Por Laís Fleury
NÃO HÁ NENHUM LUGAR NO MUNDO igual ao Butão. Tudo bem, nenhum país é igual a outro. Mas para entender a intensa experiência que tive ao viajar por uma das terras mais desconhecidas e fascinantes do planeta, só conhecendo a metáfora da cebola, que um amigo meu me ensinou: associe a imagem de uma cebola cortada pela metade com o processo que passamos quando nos deparamos com uma cultura diferente da nossa. Cada camada da cebola simboliza aspectos semelhantes e diferentes que identificamos no contato com o outro. A camada externa é a mais notável, portanto a mais superficial: representa os artefatos e produtos, como comida, arquitetura, roupas e outros. Ao descascar a cebola, entramos em contato com camadas mais profundas, não vistas a olho nu. É lá que estão os valores, a visão de mundo e as crenças da população. É neste miolo protegido que reside a beleza e a singularidade do Butão.
Este pequeno país de 750 mil habitantes (a mesma população que a cidade de Natal, no Rio Grande do Norte) é um reinado espremido entre a Índia e o Tibete e parece ter sido congelado na idade medieval. O atual rei Jigme Singji Wangchuck – um homem bonito, casado com suas quatro irmãs – detém o poder desde 1974. Graças à sua sábia filosofia para governar, optou por mensurar o progresso e desenvolvimento do país não pelo Produto Interno Bruto (o PIB, que contabiliza a riqueza monetária produzida por um país), mas pelo Índice de Felicidade da População, ou o Gross National Happiness. Dá para acreditar que em pleno século 21, marcado pelo consumo e ganância pelo dinheiro, existe um lugar que considera a felicidade da população como o principal termômetro do desenvolvimento?
Viajei ao Butão a convite de Karma Thsering, um jovem de 32 anos e experiente guia, profundo conhecedor da cultura butanesa e da filosofia budista. Segundo ele, a motivação do convite surgiu por eu ser a primeira brasileira até então interessada em viajar sozinha por aquelas bandas. Fui recepcionada com um lenço budista de cor bege colocado no meu pescoço, como ritual de boas-vindas para os próximos 15 dias.
Karma Thsering me recebeu vestido com uma espécie de quimono de tecido refinado e longas mangas brancas, meias escuras até o joelho e um sapato preto clássico. No primeiro instante, pensei que o look era só para impressionar a turista. Olhei ao redor e percebi que todos os homens, das crianças aos mais velhos, vestiam trajes similares. Esta é a forma tradicional e corriqueira de se vestir dos butaneses: os homens usam o gho e as mulheres a kira, um vestido feito de tecidos coloridos e bordados, amarrado por um cinto apertado e acompanhado por um casaquinho de manga três quarto. É incrível observar uma sociedade com um estilo tão padronizado e elegante. Olhar as pessoas caminhando na rua me dava a sensação de que estava num lugar que tinha outro tempo, outra lógica.
Até 1974, quando foi construída a estrada que liga Phuntsholing, na fronteira com a Índia, aos altos vales de Paro e à capital Thimphu, o Butão foi conhecido durante séculos como a Terra Proibida. Mas o isolamento não acontecia por motivos políticos ou históricos e sim por questões geográficas: a topografia do país se assemelha a uma gigante escada, que varia entre os vales a 150 metros de altitude até os picos cobertos de neve, a 7 mil metros.
Até hoje, a existência de apenas um aeroporto, na cidade de Paro, exige que o acesso a outros lugares do Butão seja feito de carro ou mulas, como acontecia antes da construção da estrada. E é dentro do carro que se passa a maior parte do tempo quando se viaja por lá. A silhueta fina e tortuosa da estrada de mão única, associada ao desafio de atravessar as íngremes montanhas do Himalaia, faz com que 180 quilômetros sejam percorridos em oito horas. Mas, apesar de longa, a viagem não entedia. O tempo é ideal para admirar a densa e intocada floresta, que lembra o tapete verde da Amazônia.
E foi dentro do carro que tive os melhores papos com Karma Thsering, que além de guia e motorista é também tradutor de ensinamentos budistas para alguns lamas (sacerdotes), o que o torna uma biblioteca viva. Ouvindo as suas explicações ficou bem mais fácil entender a cultura espiritualizada e o dia-a-dia cheio de rituais budistas dos butaneses.
Pela janela via, em todas as direções, bandeiras coloridas penduradas em casas, árvores, templos e nos lugares mais inusitados. Nessas bandeirolas budistas, vistas também no Nepal e Tibete, estão impressas mensagens sagradas e símbolos auspiciosos que, segundo eles, devem ser disseminados. Acredita-se que as orações são levadas pelo vento para o universo e que assim todos os seres vivos são abençoados por elas. Já as cinco cores diferentes das bandeiras representam os elementos naturais que compõe o universo: amarela (terra), verde (vegetação), vermelha (fogo), branca (ar) e azul (água). É uma forma budista de disseminar a filosofia sem precisar da presença humana. E passear por suas terras sagradas é receber bênçãos dos ventos. “O Butão é um país onde a prática e a crença são a mesma coisa”, me disse um fotógrafo norte-americano, justificando a visita anual que ele faz ao país.
APESAR DE 79% DA POPULAÇÃO DEPENDER DA AGRICULTURA, apenas 8% do território butanês é arável: 72% são florestas intocadas e 20% estão sob o gelo. Além de seguirem a risca os ensinamentos budistas de não matar bichos e nem desmatar florestas, eles acreditam que não há melhor remédio contra o estresse do que o contato com a natureza. “Quando se sentir deprimido, vá para a floresta, sente-se perto de um rio e ouça o som dos pássaros e dos ventos. Sua paciência certamente será recuperada”, propõe Karma Ura, diretor do Centro de Estudos Butaneses, durante uma aula para alunos da Universidade de Tongza sobre o Índice de Felicidade da População.
Grandes cidades – como Paro, Timphu e Pokhara – estão em vales férteis. A quantidade de verde nestes centros urbanos foi uma das coisas que mais me impressionou desde a primeira vista aérea dos vales contornados por montanhas. A baixa densidade demográfica também contribui para que a zona urbana seja confundida com a zona rural.
Eu optei por rasgar o país de leste a oeste pela sua tortuosa estrada principal, a estrada Lateral, de apenas 240 quilômetros de extensão. Para brasileiros acostumados a enormes dimensões geográficas, chega a ser engraçado rodar um país de cabo a rabo em apenas três dias. Durante todo o percurso não vi um único quilômetro sequer desmatado. Pelo contrário. A estrada é contornada por um denso e imenso veludo verde, com muitos pássaros e flores – o respeito à natureza se estende também aos animais.
Antigamente havia um zoológico em Thimphu, mas o rei mandou soltar os bichos, pois o aprisionamento não é compatível com os dogmas budistas. Assim que ganharam liberdade, quase todos os animais desapareceram nas florestas do entorno, exceto um exemplar do takin, um curioso quadrúpede reconhecido como o animal nacional do Butão, que ficou rondando as ruas, sem saber para onde ir. Conta a lenda que este estranho bicho peludo é o resultado do cruzamento da vaca com a cabra. A mistura fora criada pelo lama Drukpa Kunley, conhecido como Divine Mada Man, para provar à população local seus poderes sobrenaturais durante uma visita no século 15. Se é verdade eu não sei, mas que o animal existe, existe. Eu o vi com meus próprios olhos.
TER TEMPO, PARA OS BUTANESES, É ALGO PRECIOSO, uma dádiva a ser cultivada. Ao contrário do ritmo frenético do mundo ocidental, investir tempo na prática de esportes, no convívio coletivo e no vazio do descanso é digno de respeito. “A mente calma encontra paz mesmo diante de momentos difíceis”, dizia Karma Ura.
Foi numa segunda-feira, às 15 horas da tarde, por exemplo, que eu assisti, em meio a uma platéia lotada, a um jogo de arco e flecha, o esporte nacional predileto dos butaneses, equivalente ao nosso futebol. Os arcos e as flechas são tradicionalmente feitos de bambus e os alvos estão num grande campo a uma distância de 150 metros (em jogos internacionais são meros 50 metros). A cada ponto marcado, os jogadores comemoravam com uma dança em roda e uma cantiga. O campo a céu aberto era lindo. A comportada platéia, composta por monges e predominantemente masculina, vestia coloridos e elegantes ghos, inspirando uma atmosfera medieval. Fiquei horas assistindo ao jogo, fascinada por ver essa antiga prática profissional nos tempos atuais.
O ato da contemplação tem muito a ver com o modo de vida dos butaneses. Os mais de 2 mil templos e monastérios espalhados por todo o país e a onipresença de monges de quimonos vermelhos indica a importância que a religião budista exerce em quase todos os aspectos da vida deles. Os templos são freqüentados diariamente, a qualquer hora, e a prática da meditação é uma atividade tão habitual como escovar os dentes. Em todos os estados há os dzongs, enormes fortalezas de arquitetura tipicamente butanesa, com altas paredes brancas e telhados cor de ameixa, envolvendo um complexo de pátios, templos, escritórios administrativos e acomodação para monges. Foram construídos por volta do ano de 1600 em pontos estratégicos, com o intuito de se defenderem contra ataques e invasões de outros países. Imponentes, são avistados de longe, no alto das montanhas e das colinas. Certamente são o cartão-postal de Butão.
Os exercícios mentais dos butaneses não são direcionados a coisas materiais, mas sim à compaixão e ao bem-estar dos seres vivos de todo o universo. Na minha convivência com Karma Tshering, notei esses valores nos mais singelos atos. “Eu gostaria de compartilhar o privilégio deste momento com todos os seres vivos do mundo”, dizia ele quando via uma bela paisagem ou entrava em algum monastério que o emocionava. Nas visitas aos templos, doava dinheiro e me explicava que oferendas eram um hábito. Ao comer, antes de dar a primeira colherada, espalhava um pouco de comida ao seu redor como forma simbólica de compartilhar o alimento com seres que não o tem.
O REINADO DE BUTÃO TEM UM PROPÓSITO HUMANÍSTICO, focado nas relações sociais de cooperação e paz entre todos, valores que não tem preço no mercado financeiro ocidental. O conceito de felicidade está associado à boa qualidade do relacionamento humano em seus diferentes níveis, como família, amigos, comunidade, governo e natureza. É neste contexto que o trabalho voluntário se encaixa: todos devem servir ao outro e à sua comunidade.
Prova disso é o evento mais importante do calendário butanês, os Tsechus, que são belíssimos festivais religiosos que acontecem em grandes monastérios e dzongs por todo o país durante o outono, período de descanso dos fazendeiros. A organização da festa é fruto do trabalho voluntário dos moradores da vila que acolhe os festivais.
Assisti a um desses festivais no vilarejo de Ura, situado no mágico vale de Bhumtang, com suas magníficas vistas das montanhas e verdes campos de arroz. As apresentações tiveram como cenário um pátio a céu aberto com um enorme templo ao fundo. Os bailarinos e músicos são monges e voluntários da comunidade, treinados para a apresentação. Eles vestem rebuscadas fantasias e máscaras que representam animais, deuses e demônios. Os mestres de cerimônia são palhaços (os atsaras) que, além de conduzirem a festa, entretém a platéia nos intervalos e arrecadam fundos para o festival do ano seguinte.
As danças são lindas. Os bailarinos entram no pátio guiados pelo som dos clarinetes, tocados por uma fila de monges com chapéus vermelhos pontiagudos. Completada a entrada, os monges se retiram e uma trupe de músicos começa a tocar instrumentos de sopro similares ao nosso oboé, assim como tambores e instrumentos que parecem chifres de animais.
As coreografias transmitem mensagens religiosas e retratam parte da história do país. A Dança do Chapéu Preto purifica a terra, assusta os maus espíritos e encena o assassinato do rei antibudista Langdharma. Em seguida, assisti à Dança dos Tambores de Dramitse, encenada por 12 homens vestidos com máscaras de animais, que celebram a vitória da religião. E assim seguem quase 12 horas ininterruptas de apresentação.
Acredita-se que quem assiste ao espetáculo acumula grandes méritos. Sentadas debaixo da sombra das árvores, as mulheres da platéia vestem suas melhores e mais bordadas kiras, os homens capricham nos tecidos de seus ghos, as crianças brincam com armas de plásticos (uma influência direta da televisão, que chegou ao país em 1999) e os monges circulam por todos os lados do grande evento social desse povo. Eu aproveitei o embalo para me vestir a caráter. Foi a forma que encontrei de prestigiar os butaneses e expressar o meu respeito pela cultura e pelo evento.
AO CONTRÁRIO DO MUNDO OCIDENTAL, que enriquece a partir do desmatamento das florestas e da deterioração de seu patrimônio cultural, o Butão não se perverte com a ganância pelo dinheiro e pelo consumo. “Não queremos nos manter isolados do mundo. Queremos prosperidade, mas não à custa da deterioração de nossa cultura e de valores tradicionais. Desejamos nos beneficiar das coisas boas do mundo ocidental, mas no ritmo do nosso próprio passo, de acordo com as nossas necessidades e quando sentirmos que é a hora certa”, explica a rainha Ashi Dorji Wangmo Wangchuck, uma das quatro esposas do rei, no seu livro A Portrait of Bhutan (Um Retrato do Butão, não lançado no Brasil).
Por isso eles esperaram até 1983 para construir o aeroporto de Paro, abrindo de fato, então, o país para o turismo. Mesmo assim, o Butão ainda é para poucos visitantes. Por temerem o impacto negativo da presença maciça de estrangeiros, o governo cobra caro dos forasteiros, limitando o roteiro e sempre exigindo a presença de guias nativos. Em contrapartida, oferecem uma excelente infra-estrutura e hospitalidade a essa minoria.
Sentia-me, a todo momento, extremamente honrada por conhecer um país tão pequenininho e com tantas grandezas. No fim da viagem, tentando entender porque me apaixonei por aquele lugar, a imagem da cebola descascada era perfeita. O contato com as camadas superficiais do Butão tinha sido lindo, com aquelas roupas e paisagens. Mas o que ficou mesmo gravado na fita magnética da minha memória foi o miolo: a experiência de vida que desafia um ocidental a entender que o sucesso não está associado ao dinheiro acumulado, mas ao raro prazer de se sentir feliz, vivendo em paz na sua própria terra e com a natureza. Uma satisfação que acalma a alma e – tal e qual como a cebola – faz os olhos dos viajantes saudosos se encherem de lágrimas.
A goiana Laís Fleury tem 33 anos, é uma das fundadoras da Associação Vaga Lume e empreendedora social pela Ashoka (ashoka.org.br). Atualmente trabalha como instrutora de atividades ao ar livre para Outward Bound Brasil (obb.org.br) e para a NOLS, a National Outdoor Leadership School (nols.edu)
É pra lá que eu vou!
O Butão possui apenas uma companhia aérea, a Druk Air (drukair.com.bt), que opera dois a três vôos semanais (dependendo da temporada) saindo da Índia, Nepal e Tailândia. O trecho de Kathmandu (Nepal) a Paro, com lindíssima vista da cadeia do Himalaia, é recomendado. Por terra, uma opção é via Phuntsholing, cidade ao sul do país que faz divisa com o estado indiano de Bengal do Oeste, a apenas 186 quilômetros de Paro.
(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de março de 2008)
TRABALHEIRA: O monastério de Tiger Nest, cartão-postal do Butão, foi misteriosamente construído no alto de uma rocha muito íngreme
HIPNOTIZANTE: O bailado durante as danças religiosas e a riqueza do colorido das roupas dos butaneses