor do livro ainda em impressão The Other Brain [O Outro Cérebro] (Simon & Schuster), disponível a partir de janeiro.
PROTEJA SEU CÉREBRO
> Está vindo do nível do mar? Passe uma noite a 1.500 metros.
> Suba o mais devagar possível. Em parâmetros médicos, o mais seguro é subir a uma taxa de 300 metros por dia a partir dos 2.700 metros.
> Fique o menor tempo possível acima dos 6 mil metros.
> Suba bastante, durma o mais baixo possível. Altitudes elevadas irão dar a partida ao processo de aclimatação, e descer à noite permite que o corpo se adapte. Ou coloque um dia de descaso a cada dois ou três dias.
> Escute seu corpo. Nunca suba com sintomas óbvios de mal de altitude; desça se os sintomas piorarem.
> Hidrate-se, evite sal em excesso e coma alimentos ricos em carboidratos.
> Não beba álcool – ele desidrata e diminui a taxa respiratória.
NÃO ESTOU ME SENTINDO MUITO BEM…
O mal de altitude pode acometer mesmo em altitudes baixas, como 1.800 metros, mas ocorre mais comumente acima dos 2.500 metros, normalmente em pessoas que subiram muito rápido. A primeira fase, o MAL AGUDO DE MONTANHA (AMS), envolve um leve inchaço cerebral que, de acordo com o estudo espanhol, pode causar danos duradouros. Os sintomas são dores de cabeça, náusea e mal estar; ao começar a sentir esses sintomas, desça até que desapareçam. Se o inchaço continuar a piorar, pode se transformar em EDEMA CEREBRAL DE ALTITUDE (HACE), uma doença muito séria. Ilusões, confusão mental e instabilidade emocional são os primeiros sintomas, que podem evoluir para falta de coordenação, inconsciência e morte.
Eis aqui o que acontece: em altitude, a falta de oxigênio causa o aumento das frequências respiratória e cardíaca. Isso faz com que você expire muito dióxido de carbono, o que desregula o balanço de água e eletrólitos no sangue. Esse desbalanço, por sua vez, danifica os capilares das paredes do cérebro e do pulmão, causando um vazamento de fluido nos tecidos adjacentes e gerando um inchaço do cérebro. O sangue também fica mais espesso por causa da maior produção das células que transportam oxigênio e também da desidratação. Nos casos mais sérios, formam-se coágulos no sangue espessado, causando pequenos derrames.
OS RESULTADOS ESTÃO AÍ (E SÃO MEIO ASSUSTADORES)
O relatório espanhol não é o único a examinar danos cerebrais em montanhistas saudáveis. Comparando exames feitos no cérebro de nove montanhistas antes e depois de expedições ao K2 ou ao Everest, a doutora Margherita Di Paola e seus colegas da Universidade de Roma descobriram que todos perderam tanto massa cinza quanto branca. O estudo também demonstrou danos maiores em regiões do cérebro que controlam o lado dominante do corpo – talvez devido à maior demanda de oxigênio pelas partes que controlam o movimento.
Um estudo de 1996 publicado no British Journal Clinical Science comparou exames de 21 escaladores de elite que haviam subido acima dos 7.900 metros e um grupo de controle de 21 pessoas que nunca haviam estado em altitudes elevadas. Sessenta por cento dos escaladores demonstraram sinais de leve atrofia cortical ou danos na massa branca, em regiões profundas do cérebro. Sete sherpas de elite que escalaram na mesma altitude, mas que viviam em altitudes elevadas também foram estudados. Apenas um demonstrou efeitos semelhantes. Os autores recomendam aclimatação mais lenta.
(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de março de 2010)