J’accuse

Por Joe Lindsey*
Foto por Getty Images

Em 5 de setembro, Lance Armstrong fez uma declaração e tanto: ele disse que estava pensando em encerrar sua aposentadoria — então com apenas seis semanas — e voltar à equipe Discovery Channel para tentar conquistar mais um título. Embora Armstrong, 34 anos, tenha dito anteriormente que “somente um milagre” o faria voltar a correr, a explicação para seu retorno em 2006, conforme publicado no jornal texano Austin American-Statesman, foi bem clara: “Estou achando que é o melhor jeito de emputecer [os franceses]”.

A razão de Armstrong querer irritar os franceses é clara: vingança pela publicação, em 23 de agosto desse ano, de uma controversa matéria no L’Équipe, um jornal de esportes de Paris. Sob a manchete “Le Mensonge Armstrong” (“A Mentira Armstrong”), o jornalista investigativo Damien Ressiot, 41, alegou ter provas de que Armstrong usou drogas que melhoram o desempenho físico em sua primeira vitória no Tour, em 1999. “Os fatos são inquestionáveis”, escreveu o francês.

A prova do L’Équipe, alegou Ressiot, foi obtida comparando-se os resultados anônimos de testes de urina realizados pelo principal laboratório de exames anti-drogas da França, o Laboratoire National de Dépistage du Dopage (LNDD), com os números-código de seis relatórios de controle de doping separados que citam o nome de Armstrong — um dos quais veio da própria Union Cycliste Internationale (UCI), a instituição reguladora do ciclismo com sede na Suíça, que sanciona corridas, licencia corredores e tem seus próprios procedimentos anti-doping. O laboratório de doping avaliou as amostras de urina, obtidas de corredores do Tour de 1999 pela UCI e congeladas por cinco anos, em um projeto de pesquisa conduzido nos anos de 2004-05 com o objetivo de refinar um novo método de exame. Os testes, segundo o artigo do L’Équipe, mostraram que algumas das amostras continham traços de eritropoetina (EPO), um estimulador de células vermelhas do sangue usado pela primeira vez no fim dos anos 80 para aumentar a resistência física. Seis das amostras que testaram positivo, acusou Ressiot, eram de Armstrong.

Nenhum funcionário do LNDD ou qualquer outra agência anti-doping havia identificado Armstrong anteriormente. A pesquisa não fazia parte de qualquer protocolo de imposição de regulamentos. Seguindo o procedimento padrão, o laboratório não fazia idéia de quem eram as amostras que estava testando, identificadas somente por números. Ressiot alegou ter os seis registros de controle de doping — incluindo o arquivo da UCI — relacionando Armstrong aos números-código das amostras, e que estes são os mesmos números usados pelo LNDD para identificar as amostras positivas de seu teste. Uma fonte anônima forneceu a Ressiot a evidência usada para fazer a ligação.

O talento de Ressiot para coletar esse tipo de informação levou a uma outra investigação sobre seus métodos: no dia 13 de outubro, autoridades francesas estavam investigando o uso de entrevistas confidenciais feitas à Polícia em um artigo publicado em 9 de abril de 2004 no L’Équipe sobre um suposto doping na equipe de ciclismo francesa Cofidis. Mas, ele não se desculpa por seu estilo de reportagem, e em uma entrevista para a revista Bicycling, caracterizou sua matéria sobre Armstrong como uma “evidência preto-no-branco”.

A reportagem caiu como uma bomba. Alguns observadores disseram que a acusação era grave e o caso contra Armstrong era forte. Outros deram início ao uma chuva de críticas, questionando a ética e a legalidade de vazar resultados laboratoriais confidenciais, as motivações dos jornalistas e das fontes envolvidas e a precisão do teste em questão. Como acontece sempre que Armstrong é acusado de qualquer coisa, grande parte da reação em ambos os lados se caracteriza por uma certeza da verdade bem maior do que as evidências parecem ser capazes de fornecer. Jean-Marie Leblanc, o diretor do Tour de France, referiu-se à matéria como “meticulosa” e disse que “fomos todos enganados” pelas declarações de Armstrong de que estava limpo quando competiu.

Dick Pound, presidente da World Anti-Doping Agency (WADA) — organização independente estabelecida pelo Comitê Olímpico Internacional com o objetivo de determinar as políticas de exame anti-doping para a maioria das federações esportivas do mundo —, foi mais prudente. Ele se negou a fazer uma acusação direta contra Armstrong, mas disse que a matéria do L’Équipe mostrava uma “probabilidade muito alta da presença de drogas que melhoram o desempenho” no Tour de 1999.

Defendendo Armstrong, Gerard Bisceglia, presidente executivo da USA Cycling, a agência norte-americana reguladora do ciclismo, chamou a matéria de “absurda”, acrescentando que “esse tipo de teste de uma única amostra com anos de idade usando uma tecnologia nova não tem credibilidade nenhuma”. A referência de Bisceglia a uma “única amostra” tocou em um ponto crucial. Uma das regras fundamentais dos atuais exames anti-doping sob administração da WADA é que só é permitida uma sanção contra um atleta quando duas amostras de um único tipo de urina ou sangue — conhecidas como amostras A e B — confirmarem o resultado.

Mas o exame em questão foi conduzido apenas com as amostras B; as amostras A do Tour de 199 foram destruídas há muito tempo.

Na verdade, o objetivo real do laboratório não era encontrar evidências de doping em um evento passado, mas sim refinar o exame em si. O exame de urina para EPO usado atualmente funciona com eletroforese, que produz uma fotografia com carga elétrica que faz a distinção entre isoformas — proteínas com funções similares, mas com códigos genéticos diferentes. Na foto, A EPO natural de nosso corpo tem uma aparência diferente da EPO artificial. Para que o exame de doping dê positivo, pelo menos 80% das isoformas precisam ter marcadores que sejam coerentes com a EPO fabricada, e a amostra deve passar também por análises visuais e matemáticas. Duas semanas antes da matéria ser publicada no L’Équipe, um exame para EPO do triatleta de elite Rutger Beke, que deu positivo em 2004, foi desconsiderado na apelação após ele ter demonstrado que seu corpo havia produzido naturalmente proteínas que podem causar um resultado positivo.

A UCI, que tem jurisdição na questão, já que estava encarregada dos exames na época, iniciou uma investigação, mas sua atenção logo se desviou da questão do doping para as fontes que vazaram o relatório do laboratório e os formulários de controle de doping específicos de Armstrong. Isso levou a uma guerra de palavras internacional entre o presidente da UCI, Hein Verbruggen, e Pound, da WADA, sobre qual foi o papel de cada agência nesse escândalo todo.

No final, a reação mais importante veio do próprio Armstrong. Na noite anterior à publicação da matéria, ele negou as acusações em seu website, LanceArmstrong.com. “Vou simplesmente reafirmar o que já disse muitas vezes”, escreveu. “Nunca tomei drogas que melhoram o desempenho”. Depois, Armstrong disse à Associated Press que “tem uma armação acontecendo aqui. . . Eu não confio nem um pouco nesse laboratório”. No dia 25 de agosto, ele apareceu no Larry King Live, um programa de entrevistas da CNN, e especulou que o teste só poderia ter dado positivo se a amostra tivesse sido adulterada. “Foi a urina que foi manipulada”, disse a King e ao co-apresentador Bob Costas. “O que colocaram nela? Quem estava lá?”.

No fim, Armstrong acabou retirando sua ameaça de retornar ao ciclismo. Durante uma conferência por telefone em 15 de setembro com a mídia de Austin, ele descartou a chance de voltar a competir. “Não há a menor chance de eu receber um tratamento imparcial”, declarou, “seja na estrada, no controle de doping, no laboratório, no hotel ou na alimentação”. Na entrevista para o Larry King Live, Costas perguntou a Armstrong se estava pensando em processar legalmente o L’Équipe ou suas fontes. Ele disse que pensou a respeito, mas decidiu não fazer isso. “Quando você processa alguém, isso só mantém viva uma história ruim indefinidamente”, argumentou. “Acaba dando mais crédito do que eles merecem”.

LANCE ARMSTRONG PODE ter decidido, ao menos por enquanto, não dar atenção à denúncia do L’Équipe, do mesmo jeito que ignorou muitos ataques da imprensa no passado. Mas, ao longo do último ano e meio, ele tem tomado uma atitude muito mais agressiva contra seus acusadores. Embora possa ser verdade que um processo legal “mantém viva uma história ruim indefinidamente”, o ex-ciclista está atualmente envolvido em quatro casos separados na França, Inglaterra e Estados Unidos, três dos quais ele mesmo iniciou.

Esses três processos têm como alvo, direta ou indiretamente, a reportagem de um jornalista que, mais que qualquer outro, conquistou a inimizade de Armstrong por questionar seu histórico de correr “limpo”. David Walsh, irlandês de 50 anos, é o principal jornalista esportivo do The Sunday Times de Londres e co-autor, junto com o jornalista esportivo Pierre Ballester, de um livro em francês de 372 páginas chamado L.A. Confidentiel: Les Secrets de Lance Armstrong, publicado pela editora Éditions de La Martinière três semanas antes do Tour de France de 2004. O livro usa entrevistas e suposições para tentar provar que Armstrong tomou drogas que melhoram o desempenho, incluindo EPO e esteróides, e depois encobriu o fato. Como o próprio autor reconheceu, o livro não oferece provas conclusivas para sustentar as acusações.

Walsh não é nenhuma fraude. Há nove anos, ele escreve para o The Sunday Times, um conceituado jornal com circulação de 1,3 milhão de exemplares. Ganhou três British Press Awards — um importante prêmio do jornalismo impresso britânico — como Jornalista Esportivo do Ano, sendo o mais recente em 2004, por uma matéria sobre o jockey irlandês Kieran Fallon. Para Walsh, os riscos de suas cada vez mais próximas batalhas legais com Armstrong não poderiam ser maiores. Suas despesas legais estão sendo pagas pelo Times e pela La Martinière, e é muito improvável que ele tenha de pagar as compensações com dinheiro do próprio bolso caso perca o caso inglês e o francês. Mas, se sua defesa fracassar, ele não será mais David Walsh, o premiado jornalista, e sim David Walsh, difamador condenado.

DE JANEIRO DE 2003 a maio de 2004, Walsh e Ballester rastrearam praticamente todas as informações que poderiam levar a uma conexão entre Armstrong e doping. Conversaram com antigos colegas, diretores e médicos de equipe. Entrevistaram também fisiologistas do esporte para aprenderem como drogas que melhoram o desempenho agem e conversaram com usuários confessos de doping, como o francês Jerome Chiotti, para descobrir como as drogas são usadas entre ciclistas.

O resultado final é uma extensa coletânea de entrevistas, estatísticas, cronologias e notícias de jornal, mas nenhuma prova contra Armstrong. Ainda assim, Walsh e Ballester disseram que seria impossível conseguir obter provas aceitáveis. As fontes, alegam eles, recusavam-se a se apresentar publicamente, freqüentemente dando como explicação seu medo de que Armstrong revidaria, prejudicando suas carreiras e reputações. “As pessoas se negavam a falar por causa do que poderia acontecer com elas”, justifica Ballester.

Apesar de algumas alegações do livro serem puramente especulativas — como as débeis tentativas de Walsh e Ballester de levantar a possibilidade de que Armstrong tenha desenvolvido câncer por causa de seu suposto regime de drogas —, os autores também oferecem várias acusações que se sustentam como a que vem de Emma O’Reilly, a treinadora chefe da equipe Postal (pela qual Lance pedalava) nos anos de 1999 e 2000. Quando a Go Outside conseguiu falar com ela pelo telefone, O’Reilly preferiu não comentar essa história, mas no L.A. Confidentiel ela é citada dizendo que em maio de 1999 lhe foi dada uma caixa de pílulas sem identificação por Johan Bruyneel, o diretor da equipe Postal, e lhe pediram que a levasse de carro através da fronteira entre a Espanha e a França e a entregasse a Armstrong no estacionamento de um McDonalds. Ela também alegou no livro ter ajudado Armstrong a aplicar maquiagem para esconder as marcas de agulha no braço e de ter descartado seringas e outros restos de produtos farmacêuticos para a equipe.

QUER OS LEITORES acreditem ou não em Armstrong após ler L.A. Confidentiel, o livro tem problemas que poderiam abrir caminho para ações litigiosas. E não ajudou em nada o fato dele ter sido publicado somente em francês. Segundo Walsh, 14 editoras de língua inglesa decidiram não publicá-lo. As razões variam: pouco valor de mercado por causa do status de herói de Armstrong nos Estados Unidos; acusações antigas — algumas com mais de dez anos; e a sempre presente ameaça de processos.

Também é fato que Walsh havia dito no passado que não pagou Emma O’Reilly, quando na verdade, pagou. O jornalista admitiu à Outside que havia pago a O’Reilly por sua história, apesar de ter assegurado ao jornal VeloNews em junho de 2004 que não havia feito isso. Sua explicação para contar essa inverdade é que “senti na época que se eu admitisse, ela estaria completamente ferrada”.

Walsh alega que dois meses após O’Reilly ter completado a entrevista não-paga com ele no início de julho de 2003, ela ligou para reclamar que o livro seria um sucesso graças principalmente à sua entrevista, enquanto sua única recompensa seria a ira de Armstrong. De acordo com Walsh, ele contou a situação a Ballester e depois pagou a O’Reilly aproximadamente US$ 8.850 do dia 19 de setembro de 2003 (Walsh diz ter ganho cerca de US$ 55.000 com o livro).

Considerando que dependiam de um argumento basicamente circunstancial, Walsh e Ballester enfraqueceram seu caso ao ignorar as evidências circunstanciais a favor de Armstrong — como, por exemplo, sete anos de resultados negativos em testes anti-doping, tanto durante como entre competições. Deixam de citar outros argumentos que sustentam seu histórico de competição limpa, incluindo batalhões de corredores de apoio nas equipes Postal e Discovery com um único propósito: ajudar Armstrong a vencer. Nem mesmo reconhecem as brilhantes táticas de corrida de Johan Bruyneel. Quando estavam juntos, nenhuma equipe conseguiu sequer aproximar-se de sua eficiência.

No final das contas, as dúvidas que rondam L.A. Confidentiel causam um estranhamento: se Walsh e Ballester não conseguiram encontrar evidências definitivas de trapaça, por que a pressa em publicar o livro antes do Tour de 2004? Será que as evidências circunstanciais que apresentavam eram fortes o bastante para justificar o prejuízo à reputação de Armstrong?

Tanto os pontos fortes como as graves falhas do livro serão agora testados na maior luta suja da história do ciclismo. As regras dos tribunais são muito diferentes das regras do jornalismo. Para começar, as fontes têm que falar somente a verdade, ou serem indiciadas por perjúrio. Ambos os lados correm sérios riscos. Se a corte decidir em favor de Walsh, Armstrong pode ser exposto como o personagem central de um esquema internacional multimilionário para trapacear até se tornar o maior campeão da história do Tour de France. Mas, se decidir em favor de Armstrong, seus acusadores, além de qualquer quantia de dinheiro que tenham de pagar, passarão à posição de acusados no tribunal da opinião pública.

PARA ARMSTRONG, SUA REPUTAÇÃO, sua renda e o futuro sucesso da Fundação Lance Armstrong, que já arrecadou mais de US$ 85 milhões para sobreviventes de câncer, podem depender das evidências desencavadas por esses julgamentos. A revista Forbes o classificou como o terceiro atleta mais poderoso no mundo em 2005, atrás somente de Tiger Woods e Shaquille O’Neal, com uma renda de aproximadamente US$ 28 milhões por ano. A Sports Illustrated estimou que mais de US$ 17 milhões vêm de patrocínios, incluindo acordos pós-aposentadoria com a Nike, a Oakley e a Trek.

Do outro lado do Atlântico, David Walsh continua sem se arrepender ou se abalar, apesar do perigo que corre. Mas ele admite se sentir surpreso e frustrado pela repercussão relativamente limitada das alegações do L’Équipe nos Estados Unidos. “O que é preciso para os americanos começaram a examinar a carreira de Armstrong com honestidade?”, pergunta.

Por sua parte, Lance Armstrong pretende esperar para falar de seus acusadores no tribunal. “Não tenho interesse em comentar esse tipo de jornalismo praticado por David Walsh e Pierre Ballester”, disse à Go Outside. “Mas posso dizer que estou ansioso pelos julgamentos e que tenho total confiança que venceremos”.

*JOE LINDSEY é colaborador da revista Bicycling

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de dezembro de 2005)







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