Por Cassio Waki
Fotos Igor Pessoa
AINDA EM CIMA DE SUA BIKE, Emma Roca, 32 anos, capitã da equipe espanhola Buff Nike-ACG, enxuga suas lágrimas ao cruzar a linha de chegada do Ecomotion Pro depois de 68 horas e 43 minutos de prova. Ela e sua equipe ficaram em primeiro lugar. Quase três dias depois, mais lágrimas foram timidamente derramadas por Amanda Fauth, 18, integrante da equipe Ratos de Trilha, última colocada.
Apesar da grande lacuna – a distância entre as duas atletas é imensa –, as lágrimas de Emma e Amanda estão ligadas por um estado de espírito que traz à tona a definição de uma corrida de aventura como o Ecomotion Pro, que aconteceu entre os dias 2 e 7 de outubro na região de Gramado, no Rio Grande do Sul. Sentimentos que se misturam e agregam valores não somente para quem compete, mas também para quem apóia, organiza, ajuda ou simplesmente observa.
Ao cruzar a linha de chegada em segundo lugar, após 70 horas e 46 minutos, o neozelandês Jeff Mitchel, 43, da Merrel/ Wigwam, foi perguntado pela reportagem sobre o que sua equipe tem de especial. O aspecto físico ou o psicológico? Treinos que beiram a insanidade ou mentes mais do que preparadas para qualquer perrengue? “É o ego. Não temos ego. Não somos melhores do que ninguém e sempre nos ajudamos e a outras equipes também. Creio que isso é o que faz de nós quatro e do nosso apoio um time. Esse é o espírito”, revela.
Mesmo disputando as primeiras posições com a equipe Buff Nike-ACG, que um dia depois viria a se tornar a campeã, o carro de apoio da Merrel/Wigwam tirou a caminhonete de apoio dos espanhóis de um atoleiro, fazendo com que chegassem a tempo para entregar os remos para a equipe espanhola numa das áreas de transição da prova. Um atraso de minutos poderia custar caro à equipe Buff. “Não poderia deixar o guri lá atolado. Se fosse comigo também gostaria de um empurrãozinho”, afirma Sven Janssen, apoio brasileiro da equipe.
“Mesmo competindo temos a consciência de que um sempre deve ajudar o outro, por isso que considero a corrida de aventura muito mais do que um esporte. Essa prova trouxe sentimentos bons e ruins que se misturavam o tempo todo”, diz Emma Roca. “Temos que encontrar soluções rápidas para todos os problemas que surgem à nossa frente, sempre em equipe. Toda essa vivência me faz sentir uma pessoa privilegiada”.
PARTE FUNDAMENTAL NUMA CORRIDA DE AVENTURA DE LONGA DURAÇÃO É O APOIO. “Ter que pensar todo o tempo no que a equipe está passando e o que podemos fazer pela vida deles. Criar o máximo de conforto e fazer com que partam para a próxima etapa com segurança. É um perrengue, mas são experiências que trazem muitas lições para minha vida”, afirma Pedro Caldas, 45, chefe de apoio da equipe Mitsubishi/Quasar/Lontra.
São cerca de 150 quilos de equipamentos e 50 quilos de comida – sem contar caixas, cadeiras, lonas, cordas e fogareiros – para organizar, além de ir ao supermercado, lavar e secar quatro mudas de roupa e quatro pares de tênis, limpar e revisar as bikes, preparar os lanches e a hidratação que os atletas levarão nas mochilas, plastificar o mapa e ter o timing exato para preparar comida e bebida quentes. E no momento em que a equipe chega, saber exatamente onde está tudo, se necessário dar comida na boca de algum atleta, ajudá-lo a se vestir, dar as dicas que tiver conseguido sobre o percurso, alertar sobre algum problema na bike, saber usar as palavras certas de incentivo e, o mais importante, no meio de toda essa bagunça, manter a calma. “Eu estava perdido na primeira transição, jogando comida na boca dos atletas e trombando com eles. Até que um deles me pediu calma. Aí, ficou mais tranqüilo”, disse Oscar Pignoni Silva, 50, que fez apoio com Raphael Borges, 29, para a equipe Buff Nike-ACG, ambos pela primeira vez.
Betânia Faria, 35, esposa e apoio de um dos atletas da equipe Competition/Aroeira, trouxe o “apoio do apoio”: os filhos Paula, 6, Bruna, 3, Pedro, 3 meses e os pais. “É uma aventura à parte, mas todos gostam muito. As crianças ficam felizes ao ver o pai e até ajudam dando comida na boca dele”, conta. Carlos André, 39, o pai atleta, também gostou da idéia. “Ficava com medo de aparecer num estado muito ruim, mas minhas filhas entraram no clima e em toda área de transição ficavam me perguntando se eu tinha fome e sede, e isso me animava muito”.
A CRIATIVIDADE TAMBÉM É IMPORTANTE NUM MOMENTO DE TRANSIÇÃO. A inusitada movimentação no povoado de Lajeadinho, vilarejo próximo ao litoral gaúcho, fez com que Pedro Caldas percebesse o interesse de alguns moradores. “Pedi para usar a cozinha de uma das casas e fui muito bem recebido. A dona da casa até me deu um pouco de leite e macarrão para engrossar a sopa”, diz ele. “É muito bacana, pois a gente estabelece uma relação de amizade e ainda ganha um cafezinho com bolo”, comemora.
Já nos primeiros PCs, a equipe americana Team Sole teve dois pedais quebrados, um em cada bike. Enquanto estavam com as magrelas, o apoio tentava criar pedais novos com galhos, pedaços de metal, fita adesiva, esparadrapo etc. “Colocamos cada coisa para substituir os pedais, foi até engraçado. Conseguimos chegar bem, mas minha perna esquerda está sofrendo um pouco”, disse Paul Romero, 34, capitão da equipe que conseguiu o sexto lugar com o tempo de 85 horas e 4 minutos.
Além de apoiar seus atletas de todas as maneiras possíveis, ainda sobra tempo para ajudar os outros. Após um trekking de 52 quilômetros, sem contabilizar 5 horas em que ficaram perdidos, a equipe Espírito Livre chegou numa transição estratégica – em que escolheram não utilizar o apoio –, sem comida, há quase três horas sem ingerir nada e com 39 quilômetros de pedal pela frente até encontrarem seu carro de apoio. “Pedimos comida e água para o apoio da equipe On The Rocks que, vendo nossa situação, ajudou na boa. Durante a prova tivemos auxílio de várias equipes”, diz Camila Nicolau, 20, que teve problemas com sua bike e pegou uma emprestada da equipe Mitsubishi/Quasar/Lontra, que já havia abandonado a prova. “Às vezes, vendo que nosso apoio estava fazendo mil coisas, as pessoas que estavam por ali começavam a ajudá-los. Um clima e espírito de amizade muito bons, que vão além da competição”.
Durante seis postos de controle até a chegada, mesmo brigando por posições intermediárias, duas equipes fizeram uma disputa metro a metro. “Era engraçado, porque a gente se encontrava nos PCs, se cumprimentava, conversava um pouco e depois voltava para competir. Uma mistura de amizade e inimizade que tomou conta da equipe nessa prova”, disse Fernando Fagundes, 35, capitão da equipe Ximango Sagaz, que chegou somente três minutos à frente da Competition/Aroeira.
Mesmo já tendo completado o Ecomotion Pro, muitas equipes da elite não deixavam de prestigiar outros quartetos que ainda completavam a prova. “Estou esperando amigos”, disse Paul Romero, protegendo-se do frio dentro da área reservada à organização da prova, em frente à linha de chegada. “Cada vez que começa a chover ou bate um vento mais intenso, penso nos atletas que estão lá fora e torço para que consigam terminar bem”, disse Emma, horas antes das tímidas lágrimas de Amanda fecharem a prova com o tempo de 136 horas e 6 minutos.
A FORÇA BRASILEIRA
Se as expectativas apontavam que os quartetos estrangeiros dominariam a prova, as equipes Oskalunga/Brasil Telecom e Clight/Salomon/Atenah, terceiro e quarto lugares, respectivamente, mostraram que a corrida de aventura brasileira está cada vez mais preparada. “Ainda há uma diferença entre estrangeiros e brasileiros, principalmente, em espírito de equipe e preparação física.
Mas, com certeza, essa distância está diminuindo”, afirma Aulus Sellmer, 41 anos, diretor técnico da assessoria esportiva 4any1 e treinador de 11 atletas que estavam competindo. “A impressão que ficou é que os estrangeiros realmente possuem mais preparo físico, mas os brasileiros estão em ascensão. Tínhamos pouca possibilidade de vencer a prova, mas nunca estivemos tão bem preparados”, disse Monclair Cammarota, 27, capitão da Oskalunga. Para a navegadora da equipe Clight/Salomon/Atenah, Nora Audrá, 27, o excelente resultado veio devido ao entrosamento da equipe. “Um acreditou no outro o tempo todo, sem deixar de curtir a prova”.
FAZ PARTE
O doce gostinho de terminar a prova, às vezes pode ser atrapalhado pelo acaso. Este ano 17 equipes não conseguiram chegar à reta final. “É uma das piores sensações, com certeza. Dá um vazio que não dá pra explicar”, desabafa Anderson Roos, 28, da equipe Sul Brasilis/Nexxera, sobre o como é desistir de uma prova. No segundo dia, um dos integrantes de sua equipe teve uma contusão no joelho e não conseguia mais progredir. “Vem à cabeça toda a preparação para a corrida, patrocinador… Mas preservar a saúde do companheiro vem antes de tudo. Aí, tivemos que abrir o rádio e chamar a organização da prova. Acabamos resgatados por um carro da imprensa”.
RAPIDINHAS
JUDIAÇÃO
Faltavam apenas 10 quilômetros para que os suecos da Cross Sportswear Team cruzassem a linha de chegada em segundo lugar, com possibilidades de passar os espanhóis da Buff. Porém, um dos competidores desmaiou e a equipe teve que abandonar a prova depois de aproximadamente 68 horas de esforço.
SEM PUDOR
Não foi só a força das equipes estrangeiras que impressionou, mas também o despudor dos homens que ficavam completamente nus nas áreas de transição. A ala feminina da vila de Lajeadinho vibrou com a movimentação.
PASSEIO LUSITANO
A certa altura da prova, duas equipes portuguesas, Portugal Ecoaventura.pt e Portugal XPDRace.com, se uniram para curtir, literalmente, a competição. Esbaldaram-se em restaurantes e hotéis próximos ao trajeto e não perderam uma oportunidade para clicar a paisagem. Terminaram a prova, mas levaram belos cortes.
LARICA
Para alimentar os ânimos, a norte-americana Robyn Benincasa, 38, da Merrel/Wigwam, dava colheradas em seu pote de Nutella e a equipe Discovery Team dava uns goles de cerveja – quente.
NA BRASA
Os apoios da equipe Goiabada Power foram preparados para o que desse e viesse. Levara, uma churrasqueira e fizeram a alegria de muitos apoios.
ÚNICA BAIXA
Ao ser levado para um dos PCs da prova, um dos cavalos que seriam usados por uma das equipes num trecho de treking não agüentou o ritmo dos tropeiros e morreu.
PRIVILÉGIO
Quem viu jamais esquecerá. Algumas equipes foram premiadas com um pôr-do-sol no cânion da Fortaleza, no Parque Nacional de Aparados da Serra.
MINI-HOSPITAL
Sem querer, o saguão de um hotel virou consultório da equipe médica comandada por Clemar Correa da Silva, 47. Até mini-cirurgia aconteceu, mas em local mais reservado para poupar o público de cenas mais chocantes.
(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de novembro de 2005)
PREPARAÇÃO: Competidores da Go lite Timberland se equipam para os testes de vertical
FOCO: Nas últimas horas de prova, Buff Nike-ACG ainda mantém a concentração
EM EQUIPE: Dormindo e descansando em grupo
QUENTE: Quente!