Fogo amigo

Por Leonardo Stefanini
Fotos por Henrique Raucci

— “Augusto, feliz Ano Novo! Me passa o abafador?”

— “Toma aí. Feliz Ano Novo, maluco! Ei, Pardal, cuidado, vai na manha. Feliz Ano Novo!”

— “Valeu. Preciso de ajuda aqui. Traz mais água, rápido”.

— “Cadê?”

— “Aqui maluco”

— “Não estou enxergando nada. Meus olhos estão ardendo muito.”

— “Aqui. Isso. Valeu, cuidado aí maluco. Feliz Ano Novo!”

— “Feliz Ano Novo galeraaaaaaaaaaaaaaa!”

— “Viva a natureza!”

Foi assim, fazendo o que mais gostam, que Augusto Maximiliano Galinares, 31 anos, Sergio Ricardo Zanon, 37, Lucio Costa Vieira de Moraes, 23, Venâncio Ferrreira Lopes Filho, 29, Valmiro Silva Brito, 29, Ronival Conceição, 29, o Pitu, André Guedes Costa, 42, o Capitão, Robson Dias Góes, 28, o Cabeça, Júlio César Carneiro dos Santos, 33, Sergio Henrique Machado de Matos, 32, Vanderlino Pereira Alves, 27, Railson Souza Rocha, 35, Adelson Araújo Santos, 27, Marcos Porchat Cauduro, 34, e Jânio Gleidson Souza Rocha, 27, comemoraram a chegada de 2004, apagando fogo. Eles fazem parte da Brigada de Resgate Ambientalista de Lençóis (BRAL), um dos dez grupos voluntários que combatem incêndios no maior parque nacional do Brasil, o Parque Nacional da Chapada Diamantina, na Bahia, a cerca de 400 quilômetros de Salvador.


CINZAS: Augusto Galinares, presidente do BRAL, em combate

Eram 10 da noite do último dia do ano quando, após se arrumarem para curtir a festa, alguns dos “malucos” perceberam que a três quilômetros dali a serra ardia em chamas. Saíram caminhando da cidade, subindo a serra “equipados” e andando rápido por uma hora, já que o fogo se deslocava rapidamente em direção a Lençóis. Da maior cidade da Chapada Diamantina enxergava-se as labaredas que se estendiam por uma distância de 5 quilômetros rodeando a Serra do Grisante, a mais próxima dali. Não foi preciso mais do que meia hora para que uma dezena de brigadistas se dirigisse à batalha. “A nossa brigada tem uma boa capacidade de organização. Não temos os meios de transporte mais adequados, mas mesmo assim conseguimos chegar rápido aos focos de incêndio”, diz Augusto Galinares, atual presidente da BRAL. Sim, o grupo está muito bem organizado, com hierarquia definida, documentação registrada e etc. “Só falta um pouco de ajuda”, completa.

Santuário ecológico com paisagens deslumbrantes, uma infinidade de cachoeiras e florestas, a Chapada atrai milhares de turistas do mundo inteiro todos os anos, fazendo com que empresários da região faturem alto com o ecoturismo. Mas, segundo os brigadistas, nem assim eles ajudam na preservação desse paraíso. “Nosso único parceiro em Lençóis é o hotel Canto das Águas”, conta Augusto. “Seus proprietários, Iasmin e Catan, são fiéis parceiros da brigada, e há anos ajudam com um simples sanduíche e uma garrafinha de suco para cada brigadista. Parece pouco, mas faz toda a diferença para quem pode ficar até dias combatendo os incêndios”.


FORNO: A brigada de Lençóis em ação

OS GRUPOS DE COMBATE A INCÊNDIOS na Chapada Diamantina têm como parceiro o Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis), que atua nas queimadas através do Sistema Nacional de Prevenção e Combate aos Incêndios Florestais, o Prevfogo. O órgão federal organiza cursos para as diversas brigadas da região todos os anos e também contrata quatro pessoas por grupo, semestralmente, com salários que beiram R$ 400. O valor é insignificante se comparado ao que os voluntários ganham como guias turísticos — principal atividade da maioria —, que varia entre R$ 50 e R$ 100 por dia de trabalho, dependendo do grau de dificuldade do passeio para os quais são contratados. “Muitas vezes a gente deixa de faturar como guia para ir apagar incêndios”, comenta Pitu.

A remuneração do Ibama, ironicamente, trouxe certa discórdia aos combatentes. O movimento, que era de puro voluntarismo, passou a atrair gente que cobiça um salário do governo e que ao término do contrato, simplesmente desaparece. “Hoje em dia tem muita gente que fala do assunto só para se achar mais machão ou porque quer se sentir parte do movimento”, reclama o presidente da BRAL. “Mas quando chega a hora de enfrentar um superincêndio de mais de 2.000 hectares, em que já vão quatro dias de combate, encarando labaredas de 10 metros de altura, picadas de escorpiões, marimbondos e vespas, caindo dentro de buracos à noite, passando fome, ficando desidratado, com o corpo cheio de espinhos, carrapatos e queimaduras, é nesse momento que você vê as mesmas caras de sempre”.

Os voluntários atuam em áreas que bombeiros normalmente não chegam — existe uma norma de proteção na corporação dos bombeiros que os proíbe de trabalhar em regiões que tenham animais peçonhentos —, sempre com equipamentos insuficientes para evitar a propagação das chamas pelas serras da Chapada. Suas ferramentas são bombas dorsais de 21 litros, abafadores (principal arma na guerra contra o fogo), foices, facões, pás e enxadas, todos bem usados — equipamentos novos são artigos de luxo. “Uma vez veio um gringo aqui, não me lembro de onde ele era, e quando viu nossos equipamentos falou que parecia brinquedo de criança”, lembra Augusto. Falta quase tudo, menos coragem.


MAIS AÇÃO: A brigada continua a lutar contra o fogo

As roupas usadas pelos combatentes estão longe daquilo que seria o Equipamento de Proteção Individual (EPI) ideal para as situações como as que enfrentam. “Este ano recebemos da Secretaria de Meio Ambiente e Recursos Hídricos (SEMARH) da Bahia, quinze EPIs”, comenta Augusto. “Embora agradecidos pela caridade, os pretensos EPIs foram montados por pessoas que não fazem idéia do que é um combate a incêndio. Recebemos luvas de látex que derretem ao mínimo calor, vestimentas pretas (imagina combater fogo de roupa preta, com sol de 40 °C na sua cabeça?), botas de segurança de shopping com solados que derretem ao menor contato com o fogo, meias sociais (aquelas fininhas, de defunto), camisetas tamanho PP (para o brigadista Gabiru), e calças de algodão, dessas usadas pelos carteiros (que até foram aproveitáveis)”.

Contudo, a maior dificuldade das brigadas é o transporte. “Quando o incêndio é muito longe, a gente não consegue ir por conta própria e fica esperando horas o carro do Ibama chegar”. Trata-se de uma única unidade que transporta ou resgata pessoal de dez grupos voluntários da região, espalhados por um perímetro de 700 quilômetros em todo o Parque Nacional, em uma área de 152 mil hectares, trabalhando dia e noite. Augusto diz que uma vez ficaram de meio-dia até 10 da noite, prontos, equipados, esperando o Ibama transportá-los para um incêndio. Existe também um helicóptero do Instituto, que aparece bissextamente.

Atualmente, por possuir um veículo próprio, uma Toyota Bandeirante cabine dupla com bancos “de tropa” na caçamba — gentilmente cedido pela agência de turismo local Extreme —, a BRAL é uma das mais ágeis brigadas do parque. Cabem cinco pessoas na cabine contando o motorista e mais oito, apertadíssimos na caçamba com todo o equipamento. “Isso acaba diferenciando a nossa brigada das outras, que não têm nenhum carro e dependem 100% do Ibama”, diz com certo orgulho o presidente da BRAL. As despesas no combate ao fogo são reembolsadas pelo órgão federal e, às vezes, demoram mais do que deveriam, mas chegam. “A gente paga o diesel da Toyota e se joga no mato. Depois corre atrás do reembolso.”


TESOURO: Quem gostaria de ver essas paisagens destruídas?

Transporte não é o único aspecto deficitário na ajuda que o Ibama dá aos combatentes. A alimentação também é escassa e não é a mais recomendada pelos nutricionistas: pão com mortadela e nada mais para comer. Para beber, leite com Tang, criativamente apelidado de iogurte. “Aí, maluco, tá rolando um iogurte” é a senha para o descanso, de um minuto no máximo, antes de enfiar a cara na fumaça preta de novo, sem proteção alguma. “Às vezes a gente fica dias apagando um fogo, sem voltar pra casa, comendo só pão com mortadela. Tem uma hora que não desce mais. É aí que a gente fica fraco”, reclama um dos voluntários. Apesar de todas as deficiências, o Ibama é o único parceiro das brigadas no combate aos incêndios. “Eles nos ajudam muito. Sem eles seria muito pior”, afirma o argentino Augusto Galinaris.

OS “MALUCOS” TRABALHAM QUASE SEMPRE À NOITE, quando as condições são mais favoráveis para se apagar o fogo. Muitas vezes vão no escuro, já que não têm lanternas suficientes para se locomoverem na floresta. “Hora de apagar fogo é de noite. É quando estamos mais fortes que ele”, diz Cabeça, um dos contratados do Ibama. “Uma vez fomos combater um incêndio na área de proteção ambiental Marimbus-Iraquara. Passamos 20 horas lutando contra um fogo que ia em direção ao morro do Pai Inácio, um dos cartões postais da Chapada Diamantina.

Ao terminar o combate, mais ou menos às 7 da manhã, estávamos famintos, mas com aquela alegria da vitória, deixando para trás uma serra escura sem fumaça nem clarões de fogo, a maior satisfação que um brigadista pode sentir. Muito cansados, fomos em direção à estrada subindo e descendo o serrado várias vezes até chegar à BR-242, onde pediríamos o resgate de carro pelo telefone de um boteco. Ligamos para um conhecido da gente que veio nos buscar depois de duas horas. Quando ele chegou, entramos no carro totalmente exaustos, morrendo de sono para ouvir: ‘aí galera, vamos fazer uma vaquinha, porque o carro está zerado de diesel’. Me senti um lixo. Juro que dessa vez quase desisti de continuar nessa loucura de salvar a natureza para as gerações futuras. Ficava me perguntando, rumo ao posto, inúmeras vezes: vale a pena?”.

Vale. É por amor à natureza que esses caras andam 300 quilômetros de carro, mais uns 40 quilômetros a pé, carregando 30 quilos de equipamentos cada um, sem as condições de segurança adequadas, passando fome, arriscando suas vidas e apagando fogo de graça. Até porque, eles têm a consciência de que é essa natureza que encanta os turistas e lhes garante o pão de todo dia. Mas não é só pela natureza que eles têm amor não. Eles amam apagar fogo. “Tem gente que gosta de jogar bola. A gente gosta de apagar fogo”, orgulha-se Capitão, um dos brigadistas mais antigos da região. “Quando a gente fica muito tempo sem apagar nenhum, a gente fica se coçando.”

Mas o que mais revolta a população da região central da Bahia é a origem dos incêndios. Na grande maioria, estão associados à ação criminosa decorrente de atividades econômicas seculares, tais como garimpo de diamantes, transformação de áreas do parque em pastagens para gado, queima de roças etc., e são provocados intencionalmente. “Todo mundo sabe quem é e ninguém faz nada”, queixa-se Augusto. Segundo os brigadistas, os responsáveis pelos incêndios na Chapada Diamantina são moradores dali mesmo, que não têm noção dos prejuízos causados pelas suas ações. Por não sofrerem nenhuma punição, continuam a atear fogo tranqüilamente, sem que ninguém os impeça.

As brigadas voluntárias, juntamente com o Ibama, vêm promovendo campanhas de conscientização e educação ambiental nas escolas de ensino fundamental dos seis municípios que pertencem ao parque: Palmeiras, Mucugê, Itaetê, Ibicoara, Andaraí e Lençóis. As atividades envolvem discussões, palestras e distribuição de cartilhas educativas sobre a prevenção de incêndios florestais e queimadas controladas. Com essas ações, gradativamente uma das mais belas áreas do Brasil, com fauna e flora riquíssimas e imenso potencial turístico, vem sendo protegida. E tudo graças aos brigadistas.


(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de dezembro de 2005)