Por Endrigo Chiri Braz
Fotos por Ignácio Aronovich
Numa manhã de domingo friorento em São Paulo, uma pobre senhora carregada de sacolas que desce um Vale do Anhangabaú quase deserto se espanta com a cena. Dois caras sobem rapidamente o muro de três metros da entrada do metrô, enquanto um terceiro está deitado no chão com uma câmera. “Vocês estão mostrando pra tevê como fazem os trombadinhas! Hahahahahaha”, dispara a senhora, antes de seguir seu caminho. Os praticantes de Le Parkour, um esporte que aterrissou no Brasil há quase dois anos, estão acostumados com esse e com todo o tipo de reação. Afinal, ainda é incomum ver um grupo de homens, vestindo luvas com dedos cortados e roupas esportivas, correndo e transpondo os obstáculos urbanos e naturais que encontram pelo caminho.
Provavelmente os franceses David Belle e Sébastien Foucan passaram por situações parecidas ao inventarem o Le Parkour nas ruas de Lisses, um subúrbio de Paris, há mais de dez anos.
David cresceu dentro de ginásios esportivos, num universo que misturava o prazer de buscar a plena forma física e a necessidade de vencer desafios. Aos 15 anos, ele resolveu expandir sua paixão e foi para as ruas, onde encontrou outros garotos que curtiam as mesmos aventuras concretas: Foucan, os irmãos Yahn e Frederic Hnautra e David Malgogne. Ali nascia o esporte Le Parkour (de parcour, percurso em francês), batizado assim por causa da frase “Parcours du Combatant”, que se refere ao percurso de obstáculos desenvolvido por George Hébert (1875-1957), pioneiro na prática de educação física na França, como parte de seu Natural Method of Physical Culture, no começo do século 20.
A definição de Le Parkour, que também é tido como filosofia de vida e arte do movimento, é você ir do ponto A para o ponto B superando todos os obstáculos que encontrar no trajeto usando apenas as possibilidades oferecidas pelo seu corpo, sempre com constância, fluidez e força, em qualquer ambiente, seja na cidade ou na floresta. Com o tempo, Sébastien Foucan foi sistematizando e batizando os movimentos, como por exemplo, os Valts, diferentes formas de usar a mão para saltar um obstáculo; o Cat Leap, técnica usada para minimizar o impacto de um salto com as pernas quando não é possível atingir o outro lado de um obstáculo com os pés; e o Tic-Tac, quando se impulsiona com o pé a parede para pegar embalo no sentido contrário.
COM O FILME FEITO
Por ser extremamente plástico e impressionante, o grupo Yamakasi, formado por Belle e Foucan nos primórdios, cativou novos praticantes em suas andanças pela Europa. Hoje, o Le Parkour é praticado nos quatro cantos do planeta, incluindo Brasil, África do Sul, Rússia, Finlândia, Austrália, China, Canadá, entre tantos outros. Essa popularização mundial aconteceu graças a alguns filmes sobre o esporte. Dirigido pelo francês Luc Besson, Yamakasi – Os Samurais dos Tempos Modernos (2001), uma ficção baseada na arte do Le Parkour, foi o primeiro filme de uma série que levou o esporte além das fronteiras européias. Em 2002, a BBC rodou um comercial para o programa Rush Hour em que Belle aparecia indo do trabalho [ponto A] para a casa [ponto B] passando por cima de tudo, pulando de prédio em prédio, para não perder o programa. Um ano depois, Foucan, que já havia divergido filosoficamente de Belle, foi para Londres para participar de dois documentários do Channel 4: Jump London (2003) e Jump Britain (2005). A produção mais recente é o também ficcional Benlieue 13, do mesmo Luc Besson, com Belle e outro pioneiro, Cyril Rafaelli, disponível em DVD desde maio desse ano.
E foi justamente após assistir um trecho de Yamakasi que o animador gráfico Jacques Kaufmann, 30 anos, e o psicanalista Eduardo Bittencourt, 29 anos, resolveram tornar-se a versão tupiniquim de David e Sébastien. “Acho que a gente pode fazer isso também”, pensaram os dois, que já praticavam o Kung Fu. “Sempre fui ligado em skate, kung fu, e gostava de descer correndo os degraus da avenida Pompéia”, conta Edu. O primeiro treino foi na praça da Ladeira da Morte, no Sumaré, que Edu conhecia dos tempos de skate. É ele o aglutinador da história – treina, em média, cinco vezes por semana, estuda e divulga a filosofia do esporte – e o maior incentivador do grupo Parkour de São Paulo, o mais antigo e hábil, que conta hoje com cinco integrantes em plena atividade: os dois pioneiros, mais Jerônimo, 20, e os irmãos Thiago, 19, e Gabriel, 16. As cidades de Belo Horizonte, Rio de Janeiro, João Pessoa, Curitiba, Ribeirão Preto, Brasília e Florianópolis já têm grupos de Parkour, sendo o de Floripa o mais desenvolvido.
OSSOS [QUEBRADOS] DO OFÍCIO
Atualmente, o centro de treinamento oficial em São Paulo é a praça da Sabesp, que fica no começo da rua Alfonso Bovero, no Sumaré, onde é possível treinar todos os fundamentos do esporte: saltos de precisão, escalada em muros e árvores, equilíbrio em canos, os vários tipos de Valts e saltos com boa amplitude. De lá, depois de um aquecimento, os Traceurs, como são denominados os praticantes, saem para explorar as infinitas possibilidades oferecidas por uma metrópole como São Paulo. “Praticar em grupo é estimulante. Às vezes você acha que pode superar um obstáculo, mas não acredita. Aí vê o outro fazendo e sente mais segurança”, explica Edu. “Quando você está sozinho, faz um treino mais de estudante. Vai aproximando o movimento até acertá-lo por completo”. É na empolgação que mora a lesão. Com base em sua experiência, Edu afirma que “os machucados geralmente acontecem no fim do treino, quando já estão cansados e sem resistência. É sempre na última manobra do dia”.
As lesões mais corriqueiras são pequenos machucados nas mãos, pancadas nas canelas, dor nos joelhos por causa do excesso de saltos e dor no ombro, geralmente originada num rolamento mal executado. O rolamento é um movimento muito importante para aliviar o impacto nos pulos grandes e também para manter a fluência da prática, uma vez que você já levanta embalado para se direcionar ao próximo obstáculo. Mas, quando um movimento sai totalmente errado, as chances de fraturar algum osso, romper ligamentos e até bater a cabeça aumentam bastante. Por isso o Parkour requer muita concentração e preparo físico. A margem de erro tem que ser mínima, já que os Traceurs não usam nenhum equipamento de proteção.
Mas nem movimentos perfeitos evitam o desgaste das articulações ou até seqüelas mais graves, em longo prazo. O Dr. Turíbio Leite Barros Neto, médico fisiologista e coordenador do Centro de Medicina da Atividade Física e do Esporte (CEMAFE), deixa claro que qualquer esporte que se torna repetitivo traz seqüelas. Se os traceurs fizessem isso uma vez por mês, por exemplo, dariam tempo para o organismo se recuperar do trauma muscular gerado pelo impacto. Mas não é o caso. No dia das fotos dessa reportagem, cada um deles deu pelo menos 15 saltos. “É evidente que quando se submetem à repetição desse tipo de sobrecarga, é impossível não terem uma seqüela, por mais que o corpo passe por um processo de adaptação em função dos treinos e do fortalecimento muscular”, acredita Dr. Turíbio, e continua: “O impacto da aterrissagem é bem expressivo. Claro que eles devem ter técnicas para atenuar isso, mas existe o erro da execução. Quantas vezes por dia eles erram um salto?” E o erro em questão não é necessariamente uma queda.
Basta uma aterrissagem não muito estável para pôr em risco o joelho, o quadril, a coluna ou até os três juntos. Já que o esporte não requer equipamentos, as articulações passam a ser os acessórios mais importantes. Dito isso, nem precisa dizer a importância do aquecimento e do alongamento antes da prática. “Toda modalidade esportiva tem uma ciência por trás. É necessário fazer um estudo biomecânico dos movimentos do Le Parkour para descobrir que tipo de preparação física específica pode ajudar”, finaliza o Dr. Turíbio.
BRÉSILIEN STYLE
Os equipamentos de segurança são tradicionalmente dispensados por todos os praticantes do mundo. O material básico é um bom tênis, com uma sola aderente e sistema de amortecimento adequado, principalmente na parte dianteira, onde se concentra todo o impacto da aterrissagem. As luvas são opcionais, mas se forem usadas, precisam ter os dedos cortados para não inibir os movimentos da mão. Há também um acessório exclusivamente nacional, que nenhum traceur do mundo sabe que existe, criado graças à nossa aptidão para dar o bom e velho jeitinho brasileiro.
No começo, Edu não tinha dinheiro para comprar um Nike Air Pegasus, o modelo mais usado pelos franceses, então pensou numa alternativa caseira: “Quando eu andava de skate, costumava colocar plástico bolha na palmilha para amortecer. Como não funcionou bem com o Parkour, quebrei a cabeça até que tive a idéia de usar uma sola de Havaianas. A princípio os caras acharam ridículo, mas depois ficou óbvio que funcionava”. O Dr. Turíbio diz que a sola da Havaianas certamente ajuda, mas acrescenta que já existem no mercado materiais mais adequados tecnologicamente para a absorção de impacto, como por exemplo, a palmilha Sorboplana.
Além da adrenalina, do lado esportivo e da interação com a cidade e as pessoas, o que cativa no Le Parkour é a liberdade para imprimir o seu próprio estilo. “Existe uma variedade absurda de obstáculos e cada praticante tem sua preferência por determinado movimento”, acrescenta Edu, que gosta de treinar todos os fundamentos. Jerônimo, por exemplo, prefere os saltos e é fissurado em pular carros. Gabriel e Thiago gostam das acrobacias e estão fazendo aulas específicas para aprimorar a técnica dos mortais. Essa liberdade de expressão só é possível porque não existe competição de Le Parkour. “Se você quer superar alguma coisa, é a você mesmo e não a alguém. Não é preciso acertar um 900º para ganhar uma competição”, frisa Edu, que tem treinado bastante um movimento inventado por ele: descer corrimãos de escadarias correndo. O raciocínio é simples: quanto mais apto for o praticante, maiores serão as opções de movimentos. Logo, quanto mais tempo ele treinar num determinado local, mais obstáculos irá descobrir. “Antes, um muro alto com grade representava impossibilidade. Hoje ele perde a característica opressora e se torna um ambiente de diversão”, enaltece Edu.
KUNG-FUSÃO
O Le Parkour se relaciona com uma série de outros esportes. A ginástica olímpica aprimora a técnica dos saltos e aterrissagens. O circo e a capoeira oferecem movimentos expansivos que são úteis para o equilíbrio. Skatistas e traceurs enxergam as ruas com os mesmos olhos, sempre buscando possibilidades que leigos jamais observariam, além do skate colaborar com a técnica do rolamento no chão, já que se cai muito. O Kung Fu e as artes marciais em geral colaboram para o auto-conhecimento do corpo, transmitem confiança pela filosofia que propõem e colaboram para a estética dos movimentos: “O esporte é muito estético. Subir desajeitadamente um muro não é Parkour. Tem que subir de uma vez, com constância e plasticidade”, diz Edu, que vai além e enxerga uma ponte entre o Parkour e a arte e a dança de rua. “Como é um esporte que chama muita atenção, quando estamos em grupo a prática acaba tendo uma característica de intervenção urbana. Junta um monte de gente para assistir”. Já o break dance agrega valor ao estilo dos movimentos. “Como o pessoal da dança não tem técnica, a acrobacia sai errada, mas é um mortal totalmente urbano, com estilo”, justifica o artista saltador.
Uma prova da liberdade de estilo e da abertura para cada um praticar à sua maneira é o fato de que, com o passar do tempo, David Belle e Sébastien Foucan, os dois fundadores, foram divergindo em suas idéias até que se separaram por completo. Belle não faz nenhuma menção a Foucan em seu site oficial. Ele defende que a arte do Parkour foi criada por alguns soldados para se proteger e atacar durante a guerra do Vietnam, e que gostaria de manter esse espírito vivo. Prega também que é preciso saber a diferença entre o que é útil e o que não é na hora de superar um obstáculo. Para Belle, se o atleta faz acrobacias nas ruas com a única função de se mostrar, ele não deveria dizer que aquilo é Parkour. Já Foucan, que é bastante ligado à filosofia oriental, resolveu se aprofundar na arte do movimento com o intuito de combater as energias negativas e se tornar fluído como a água. Seu método de ensino é baseado na autonomia e na energia positiva. A linhagem de Foucan é mais aberta às acrobacias e às novas influências. Com isso, acabou por criar uma nova vertente do esporte chamada de Freestyle Parkour ou Free-running. Depois da ruptura com Belle, ele conquistou um bom espaço em Londres, onde é tido como ídolo (ao contrário do que acontece nas outras cidades européias, nas quais David tem mais penetração).
A diferença entre as duas vertentes fica nítida quando se assiste a um vídeo dos Seidojin, principal grupo de Londres, apadrinhado por Foucan. A influência do break dance, por exemplo, é clara, a começar pelas roupas, mais no estilo largado e urbano. Os seguidores de Belle usam roupas mais esportivas. Ele é contra a criação de academias próprias para o treino do Parkour, enquanto que Foucan é a favor e acredita que o treino em academias minimiza o risco de acidentes e aprimora o estilo.
No fim das contas, toda essa divergência só acrescenta ao esporte, que fica ainda mais variado e livre. O Le Parkour é tido por muitos como o esporte radical do momento, e cresce mais a cada salto por uma série de fatores: está diretamente ligado à liberdade e ao estilo próprio, não precisa de equipamentos e pode ser praticado em qualquer lugar. Um indicador disso é o interesse demonstrado pela publicidade e pelo cinema. Belle já fez propaganda para a Nike. Os Seidojin já fizeram para a Toyota. Tanto Belle quanto Foucan lançaram recentemente uma linha de roupas para Parkour. No momento, os dois estão empenhados numa turnê mundial, cada um a sua maneira. A Adidas acaba de lançar no mercado um tênis próprio para o esporte, batizado de Hyperride. E o vídeo-game dos Seidojin está em fase de criação. Entretanto, nos dois conceitos mais importantes do Le Parkour, Belle e Foucan continuam de acordo: a filosofia de superação de limites é válida para todos os aspectos da vida e as competições estão vetadas. De resto, é cada um com os seus limites.
(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de agosto de 2005)
SALTO ALTO: Com apenas 3 meses de Le Parkour, Thiago voa e faz o concreto tinir quando aterrisa
CONCENTRADO: Edu prestes a alçar vôo; uma boa largada é meio caminho andado para uma aterrisagem confortável
QUARTETO FANTÁSTICO: Da esq. para a direita, os traceurs brasileiros Jerônimo, Gabriel, Thiago e Eduardo
SE JOGA: Quando o skate é impraticável, Gabriel não perde a viagem, voando sobre o vão da estação Anhangabaú do metrô
FAVELA CHIC: Sola de havaianas como palmilha. Os pés agradecem o armotecimento, já as meias…