Antitrapaça

Por Mario Mele
Ilustração por Kako

NÃO É DE HOJE QUE OS ESPORTES TOLERAM um vírus chamado doping, que corre nas veias de atletas do mundo inteiro desde antes da era cristã. Mas foi nas duas últimas décadas que esse mal se intensificou e, vira-e-mexe, um novo caso surge no futebol, surf, atletismo, natação. No ciclismo, então, a situação é calamitosa: os atletas profissionais estavam usando tanta “bomba” que a prova-símbolo da modalidade, o Tour de France, viu-se esvaziada de estrelas em 2007, já que vários atletas de destaque foram pegos com algo a mais no sangue.

Para impedir que o que ainda era uma gripe se transformasse numa infecção generalizada, em 1999 foi criada a WADA (World Anti-Doping Agency) ou Agência Mundial Antidoping, em português. O órgão atua junto a esportes não-olímpicos e trabalha em parceria com o Comitê Olímpico Internacional (COI) com o objetivo de limpar o evento esportivo mais assistido do mundo.

Entre os dias 15 e 17 de novembro do ano passado, a entidade reuniu mais de 1.500 autoridades esportivas – entre dirigentes, atletas e imprensa – para a 3ª Conferência Mundial sobre Doping nos Esportes. O encontro, que aconteceu em Madri, na Espanha, tinha a intenção de reavaliar o Código Mundial Antidoping, um regulamento que tenta coibir, desde 2003, o uso de substâncias e métodos que dão um empurrãozinho a mais no desempenho dos atletas.

Mesmo os três dias sendo pouco para repensar todas as normas e punições – tendo em vista o número de federações envolvidas, cada uma tentando direcionar a revisão para seus próprios interesses –, a conferência representou uma etapa fundamental no controle do uso de substâncias ilícitas para aumento de performance. “Ninguém acredita que o novo código será a fórmula perfeita para lidar com o problema. Mas ele representa um avanço em relação ao que tínhamos”, disse o canadense Richard Pound, que presidiu a WADA desde 1999 e entregou a faixa no começo desse ano para o australiano John Fahey.

Ex-nadador profissional e atleta nas Olimpíadas de Roma de 1960, Richard sabe que impor leis mais rigorosas não resolve o problema e, por isso, defende a educação como a melhor saída. Infelizmente, segundo ele, mostrar que além de ser fraude o doping é uma agressão contra o próprio corpo não é um procedimento que muitos países levam a sério, ainda.

Mesmo oficialmente fora da WADA, Richard conseguiu refletir suas idéias no novo regulamento, que está mais flexível quanto às punições, dando uma inédita terceira chance aos reincidentes (de acordo com o código atual, o atleta pego no exame antidoping pela terceira vez é expulso definitivamente da federação). Outra colher de chá será a diminuição da pena em até 50% para o atleta que confessar que se dopou. Entretanto, o novo código exigirá mais empenho das federações na fiscalização – aumentando o número de exames, especialmente nos intervalos entre as competições, e vigiado o momento da coleta de sangue e urina contra fraudes, por exemplo.

A União Ciclística Internacional (UCI) foi a primeira a dar o exemplo nesse sentido: a partir deste ano, os atletas serão testados mais vezes, mesmo fora de temporada, em exames-surpresa. Os testes serão arquivados e usados como um “perfil” sanguíneo do ciclista; quem tiver resultados diferentes perto da época de competição estará fora das provas da entidade. Mas, infelizmente, nem mesmo essa marcação cerrada é garantia de jogo limpo no esporte, já que os métodos de doping estão quase sempre um passo à frente dos testes criados para detectá-los.

O BRASIL É SIGNATÁRIO DO CÓDIGO MUNDIAL ANTIDOPING desde a sua criação, em 1999. Mas avaliar se temos capacidade tecnológica e financeira para cumprir com os mandamentos é um outro assunto. Segundo Alexandre Pagnani, secretário da Comissão de Combate ao Doping (ligado ao ministério do Esporte), foram revelados trinta casos de doping no Brasil em 2007, um número recorde. “Falta investimento voltado para esse segmento e não há previsão orçamentária por parte do ministério do Esporte”, explica Alexandre. Cada teste de última geração pode custar R$ 1.500, incluindo taxa médica e transportes do atleta e material coletado, custos que variam conforme a confederação.

Segundo o secretário, para gerar força nas federações esportivas é essencial que o Governo compre a briga contra o doping, principalmente na hora de julgar e punir atletas e envolvidos, como um químico ou um vendedor de esteróides. Alexandre alerta que o problema maior está dentro das academias, onde acontece o tráfico de substâncias anabolizantes proibidas pela WADA. “Nestes casos, o controle se torna praticamente impossível”, lamenta.

Já durante as competições os exames ficam por conta das confederações. “A Confederação Brasileira de Futebol, a CBF, faz exames de rotina nas séries A e B. As outras confederações só fazem essas análises em grandes torneios, como no Troféu Brasil de Atletismo ou no Troféu Maria Lenk de natação, e olhe lá”, revela o médico, jornalista e pesquisador do tema, Osmar de Oliveira. “Apenas duas modalidades esportivas não-olímpicas realizam o controle de dopagem em campeonatos brasileiros: a luta de braço (braço de ferro) e o fisiculturismo”, acrescenta Alexandre.

A UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) também entrou na luta contra o doping ao colocar em vigor a Convenção Internacional Contra o Doping no Esporte, em fevereiro de 2007. Além de reforçar o código mundial da WADA, o tratado serviu para que países como o Brasil, um dos signatários, formalizem suas responsabilidades na luta contra esse mal.

Nas Olimpíadas de Pequim, em agosto deste ano, o novo código da WADA ainda estará na gaveta. Mas, de qualquer maneira, os Jogos serão uma boa oportunidade para que a Agência possa medir a taxa extra de hormônios que anda circulando no corpo dos esportistas que são inspiração para o mundo todo.

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de março de 2008)