Por Caco Alzugaray
A SENSAÇÃO ERA PARECIDA COM AQUELA DE QUANDO, AOS 12 ANOS, EMBARCÁVAMOS NO ÔNIBUS RUMO AO NOSSO PRIMEIRO ACAMPAMENTO ESCOLAR. Desta vez, em vez de ônibus estavam os aviões, e em vez do colégio, o aeroporto internacional de onde decolaríamos para nossa tão esperada viagem. Apesar de nossas idades girarem em torno dos 35 anos, naquele instante era difícil nos convencermos de que tínhamos mais que 15.
Os próximos dias prometiam o inesquecível: passaríamos cinco auroras em um alojamento na Silrklin Range, numa remota cadeia de montanhas ao norte de Vancouver, na British Columbia, próxima ao Alasca, fazendo heli-skiing com outros poucos grupos de surfistas da neve, todos europeus.
Depois de 24 horas de aviões e vans chegamos na base de nossa expedição, o Extremely Canadian Lodge, na charmosa e imponente estação de ski de Whistler, British Columbia, Canadá. Lá teríamos três noites e dois dias de aulas particulares de esqui fora de pista (o chamado ski off piste) sendo atendidos no alojamento por um staff que incluía Jean – um jovem esquiador, escalador, mountain biker e, acreditem, ótimo chefe de cozinha – e sua namorada, a jovem, bela e esquiadora casca grossa Tamara, que além de nos acompanhar nas pistas, coordenava todos os nossos movimentos fora delas.
A rodovia “From Sea to Sky”, que une Vancouver a Whisltler indo literalmente do mar ao céu, também era uma perfeita metáfora do nosso grupo, que, à minha exceção, era todo formado por surfistas. Mais tarde descobriríamos que éramos quase caricatos aos olhos dos gringos: os caras não entendiam o que um grupo de brazucas fazia ali, esquiando e surfando as profundas neves do extremo norte. Nos comparavam àqueles rapazes que inspiraram o filme "Jamaica Abaixo de Zero", sobre quatro esportistas da terra de Bob Marley que disputaram uma olimpíada de inverno na modalidade bob slead – um tipo de trenozão. Curtíamos isso.
O Said e eu formávamos a dupla de "aventureiros" do nosso quarteto –ambos corredores de aventura, mais rústicos e desencanados. O Said tem um surf meia boca no pé, é um experiente corredor de aventura e faz snowboard; eu esquio, com esquis mesmo, desde moleque. O Ernesto (Teo) e o Renato Guedes surfam com mais freqüência, também fazem snow e são rapazes mais, digamos, exigentes (frescos ou "finos") do que eu e o Said. Éramos quatro amigos e estávamos exultantes.
“MY DRINKING TEAM HAS A SKIING PROBLEM” (“Meu time de bebedores tem um problema com o esqui”), brincava o adesivo que comprei num dia de baita ressaca, daquelas já tradicionais antes de grandes expedições, como se fôssemos marinheiros no porto antes de uma longa e franciscana jornada. Claro que essa não era a nossa situação, pois lá em cima nas montanhas Silrklin teríamos um atendimento muito bem suprido. Mas era uma boa desculpa para enchermos a cara num típico bar americano, depois de horas de esqui. Bem, devo admitir que essa ressaca no último dia de instrução de esqui country fora de pista foi dura de agüentar. Foi como esquiar com um urso gigante nas costas.
Do lado de fora do microônibus que nos levava de Whistler ao esperado lodge nas Sirlklin, a paisagem de desenho da Disney era de tirar o fôlego (acho que o ganho de altitude também influenciou na dificuldade de respiração). No bumba estavam os três grupos de esquiadores: Nós quatro brazucas, quatro italianos gente finérrimas e quatro tchecos muito figuras, muito loucos e fedidos, que apelidamos de hooligans. Desde o busão já começamos a deixar claro que nós é que iríamos comandar o show, tirando sarro de todos (inclusive de nós mesmos) e sendo amigos de todos, como bons brasileiros. O clima era fantástico.
Quando chegamos no hotel e de seu deck avistamos à nossa frente um lindo e imenso lago congelado, rodeado de pinheiros selvagens e de imponentes montanhas, brindamos àquele momento com uma dose de Jack Daniel’s, tivemos mais do que nunca a certeza de que tínhamos tomado a decisão certa em investirmos naquela viagem. Na primeira noite no hotel, as conversas entre os bambinos, os hooligans e nós brazucas eram sobre nossas experiências com os esportes de inverno. Naquele momento descobrimos que éramos, de longe, os mais inexperientes. Foi difícil dormir com tanta excitação.
Na manhã seguinte, depois do café com os tradicionais ovos com bacon americanos (que horas depois, quando estávamos amontoados no helicóptero, mostraram-se uma má idéia), recebemos instruções de como amarrar no corpo e utilizar os beacons – uns aparelhinhos que emitem sinais de rádio para nos resgatarem se formos enterrados na neve por uma avalanche. A água bateu na bunda. Engolíamos em seco.
Deus pode não ser brasileiro mesmo (se fosse o Marcos Valério, seria argentino), mas que naquela semana ele deu uma p. força, deu: na tarde anterior ao nosso primeiro dia de heli-skiing, acabara de cair o último floco da maior nevada da temporada. Estavam garantidos os melhores dias de neve fresca da temporada – o puro mel dos heli-skiers.
“COME ON IN!”, berrou pela primeira vez nosso pequeno e safo guia neozelandês, o Jonny, para que os brasileiros e italianos, formando um grupo de oito, entrassem agachados, correndo e em fila no helicóptero. Depois de nós, entraram na cabine ele e o piloto, que depois apelidamos de Urso. Os tchecos seguiriam em outra aeronave. Ao sairmos do chão, de bocas abertas, trocávamos socos como crianças (com nossas luvas fofas, em nossas fofas roupas de esqui), meio que para termos certeza de que não estávamos sonhando. E esse primeiro dia passou mesmo como um sonho – um sonho do qual “acordamos” absolutamente extasiados, com a sensação de ter cortado a neve mais perfeita que jamais poderíamos imaginar, num silêncio absoluto, riscando uma superfície ainda intocada naquela temporada. Mas as dores em músculos das pernas que só utilizamos no esqui e no snowboard denunciava: tinha sido real.
Fomos fazer esse heli-ski com um operador canadense chamado TLH, através da operadora brasileira especializada em atividades ao ar livre, a Landscape. A TLH tem completamente mapeados nada menos do que x mil acres de terreno esquiável, em aproximadamente y montanhas que distam um raio de z quilômetros do hotel. Ou seja, se estiver nevando constantemente, o que é normal no inverno canadense, as chances de se esquiar em uma neve não virgem é muito remota. Mas acontece. Esportes ao ar livre nos trazem o prazer espiritual máximo da integração do homem com a natureza, mas nos deixam expostos a nossa real condição de simples personagens daquele cenário e não de agente transformador dele, como estamos acostumados a ser em nossa sociedade.
Um surfista pode investir todas as suas economias para uma viagem à Indonésia, chegar lá e o mar estar igual ou pior ao do seu quintal de sua casa; um experiente escalador de alta montanha pode se preparar física e tecnicamente por um ano ou mais para atingir o cume do Everest e ao chegar lá a montanha simplesmente não permitir sua aproximação, espantando-o com tempestades de neve; um esquiador pode ir para a montanha de maior média de acumulação anual de polegadas de neve e não encontrar neve suficiente ou boa para se esquiar. Geralmente, com toda a tecnologia hoje à disposição do homem, já é possível prever e evitar uma série destes inconvenientes, mas algumas vezes também somos surpreendidos. Ainda bem.
MAIS UMA VEZ JONNY GRITAVA PARA QUE ENTRÁSSEMOS NO HELICÓPTERO. Já estávamos no segundo dia e como em qualquer viagem maravilhosa, mesmo ainda em seu início, já fazíamos, sofrendo, a contagem regressiva.
Neste dia descobrimos que o maior perigo do heli-skiing não é ser soterrado por uma avalanche, como se imagina, mas ser esmagados por fogo amigo. Explico: vocês já devem ter visto fotos (se não, há uma nessa matéria que ilustra bem o que digo) de um grupo de pessoas agachadas, abraçadas, com o helicóptero bem acima delas soprando alucinadamente neve de suas hélices. Ficamos nessas frágeis situações todas as vezes que o helicóptero pousa e decola das montanhas, para que o embarque e desembarque da aeronave seja mais rápido e teoricamente seguro para os passageiros, minimizando o risco de sermos degolados (urgh) na aproximação ou decolagem daquela máquina. Apesar de teoricamente seguro, vai lá ficar agachado umas 70 vezes em uma semana, esperando aquelas toneladas de aço pousarem a centímetros de seu corpo, balançando como um terremoto metálico, e vê se não te ocorre que o piloto pode errar um pouquinho a mira e te esmagar!
Mesmo com sua voz estridente, o berro do Jonny já soava como música pros nossos ouvidos. Neste terceiro dia nossa "chata" rotina diária – subir no helicóptero às 09:00 da manhã, fazer umas sete descidas ou "runs", parar para almoçar no meio da montanha sempre absolutamente deserta, descer mais umas cinco runs e voltar voando pro hotel por volta das 16:00hs – seria abalada.
Clack, clack, clack – enganchamos nossos esquis e boards para mais uma descida. Era a primeira do dia, que estava lindo de novo. Saíamos sempre um de cada vez, uns dez ou quinze segundos após o anterior, esquiando sempre ao lado da marca deixada na neve pelo nosso antecessor na descida. É a forma de otimizarmos os terrenos das descidas e todos aproveitarmos a neve virgem.
O Renato cumpria mais uma vez seu ritual. Após colocar o fone do IPod em seu ouvido, ele abaixou o bico de sua prancha e deixou a gravidade se encarregar do resto, levando-o para o que seria mais um dia do melhor snowboard de sua vida – se não fosse aquela maldita curva.
“Aaaahhh!”, berrou Renato, com propriedade. O Jonny, que havia descido na frente como sempre fazem os guias (para que, se alguém tiver que cair numa greta ou descolar uma placa de neve ocasionando uma avalanche, que sejam preferencialmente eles), voltou morro acima com aqueles esquis nos pés. Parecia até que ele era melhor subindo que descendo. Eu, que estava atrás dele, despenquei morro abaixo até parar ao seu lado.
Após um rápido exame pedindo que ele se levantasse e virasse pra cá e pra lá, Jonny pediu resgate aéreo por rádio. Nessa hora já estávamos os quatro brasileiros ali juntos, e eu, Ernesto e Said tentávamos animar o Renato, dizendo que era apenas uma pequena lesão muscular e que no dia seguinte ele voltaria a surfar aquelas paredes canadenses. Quando o helicóptero subiu, nossos olhos estavam molhados. Não era justo. Esquiamos mais tristes. Quando chegamos no hotel, o Renatão estava com gelo no joelho inchado, mas super bem de espírito, otimista que esquiaria no dia seguinte. Ficamos felizes com isso.
DO TERCEIRO PRO QUARTO DIA, O URSO PEGOU PESADO NO BAR DO HOTEL. Cochichávamos sobre a quantidade de cervejas que o cara derrubava e especulávamos, atemorizados: será que o Urso não tem ressaca? Se sim, será que aquela quantidade (tipo, barris) é suficiente pro fenômeno acontecer com ele? Se sim, será que ele consegue administrar a rebordosa a ponto de não nos esmagar com "os pés" de sua nave? Felizmente, não sentimos os efeitos daquelas cervejas em nossas quebráveis costelas.
O quarto dia foi meio (meio nada, foi realmente) amedrontador. Embora o céu de novo estivesse azul, ventava muito, e o helicóptero, ao sobrevoar os maiores desníveis, despencava em vácuos de aproximadamente 20 metros. Quando nos aproximávamos dos cumes das montanhas para pousar, na grande maioria das vezes em áreas milimetricamente apropriadas, o vento estava tão forte que o piloto teve de arremeter o pouso algumas vezes.
As descidas estavam como sempre fantásticas, mas tenho que confessar que não ficamos muito chateados quando, logo após o almoço na montanha, nossos guias nos informaram que correríamos risco se continuássemos com os vôos durante a tarde e que não havia nada que fizéssemos ou argumentássemos que os faria mudar de idéia. Nem sei porque deram tantas explicações – nem pensamos em questionar aquela aliviante decisão. Sem contar que não nos incomodou tanto assim nos juntar ao Renato no lodge (que ficara apenas este dia se recuperando do que depois, no Brasil, veio a descobrir ser um rompimento de um ligamento do joelho) ter que passar a tarde tomando cervejas na Jacuzzi.
A última noite no hotel foi especial, com muitas risadas e é claro, muita cerveja. O Ernesto, sempre o mais engraçado do nosso grupo, convidava o italiano Alfredo para se juntar a ele em atuações de relações diplomáticas no Brasil, afirmando que ele era um talento escondido; o Renato, nosso representante galã solteiro, teve poucas oportunidades de colocar a prova sua competência naquele refúgio inóspito e cheio de homens. Mas na última noite a "bartender" teve que ouvi-lo. Se era uma gata? Não exatamente, mas como dizia o divertido italiano Alfredo, com seu inglês originalmente macarrônico, "No problem, as we are here, in the forest" (sem problemas, já que estamos aqui, na floresta). O Said ensinava “belas” palavras em português para todos e depois puxava o coro com elas. E eu resolvi lavar a honra dos brazucas, que eram os piores esquiadores, com uma vitória no campeonato de ping pong que promovemos: Yeah! Aquela vitória e aquelas cervejas me fizeram ter que pedir desculpas aos gringos no café da manhã seguinte, pela forma pouco modesta que lidei com o sucesso naquela noite.
O quinto e último dia foi estranho. Parecia andarem câmera lenta. Falávamos pouco, deslizávamos mais lentamente pela neve, como que querendo senti-la melhor, aproveitá-la mais. Sabíamos que não faríamos muitas destas viagens na vida. Mas até essa sensação – a de que estávamos no crepúsculo de um dos picos de felicidade existencial de nossas vidas – era boa. Estávamos concluindo inteiros, com saúde e com lembranças maravilhosas mais uma experiência que fez esta passagem pela terra valer. O som do helicóptero nunca será ouvido da mesma forma por nós.
(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de outubro de 2005)
FINISH LINE: Ao final de cada descida surgia o helicóptero para nos recolocar nos picos
CACO E RENATO NA NEVE VIRGEM E SOLTA: O puro mel dos heli-skiers
ENLATADOS: Brasileiros e italianos apertados mas felizes