Por Renata Leão
A cada esquina, um tipo de ioga. Hatha, iyengar, ashtanga, power. Yôga, yoga, ioga. Placas com imagens da mitologia hindu e promessas do tipo: “Pratique e mude sua vida” estão nas academias, nos estúdios de pilates e até mesmo na empresa onde você trabalha. Assim como o boom da psicologia nos anos 60, a filosofia indiana nunca esteve tão na moda. Mas como ficou a integridade dessa prática milenar diante do estrelato?
Nos Estados Unidos, a febre já pegou faz tempo. Atualmente, 15 milhões de pessoas fazem ioga por lá e, segundo a International Health, Racquet & Sportsclub Association, a prática faz parte do currículo de 86% das academias americanas e 64% do mundo. O Espaço Nirvana, maior templo da ioga no Brasil, com mil metros quadrados, inaugurado no Jockey Clube do Rio de Janeiro em outubro do ano passado, já conta com 800 alunos. A marca Uni-Yôga, do polêmico mestre DeRose, já tem 200 unidades. A estimativa é de que 5 milhões de pessoas estejam praticando no Brasil.
A Go Outside colocou frente a frente dois dos melhores professores da atualidade: o brasileiro Marco Schultz e o indiano Kauhstub Desikachar. Kausthub é neto de Tirumalai Krishnamacharya, que morreu aos 101 anos e é considerado o mais importante iogue dos tempos modernos. Marco, ex-triatleta e surfista nas horas vagas, é formado em Educação Física e Ciência do Exercício na San Diego State University, na Califórnia, onde viveu por 10 anos. Em 1995 voltou ao Brasil fixando residência em Florianópolis, para introduzir o Power Yoga. É na ilha, num espaço chamado Simplesmente Yoga, que Marco dá aulas e coordena projetos como o “Atleta Interior”, que introduz a prática de ioga e meditação na vida de esportistas. Teco Padaratz, um dos maiores surfistas brasileiros, e Leandro Macedo, eleito pelo Comitê Olímpico Brasileiro o melhor atleta do século 20, são treinados por ele.
GO OUTSIDE Que rumo a ioga, com todo o seu aparente sucesso, tomou no Brasil de hoje?
Kausthub: Sinto que as pessoas aqui são mais sérias em considerar a ioga como um sistema holístico ao invés de enxergá-la somente como um sistema físico. Ioga não é só trabalhar o corpo, a respiração, a mente. É algo que melhora toda nossa vivência.
Marco A prática da ioga no ocidente é um processo em desenvolvimento. Pelo fato do brasileiro ser aberto, talvez mais receptivo e até mesmo curioso, acredito que, com uma boa orientação, os benefícios da ioga são rapidamente assimilados.
O entusiasmo dos brasileiros acontece por conta de um interesse verdadeiro ou por que fazer ioga está na moda?
Kausthub: Algo que reparei nas minhas quatro visitas ao Brasil é que os brasileiros não perguntam só sobre posturas. Querem saber como a ioga influencia a vida deles, como devem se relacionar com outras pessoas. Sinto que aqui há pouca gente que pensa na ioga como um instrumento unicamente físico.
Marco: O que está na moda é a imagem de uma atividade alternativa. No entanto, ioga não é imagem. Quando o praticante experimenta seus benefícios como um todo, a ioga é pra sempre. Através da prática de posturas e controle de respiração, tenho a oportunidade de desenvolver uma relação mais consciente e equilibrada com meu corpo, com as dificuldades, com o limite. A maioria das pessoas ainda não enxerga a ioga como esse sistema holístico que você colocou.
Kausthub Isso acontece no mundo todo e até na Índia. Nos Estados Unidos as pessoas querem ficar magras e ir embora.
As pessoas insistem em ligar a ioga à espiritualidade e religiosidade. Isso ajuda ou atrapalha?
Kausthub: As pessoas olham para a ioga como se ela fosse uma religião só porque vem da Índia e é ensinada em sânscrito. Não é. Ioga é um sistema de saúde e bem estar. Se tenho muita devoção a Deus, a ioga me ajudará a lidar com esse deus de uma forma melhor. No entanto, se não acredito em Deus, tudo bem. A ioga tem outras soluções, ajuda no aspecto de confiança e força.
O ocidente sabe levar a tradição da ioga de uma maneira saudável?
Kausthub: Em um mundo que não costuma aceitar coisas baseadas nos valores da fé e que gosta de transformar tudo em algo racional, é de se espantar que algo como a ioga tenha tomado a proporção que tomou. Se alguma coisa está sendo praticada há dois ou três mil anos, isso significa que tem valor.
Marco [para Kausthub]: Colocar de lado sua cultura e suas preferências religiosas com o objetivo de mostrar para o mundo uma ioga mais clara deve ser um grande desafio, não? Vejo que a maioria dos professores no ocidente projeta suas próprias crenças ao ensinar, em vez de colocar a ioga em sua claridade para que as pessoas entendam a essência.
Kausthub:Muitos professores trazem seus valores pessoais para os alunos e isso é errado. Não sou um missionário tentando levar o mundo a fazer ioga. Meu trabalho é ensinar aqueles que vêm buscar a ioga e não pensar numa maneira de atrair o maior número de alunos. É assim que pensam os grandes mestres como meu avô. Uma das coisas mais importantes que aprendi com ele é que tentar convencer pessoas é perda de tempo. A grande meta da ioga é tornar as pessoas independentes. E como professor é muito fácil fazer o contrário e promover a dependência para toda a vida. O que vemos por aí são “gurus” com centenas de seguidores completamente dependentes, que sem o “mestre” não fazem nada. Se a independência não está lá, a ioga não está funcionando. Nenhum dos professores antigos saía com uma multidão de seguidores. Isso é a grande diferença do que acontece hoje.
Se de um lado a ioga ajuda as pessoas a desenvolver seus poderes, se usada incorretamente pode potencializar a face negativa?
Kausthub: A ioga é uma faca afiada. Com ela posso cortar delicadamente, mas, se for desajeitado, posso me machucar. Infelizmente, por causa de interesses econômicos, muita gente promove a desgraça alheia. Outro dia li artigos no New York Times e no Los Angeles Times que questionavam a utilidade da ioga, isso porque muitas pessoas nos EUA usam a prática mecanicamente e se machucam. Tenho um amigo norte-americano que é médico, uma espécie de “consertador”. Mais de 70% de seus pacientes são “iogues” que se machucaram por causa de uma prática não adequada. Isso é ridículo, porque ioga não deveria trazer problemas e sim reduzi-los.
N.R.* Caro leitor, talvez você seja um “entendido em yôga” e vá dizer que usamos a grafia incorreta da palavra. Optamos por escrever ioga em português, como está em nossos dicionários Aurélio e Houaiss. Se você realmente sacou o espírito da matéria, há de concordar que o menos importante aqui é a discussão da grafia correta ser yôga, yoga ou simplesmente ioga.
(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de setembro de 2005)
MARCO SCHULTZ: Introdutor do Power Yoga no Brasil, na postura Virazana