Por Mario Mele e Marilin Novak
Em apenas três meses, 2008 já subiu mais paredes do que muitos anos anteriores na escalada brasileira. Teve Cesinha e Belê faturando o Master de Pucón. Teve Felipinho encadenando uma das vias mais difíceis do Brasil e virando notícia lá fora. E este mês tem também a volta de Rodrigo Raineri ao Everest, para uma nova tentativa de chegar ao cume sem oxigênio artificial. Abaixo, uma geral nesses e em outros feitos que já tornam 2008 especial para os amantes das paredes.
Dominação brasuca
Os escaladores que estiveram em Pucón (Chile) nos dias 1 e 2 de fevereiro viraram as costas para o vulcão Villarrica e se concentraram no 2º Master de Pucón, um desafio de boulder que reuniu 54 escaladores – 38 homens e 16 mulheres – de seis países: Argentina, Bolívia, Chile, Colômbia, Estados Unidos e o Brasil, que dominou a área. César Grosso (um de nossos Outsiders 2007) ficou em primeiro lugar e André “Belê” Berezoski em segundo, por apenas uma agarra de diferença. A também brasileira Janine Cardoso foi a terceira melhor mulher das paredes artificiais montadas na praça central da cidade, atrás da campeã de 42 anos Sara Alwin e de Soho Langbehn, de 16 anos, ambas chilenas.
Com o feito, Cesinha e Belê colocaram a mão na bolada de US$ 8.750, mais de 60% da premiação dos homens. Mas o motivo maior de felicidade foi terem superado o fenômeno Daniel Woods, uma referência da escalada mundial, que ficou em terceiro. O norte-americano calibrou a sua reputação ano passado ao mandar o boulder Jade, um v15 de extrema dificuldade que fica no estado do Colorado (EUA). Aos 18 anos, ele tem apoio das grandes marcas mundiais de montanhismo, entre elas a The North Face, também uma das patrocinadoras do Master. Ou seja, o convidado de honra chegou ao evento com todos os holofotes voltados para si. A vitória dos brasileiros foi uma prova de que a nossa escalada já está num patamar bem mais alto do que anos anteriores.
O primeiro dia em Pucón foi de eliminatórias, no sistema “à vista”: cada escalador tinha seis minutos para concluir um boulder e mais seis minutos para descansar, antes de partir para o próximo. Cesinha foi o primeiro a se classificar, completando três boulderes em três tentativas e garantindo a vaga para a semifinal. “Fiquei feliz, mas a competição estava apenas na metade. Tinha que continuar me empenhando”, contou.
No dia seguinte, a semifinal foi disputada entre oito escaladores, com quatro chegando ao boulder decisivo. Cesinha foi o último a entrar nesse último boulder. “Estava adrenalizado. Coloquei o fone de ouvido e me concentrei nos movimentos que executaria”. Pilhado pelo rock de Sex Pistols, Sepultura e Rage Against the Machine, Cesinha entrou confiante para o tudo ou nada. Depois de alguns movimentos grudados na parede, ele conseguiu tocar uma agarra um centímetro mais alta do que a que Belê tinha alcançado.
A derrota milimétrica não diminuiu a satisfação do vice. “Foi o melhor campeonato de boulder de que já participei em 16 anos de competição. Além da energia do local, a premiação foi maior do que qualquer etapa do mundial”, conta o paranaense radicado em São Paulo Belê.
Façanha internacional
Depois de garantir a melhor colocação sul-americana numa das etapas do Campeonato Mundial de Escalada Esportiva em 2007 – 29º lugar, na Espanha, em setembro –, Felipe Camargo provou novamente que está na elite do esporte, mesmo tendo apenas 16 anos. Em janeiro ele encadenou (foi o primeiro a completar sem cair, mas não na primeira tentativa) a via Coquetel de Energia, o primeiro 10c aberto na América Latina, inaugurada em 2000 e até hoje considerada uma das mais difíceis do país.
A Coquetel fica num paredão de 15 metros na Floresta da Tijuca, no Rio de Janeiro, e suas minúsculas agarras já tiraram o sono de muito escalador experiente. “Quando comecei a escalar, em 2001, vi o carioca Helmut Becker num vídeo encadenando a via pela primeira vez. Fiquei impressionado e sonhei conseguir repetir o feito um dia”, conta Felipinho.
Em 2007, Felipe dedicou a maior parte do seu tempo aos campeonatos indoors. Quando a temporada de competições acabou, ele voltou à rocha e na primeira oportunidade que teve saiu de São José do Rio Preto (SP), onde mora, direto para o Rio tentar a Coquetel. Seu trabalho ao ar livre durou três dias, com cinco tentativas na via. A cada queda, Felipe recomeçava do zero. “É uma via curta e grossa, de apenas 30 movimentos bem concentrados, que exigem muita força”, conta. A ascensão vitoriosa, no dia 4 de janeiro, durou cerca de seis minutos e foi uma das subidas mais rápidas já registradas na Coquetel.
Com o êxito, o nome do brasileiro repercutiu na mídia internacional especializada – afinal, não é todo dia que um escalador brasileiro de 16 anos leva a melhor num paredão que demanda tanta técnica e resistência. Felipe foi notícia no site da revista espanhola Desnivel (desnivel.com), no site francês Kairn (kairn.com) e no site que organiza o maior ranking virtual do mundo da escalada (8a.nu).
“Foi a via mais difícil que fiz. Mas será por pouco tempo”, garante Felipinho. O foco agora é o Campeonato Mundial Juvenil, que acontece em agosto na Austrália. “Também pretendo representar o Brasil no World Games, em 2009, em Taiwan”. Mas para garantir uma vaga nos jogos que reúnem mais de 30 diferentes esportes reconhecidos pelo COI, mas ainda não-olímpicos, ele precisa disputar algumas etapas da Copa do Mundo de 2008, e ser o melhor atleta americano. “Comecei o ano bem e estou motivado para treinar e correr atrás dos meus sonhos”, afirma o garoto prodígio.
Reconciliação
Rodrigo Raineri quer definitivamente fazer as pazes com a montanha. Depois de seu amigo e parceiro de esporte, Vitor Negrete, morrer ao descer do Everest na temporada de 2006, o paulista de Ibitinga se prepara para retornar à montanha mais alta do mundo pela primeira vez dia em março, para se aclimatar e esperar a janela de tempo que possibilitará a investida ao cume.
Em 2005, na primeira ida da dupla ao Everest, somente Vitor chegou ao cume, utilizando oxigênio engarrafado. Em 2006 Vitor e Rodrigo subiram até o acampamento 3 do Everest pela face norte, considerada a mais difícil. Por diferenças de aclimatação – fato comum quando se está acima dos oito mil metros de altitude – eles não realizaram juntos o ataque final ao cume. Apenas Vitor subiu, alcançando o topo sem oxigênio suplementar. Infelizmente, o desgaste foi grande e Vitor teve que ser socorrido por um sherpa na descida, morrendo horas depois de chegar ao acampamento 3.
Em outubro de 2007, Rodrigo chegou a subir algumas montanhas no Nepal. “É complicado voltar pra lá, mas fiz um preparo físico e psicológico para conseguir estar em paz comigo e com a montanha”, conta. A partir de novembro, ele intensificou os treinamentos, praticando musculação para fortalecer a região lombar e natação para melhorar a respiração e ganhar resistência.
Desta vez, a subida será pela face sul. O principal desafio continua sendo não recorrer ao oxigênio extra, mas há outros lances a serem superados, como a cascata de gelo do Khumbu, onde as gretas em constante movimento deixam o lugar parecido com um labirinto. Segundo Rodrigo, outro ponto que merece atenção é a face de Lhotse, uma passagem obrigatória para quem escala o Everest pelo flanco sul. O caminho pelo paredão glacial oferece iminente perigo de avalanches. Para minimizar os riscos em ambos os trechos, o montanhista precisa ter uma análise minuciosa das condições do clima. Rodrigo também subirá com o montanhista e médico Eduardo Kappke, que não abrirá mão do uso do oxigênio suplementar enquanto acompanha Rodrigo.
A aventura poderá ser acompanhada pelo site rodrigoraineri.com.br, atualizado diretamente da montanha por meio de internet via satélite.
Rumo ao Olimpo
No finalzinho de 2007 (10 de dezembro) a comunidade da escalada esportiva internacional recebeu uma notícia pra lá de animadora: o Comitê Olímpico Internacional (COI) reconheceu a modalidade como olímpica e a Federação Internacional de Escalada Esportiva (IFSC) como a federação oficial desse esporte no mundo (como a Fifa para o futebol).
Na prática, ser reconhecida pelo COI coloca a escalada na linha de frente da disputa por uma vaga no seleto grupo de esportes que compõem os Jogos Olímpicos. Este tem um número de modalidades limitado para não inchar o evento, o que inviabilizaria sua realização. Ou seja, só entra um novo esporte, quando outro sai. “Existem várias modalidades na fila, também solicitando inclusão”, explica Silvério Nery, da Federação de Montanhismo do Estado de São Paulo, a Femesp. “Ganha a modalidade que tem mais países federados e atletas em mundiais”, explica Silvério. Ou seja, é o início de um longo processo para a escalada. “Sendo otimista e realista, podemos pensar nos Jogos de 2020”, supõe Silvério.
A inclusão da escalada na disputa rolou principalmente por causa da boa atuação da IFSC, órgão criado no começo de 2007, e que promete tratar a modalidade como um esporte sério, estimulando, por exemplo, o trabalho de base. “Finalmente a escalada passou a ser gerenciada exclusivamente por líderes e esportistas. Ela é uma autêntica federação e por isso foi reconhecida pelo COI mais rápido do que qualquer outro esporte anterior”, conta Silvério.
E mesmo que demore mais de uma década até vermos escaladores subindo paredes olímpicas, fazer parte do chamado Movimento Olímpico – composto pelo COI, pelos comitês organizadores dos Jogos, pelos comitês nacionais (como o COB) e pelas federações e confederações reconhecidas – já traz benefícios à modalidade. “Este estágio agrega grande potencial de crescimento ao esporte”, explica Silvério. Com o inevitável crescimento da visibilidade da modalidade na mídia, fica mais fácil chamar a atenção dos patrocinadores e estimular a entrada de novos atletas.
(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de março de 2008)
BOM DIA: Em 2008 Rodrigo Ranieri quer ficar de bem com a montanha e com a vida
(Foto: Arquivo pessoal)
SEGURA-TE CÉSAR: O paulista César Grosso dominou o 2º Master de Pucón, no Chile
ENERGIA DE SOBRA: Em janeiro, Felipe Camargo, 16, foi até o final de uma das vias mais difíceis do Brasil