Por Carl Hoffman
Ficar em “estado de graça” pode ser algo meio vago de se definir, mas Christy King sabia exatamente o que estava sentindo naquele momento, mesmo que apenas por um breve instante. Eram três da tarde de 9 de setembro de 2013, uma segunda-feira, e Christy estava admirando seu camping todo organizado. Essa australiana de 39 anos havia acabado de finalizar seu primeiro dia como guia de turismo de um grupo de sete conterrâneos, um neozelandês e 19 carregadores locais em um trekking originalmente planejado para durar seis dias na Papua-Nova Guiné, um país insular localizado na Oceania que faz fronteira com a Indonésia. Saindo das terras altas no centro da ilha e indo até a costa, o trajeto seguiria pela Black Cat, uma trilha árdua, íngreme e coberta de vegetação, de 67,5 quilômetros, aberta originalmente por mineradores de ouro australianos na década de 1920.
O grupo tinha começado a caminhar às seis da manhã, cruzando uma paisagem épica que começou com colinas íngremes cobertas de grama alta. Os clientes do trekking tinham entre 40 e 67 anos de idade, mas Christy se surpreendeu com a excelente forma física de todos. Às duas da tarde, haviam chegado a seu acampamento em Banis-Donki, uma clareira encravada no meio da selva fechada, com a trilha entrando por um lado e saindo pelo outro. Sob uma garoa fria, os carregadores se puseram a trabalhar para montar o acampamento, armando uma barraca laranja para cada pessoa. Para eles mesmos, penduraram apenas uma lona prateada nas árvores.
Os clientes não demoraram para desaparecer em suas barracas para colocar roupas secas e quentes. Os carregadores acenderam uma fogueira e puseram água para ferver. Um carregador chamado Kerry Rarovu, aparentemente de ressaca, só queria descansar. Christy o conhecia há anos e, enquanto conversava com os outros carregadores sob as lonas, sem querer ela ficou parada no exato lugar onde Kerry estava tentando armar sua cama. “Sai daí”, gritou ele, brincando. “Eu preciso dormir!” Matthew Gibob, outro carregador, se deitou perto de Kerry.
A chuva parou, e Rod Clarke e alguns dos outros clientes emergiram de suas tocas. O tempo costumava ser chuvoso ali nas colinas altas, e ninguém se importava, pois isso era parte da aventura. A fumaça das fogueiras onde a comida estava sendo preparada se espalhava pelo acampamento, enquanto o arroz fervia nas panelas. Nick Bennett ainda estava em sua barraca. Zoltan Maklary estava na dele, ouvindo música em seu iPod. Parte dos “garotos”, como os carregadores chamavam a si mesmos, estava coletando lenha na floresta.
Tudo parecia perfeito. Até que um bando de homens com facões saíram do meio das árvores. Eles entraram rapidamente na clareira por um dos lados da trilha, com um nível de agressividade que chocou Christy. Eram três homens, cada um usando gorro com buracos pequenos para os olhos e ostentando estranhas orelhinhas, como máscaras de Halloween. Um deles estava com um rifle .303 da Segunda Guerra Mundial e os outros dois seguravam facões de uns 90 centímetros, conhecidos no país como “facas-do-mato”. Um dos caras com a peixeira também tinha uma escopeta serrada. Eram baixos, bem pequenos.
“Durma! Durma! Durma!”, gritaram, querendo dizer, na verdade, “deitem-se”.
Rod e os outros se jogaram no chão, Christy se ajoelhou.
Kerry acordou quando os homens se aproximaram e começaram a retalhar a lona e as cordas que sustentavam a barraca. Ele abriu os olhos e ergueu o braço. O primeiro golpe desceu, partindo sua mão ao meio de comprido, bem entre os dedos do meio. O golpe seguinte abriu seu crânio. E o seguinte, e o seguinte. Oito vezes. O barulho das batidas era insuportável.
Nick, em sua barraca, ouviu gritos. Ele achou que algo divertido poderia estar acontecendo lá fora: talvez os garotos tivessem encontrado um cuscus, um tipo de marsupial típico dessa parte do planeta. Nick pegou sua câmera e estava prestes a sair da barraca quando sentiu um golpe esmagador, seguido de um som explosivo em seu cérebro. Achou que tivesse levado um tiro, mas, na verdade, era um golpe com o cano da arma. Sangue jorrou da ferida.
Zoltan se mexeu em sua barraca e começou a tirar seus fones de ouvido quando uma lâmina desceu sobre seu braço.
“Quero o chefe do grupo!”, gritaram os agressores, golpeando os australianos com o lado cego dos facões. Os homens se encolheram no chão. Christy se levantou. “Sou eu. O que vocês querem?”
“Dinheiro, dinheiro, dinheiro, dinheiro”, urraram.
A barraca de Christy ficava no final da fileira. A moça então se levantou, apontou para a barraca e disse que o dinheiro estava lá. Christy levava metade dos salários dos carregadores e todo o dinheiro que precisariam para pagar as pessoas que encontrassem nos vilarejos ao longo da trilha, ou seja, cerca de US$ 5 mil. Os agressores a separaram dos outros e a fizeram pegar o dinheiro da barraca. Ela achou que o bando pegaria o dinheiro e fugiria, mas, enquanto o homem com o .303 a vigiava ao mesmo tempo que juntava a grana, os outros dois corriam de um lado para o outro em um estado de frenesi, revistando as barracas, golpeando qualquer carregador que se mexesse.“Durma! Durma! Não olhe!”.
Eles cortaram Matthew, deitado ao lado de Kerry. Enfiaram o cajado pontudo de Peter Stevens em sua panturrilha. Gritaram exigindo a câmera de Nick e o dinheiro em seus bolsos, e então golpearam uma árvore com um dos facões, com força, para enfatizar a ordem. Eles cortaram as pernas de quase todos os carregadores, talhando suas panturrilhas e dilacerando seus tendões de Aquiles, golpeando-os com tanta força que seus ossos se estilhaçaram. Os clientes ocidentais permaneceram deitados, ouvindo os golpes e os gritos, mas Christy assistiu a tudo, pensando e planejando. O que ela poderia fazer? Silêncio.
“Eles foram embora?”, alguém finalmente perguntou.
Os sobreviventes ergueram as cabeças e, depois, se levantaram. Vinte, talvez 30 minutos se passaram. O acampamento estava destruído, assim como as barracas e os sacos de dormir. Havia roupas espalhadas por toda parte. Nick viu Matthew Gibob dar seu último suspiro e morrer. Dick Reuben, outro carregador, estava em estado de choque, enquanto Nick o vestia, colocando meias em seus pés ensanguentados. Alguns dos carregadores, que estavam catando lenha quando os agressores chegaram, haviam desaparecido na mata. O carregador Joe Gawe, que estava deitado na hora do ataque, tinha começado a levantar a cabeça quando um facão raspou seu rosto, depois ele ergueu o braço quando sentiu o próximo golpe, que cortou seu antebraço. Todos os outros estavam com as pernas feridas e não podiam ficar de pé – exceto por dois, o filho de 9 anos de um carregador e o carregador que segurou o menino enquanto o ataque acontecia.
“Foi horrível”, disse-me Christy, dois meses depois. “Foi como estar em uma zona de guerra. Sou enfermeira e estou acostumada a ver carne e morte e todas as merdas que podem acontecer com os seres humanos. Mas Kerry foi abatido como um animal. Sua cabeça foi completamente aberta e havia membros e corpos e sangue por toda parte.” Christy entrou em um modo meio piloto automático. Ela localizou o kit de primeiros socorros, pegou alguns curativos e achou o celular de um dos australianos. O aparelho ainda tinha sinal – estavam dentro da área de alcance. Não conseguiu ligar para um número local, mas contatou seu padrasto na Austrália, disse que seu grupo havia sido atacado e falou para ele telefonar para o marido, que vivia na Papua-Nova Guiné. Então ligou para um amigo que trabalhava para a Morobe Joint Mining Ventures, uma empresa que explora uma mina de ouro gigante perto do início da trilha onde estavam, e pediu para chamar todo mundo que pudesse ajudar e para que as pessoas dos vilarejos vizinhos tentassem encontrá-los na clareira.
Christy fez os cálculos. Pensou sobre sua responsabilidade perante os clientes, que estavam sangrando, traumatizados. A escuridão se aproximava e, nas terras altas, isso significava uma noite longa e gelada. Decidiu tomar uma decisão. Faria curativos em todo mundo da melhor forma que pudesse, deixaria os carregadores ali o mais confortável possível e, junto com os clientes, iria embora pelo caminho por onde vieram – uma caminhada de cerca de seis horas. “Foi difícil deixá-los, mas não tinha mais nada que pudéssemos fazer e precisávamos buscar ajuda”, explicou.
O único problema: aquela era exatamente a direção que os agressores também tinham seguido. “Foi sinistro e assustador”, contou Christy. “A gente andava por dez, 15 minutos, sentia o cheiro da maconha deles, parava, mantinha sempre o grupo unido.” Eles estavam com lanternas de cabeça, mas o medo era grande demais para ligá-las, então Christy os guiou pela escuridão. “A adrenalina nos manteve andando”, disse Nick.
Depois de várias horas, encontraram um grupo de pessoas de um vilarejo e, às 22h30, estavam na clínica médica da Morobe Mine. Mas os carregadores ainda estavam lá no mato, no local do massacre. O ataque recebeu pouca atenção em outros países, mas deu o que falar na Papua-Nova Guiné e na Austrália – de quem a ilha se tornou independente em 1975, após um período de colonização. Em 48 horas os clientes de Christy estavam em casa, e sua desgraça era tema de noticiários em emissoras de TV, rádio, jornais e sites da internet. Os relatos invariavelmente mostravam fotos de Nick com a cabeça envolta em gaze, contavam que Peter havia sido poupado e chamavam os agressores de ladrões ou bandidos. As reportagens mais detalhadas incluíam curtas entrevistas com moradores da região, que diziam que uma disputa entre tribos pode ter sido um dos agravantes – uma teoria negada por Mark
Hitchcock, um dos donos da PNG Trekking, a agência de turismo que organizou o roteiro da viagem. O motivo, ele disse aos repórteres, era claramente roubo. “Esse é um incidente isolado que chocou a todos nós” foi uma frase de Mark amplamente citada pela imprensa. “Foi uma tragédia totalmente fora do comum na história deste país.”
Conforme os dias iam passando, a polícia, em terra firme e em helicópteros, fez uma operação “pente fino” nas colinas e florestas em busca dos criminosos. Então, uma semana depois, surgiu outra história: os parentes de um carregador morto haviam atacado um suspeito de esconder um dos assassinos.
No começo assisti a isso tudo de longe, nos Estados Unidos. Como passei os últimos três anos trabalhando em um livro sobre o desaparecimento, em 1961, do jovem milionário norte-americano Michael Rockefeller na Nova Guiné, viajei por vários meses em regiões remotas da metade ocidental da ilha, a Papua, que faz parte da Indonésia. Lá vivi com uma tribo na costa sudoeste. Embora os costumes tribais variem bastante ao longo da ilha, a ideia de “reciprocidade de violência” – ou seja, equilibrar as forças do mundo por meio de guerras constantes e buscar o que os ocidentais chamam de vingança e os povos tribais chamam de retribuição – é quase universal por lá. Relatos de violências horrendas na Papua-Nova Guiné estão se tornando cada vez mais comuns, incluindo ataques contra pessoas vistas como feiticeiras – que é, em si, uma forma de reciprocidade, desta vez contra os espíritos.
E isso não estava acontecendo apenas em regiões remotas, mas também nos maiores centros urbanos do país, como Port Moresby, Lae e Mount Hagen, conforme homens de culturas guerreiras se veem sem rumo ao serem separados dos costumes sagrados que regem e controlam suas vidas, geralmente acabando pobres e desempregados nas cidades grandes, isolados da aldeia e do ambiente tribal. Mesmo que a mídia tenha voltado sua atenção para os trekkeiros australianos e sua desgraça no mato, uma coisa estava clara: embora Nick tenha sido atingido na cabeça, Zoltan tenha sofrido um corte no braço e Peter tenha sido empalado na perna com seu cajado, nenhum dos clientes sofreu ferimentos graves. Traumatizados emocionalmente, sim; roubados, também. Mas ninguém perdeu um dedo que seja nem precisou mais que alguns pontos para ficar bem. Sim, foram golpeados, mas com o lado cego dos facões. Em outras palavras, um certo cuidado foi tomado pelos agressores em relação aos estrangeiros.
Já com os carregadores, cujas idades variavam entre 20 e 40 anos, o negócio foi bem diferente. Dois foram mortos na hora, um terceiro sofreu tantos cortes que perdeu a vida após alguns dias e seis outros foram brutalizados de maneiras tão específicas que isso tudo sugere que há muito mais coisa por trás do ataque que um simples roubo.
Fiquei chocado com o incidente, mas também um pouco curioso. Era como uma janela para a Papua-Nova Guiné e o que pode acontecer quando turistas ocidentais se aventuram nos cantos mais remotos do mundo – lugares complexos com profundas tradições e costumes, emoções e antipatias que os ocidentais entendem pouco ou são completamente ignorantes a respeito. Eu queria saber mais sobre o que estava acontecendo.
CHRISTY KING FOI CITADA brevemente nos relatos iniciais, mas então a mulher amplamente aclamada como a heroína da tragédia silenciou. Meus e-mails para alguns dos australianos não foram respondidos, até que Rod Clarke finalmente escreveu para dizer que os trekkeiros não podiam mais falar, pois estavam negociando um contrato com um veículo de comunicação na Austrália, um país com um longo histórico de jornalismo que paga para seus entrevistados concordarem em contar suas versões dos fatos. Por fim, um dia consegui contatar por telefone Pam Christie, a coproprietária da PNG Trekking, mas ela também se recusou a conversar comigo. Nada disso ajudava o turismo na Papua-Nova Guiné, disse ela, e era hora de deixar o incidente para trás. Quando lhe pedi que me pusesse em contato com alguns dos carregadores de Christy, ela foi curta e grossa: “De jeito nenhum”. Se eu quisesse mais alguma informação, deveria telefonar para o Departamento de Turismo e Promoção da Papua-Nova Guiné, que sabia de tudo o que ocorrera.
Liguei, então, para um amigo na Austrália, que conseguiu rastrear os pais de Christy, que passaram o número de telefone dela. Quando esse meu colega contou a Christy o que eu pretendia fazer – ir para a Papua-Nova Guiné tentar entender o que realmente tinha acontecido lá –, ela disse que eu poderia contatá-la. Isso soltou as línguas dos trekkeiros também, principalmente mais tarde, quando o contrato deles com a imprensa australiana não se concretizou.
Duas semanas depois eu estava na Papua-Nova Guiné, investigando aos poucos a verdade sobre o tal episódio sanguinolento.
VINTE E QUATRO HORAS antes do ataque, Nick Bennett sacolejava na caçamba de uma picape nas terras altas da Papua- Nova Guiné. Ele e outros sete australianos haviam acabado de ir de avião da capital, Port Moresby, até Bulolo, cujo aeroporto consistia em apenas dois contêineres de transporte de carga adaptados para receber passageiros, e agora o grupo subia de carro para as partes mais altas do país.
A paisagem era selvagem e linda, o tipo de lugar que faz seu peito se estufar e te provoca gargalhadas de alegria e aquela sensação de que só os sortudos têm a chance de estar ali. A estrada era de terra, sulcada e cheia de buracos. Em um momento, cruzava florestas densas; em outro, serpenteava por colinas íngremes. Às vezes a picape encontrava riachos com fortes correntes, e o céu era enorme e cheio de nuvens cinzas e brancas, perfuradas por raios de sol que pareciam quentes no ar fresco das montanhas de 1.250 metros de altitude. De vez em quando, papuanos caminhavam pela estrada: homens pequenos e de pele escura de shorts e camiseta, carregando facões, e mulheres em floridas blusas coloridas trazidas até aqui pelos missionários protestantes cem anos atrás, com sacos cheios de gravetos ou batatas-doces pendurados na cabeça.
Nick se sentia animado. Ele tinha 55 anos, era originalmente da Nova Zelândia, serviu no corpo diplomático de seu país e, depois, se mudou para a Austrália. Lá trabalhou como guia de excursões e treinador e competiu em épicas provas de barco a vela. Nick amava aventuras, culturas exóticas e experiências intensas – até que um dia foi nocauteado por um infarto. Lutou para se recuperar. Começou a fazer ioga e se matriculou em um programa de academia de 20 semanas que incluía longas caminhadas e subidas de morros. Depois de tanto esforço, eis que estava ele aqui, forte, saudável, triunfante, no meio do nada. Em termos de exotismo cultural e de natureza, não dá para viver experiência mais profunda, bela, estranha e diferente do que a Papua-Nova Guiné. E sua jornada estava apenas começando.
Roteiros como essa caminhada na qual Nick se inscreveu são um grande negócio na ilha. A Trilha de Kokoda, muito mais famosa que a Black Cat, é visitada por cerca de 4 mil turistas por ano. Trata-se da “experiência mais importante para os australianos que visitam a Papua-Nova Guiné”, segundo um estudo de 2012 feito pela Secretaria de Turismo da Austrália. Esse trekking vai de Port Moresby a Kokoda por meio da Cordilheira Owen Stanley. É um roteiro muito bem organizado. Os visitantes pagam a agências de turismo como a PNG Trekking Adventures, que por sua vez fica responsável por guias, carregadores, suprimentos e logística. Há um grupo local que cuida da trilha e coleta uma taxa por cada turista. É tudo tão bem organizado, com os guias, carregadores e vilarejos próximos tão envolvidos nesse negócio comercial superestruturado que há pouco crime por ali.
Querendo expandir os negócios, a Junta de Turismo e Promoção da Papua-Nova Guiné e a PNG Trekking começaram a explorar a Black Cat em 2004. A Kokoda já estava quase lotada, e a Black Cat oferecia ainda mais desafios e tradição. Embora seja mais curta, é muito mais técnica e coberta de vegetação. Passa por territórios remotos que pertencem a tribos como os bong, os iwal e os biangai. Desenvolvê-la como uma trilha de trekking comercial prometia ser uma enorme oportunidade para todo mundo. Mas isso ainda levariam anos e, quando Nick Bennet chegou lá, só uns poucos grupos comerciais já haviam feito esse roteiro.
No fim daquela tarde, Nick e os outros chegaram à aldeia de Wau, onde ficava o último “oásis” do caminho: a casa de Danielle e Tim Vincent, moradores de longa data da Papua-Nova Guiné que foram colonos australianos e atualmente se dedicavam à Way Adventures, uma empresa criada por eles para cuidar da logística desse início de trilha. Do lado de fora do complexo cercado dos Vincent tinha selva, estradas de terra, umidade, poeira e os papuanos e seus mistérios impenetráveis. Dentro da casa, havia piso de madeira polida, mobília branca e armários de vidro. Tomando vinho e curtindo um delicioso jantar, os oito trekkeiros, todos de meia-
idade e a maioria formada por militares reformados, conheceram uns aos outros e à mulher que iria guiá-los trilha adentro.
A guia da viagem era loira e bronzeada, e os homens foram surpreendidos por sua beleza. “Eu achei que, talvez, o marido dela se juntaria ao grupo”, disse Rod Clarke. “E pensei que o roteiro deveria ser muito seguro, já que ela estaria nos guiando.”
Christy King não é uma mulher que precise de qualquer ajuda de um homem. Australiana durona, ela é enfermeira e atleta de endurance. É esguia e musculosa, com panturrilhas do tamanho de bolas de beisebol. Ela transpira competência e eficiência.
Casada com um integrante de uma antiga família de colonos australianos dona da maior cadeia de farmácias da Papua-
Nova Guiné, Christy faz parte da elite de expatriados australianos que ainda desempenha um papel poderoso na economia e na política papuanas. Lae, a segunda maior cidade da Papua-Nova Guiné, foi lar de integrantes da família King há 50 anos, e Daniel, marido de Christy, tem morado lá na última década, começando uma família que agora inclui duas crianças em idade escolar. Christy é fluente em tok pisin, um dialeto que mistura inglês e que é falado em toda a Papua-Nova Guiné. A família King conhece todo mundo, de altos funcionários do governo a moradores de Salamaua, um vilarejo próximo à trilha Black Cat onde os King possuem uma casa de praia.
Christy não fica parada. Ela corre todos os dias, às cinco da manhã, pelas ruas de Lae, acompanhadas de guardas em um veículo. Em 2011, ela correu os 67,5 quilômetros da Black Cat em 31 horas, um percurso que a maioria dos trekkeiros leva seis dias para completar. Ela fez isso para se preparar para uma corrida de 96 quilômetros em Kokoda – que terminou em 30 horas. Christy estava em excelente forma e conhecia muito bem a região, as pessoas, o idioma local e todos os participantes do jogo político desse exótico país.
A apenas alguns quilômetros da casa dos Vincent, enquanto Christy e seus clientes celebravam a aventura que estava por vir, Kerry Rarovu, Dick Reuben e 17 outros “garotos” carregadores de uma aldeia chamada Kaisinik faziam o mesmo. Para homens sem estudo de aldeias empobrecidas sem energia, água encanada e muitas vezes nem mesmo estradas de acesso, carregar equipamentos e suprimentos para grupos de turistas estrangeiros era um serviço tranquilo. Recebiam US$ 50por dia, mais gorjetas e o que quer que os clientes deixassem para trás, como botas de caminhada e câmeras digitais. Mais importante ainda, a proximidade com estrangeiros era uma educação por si só, expondo os locais a um mundo maior e a quaisquer oportunidades que possam ser obtidas com isso. Todos os vilarejos lucravam quando os turistas de trekking passavam por eles. “Nós pagamos por tudo”, disse Christy. “Cada balde de água. Cada pedaço de fruta. Cada lenha.”
Na hierarquia dos carregadores e guias nativos, Kerry era um astro, um exemplo do que um papuano inteligente, motivado e ambicioso poderia fazer da vida. Ele era confiável; chegava na hora marcada em uma sociedade na qual as noções ocidentais de tempo não existem. As agências de trekking queriam seus serviços e turistas queriam que ele fosse em suas caminhadas. Por isso, Kerry havia conseguido um status de guia-chefe, ganhando de US$ 10 a US$ 20 a mais por dia. Aprendia os costumes ocidentais com facilidade. “Kerry tinha um ótimo inglês e excelentes relações com todos os estrangeiros da Papua”, lembra Christy.
Kerry havia caminhado na Kokoda e liderara quase todos os trekkings na Black Cat. Durante as viagens, ficava nos mesmos hotéis que os ocidentais, jantava com eles e se sentia à vontade fazendo isso. Um australiano em Lae tinha lhe dado uma mountain bike, e não demorou para Kerry aprender a empinar sua magrela e fazer malabarismos em duas rodas para os estrangeiros. Sua posição social no vilarejo onde morava se elevou, assim como sua condição financeira, ainda que só um pouco. Ele construiu uma casa de madeira em sua aldeia, abriu uma lojinha no cômodo da frente e estava se tornando um grande chefe de família, sustentando os dois filhos e alguns parentes. “A gente considerava Kerry nosso líder”, diz Hubert Koromeng, seu primo. Christy sempre o convidava para suas corridas mais desafiadoras.
Mas ele também se tornara um pouco convencido e, aparentemente, havia começado a exagerar na bebida. Então, para essa que seria sua primeira vez como líder de um trekking, Christy escolheu outro homem, Dick Reuben, como guia-chefe. Dick não possuía a mesma experiência de Kerry, mas era mais quieto e atencioso, um cara de boa aparência, que falava bem e em quem Christy confiava totalmente. Além disso, ele era de Salamaua, o vilarejo praiano onde a família dela tinha uma casa.
Ao ser contratado, Dick teve como primeira missão caminhar pelo início da trilha, selecionando carregadores de outras aldeias para, segundo Christy, espalhar um pouco o dinhero advindo do turismo. Nenhuma aldeia – e, mais importante, nenhuma tribo – deveria ser deixada de fora.
Dick havia selecionado um punhado de “garotos” de sua própria aldeia e recrutou outros mais pelo caminho. Eles caminharam durante dois dias, descalços, carregando cargas pesadas e enfrentando morros íngremes por 65 quilômetros. Na segunda-feira à noite, havia 19 carregadores, incluindo Kerry, na aldeia de Kaisinik, na casa de Ninga Yawa, o presidente da Black Cat Track Association, a associação criada para cuidar da trilha. Enquanto Christy e os australianos celebravam a alguns quilômetros de distância, em Wau, os carregadores comemoravam na casa de Ninga, feita de folhas de palmeira e sem eletricidade ou água encanada. Mascaram uma semente estimulante conhecida como noz de bétel, fumaram e festejaram até tarde da noite. Em poucos dias todos eles teriam US$ 300 no bolso e, se fosse tudo bem no trekking, mais turistas viriam, trazendo dinheiro e oportunidades para um povo sem nada.
Eu passei três dias com Ninga Yawa, que me levou para as terras altas, no começo da trilha, e me deixou em Kaisinik. Longe dos centros urbanos e das comunidades de estrangeiros da Papua-Nova Guiné, isso aqui é um mundo paralelo, um lugar onde as identidades e diferenças tribais e culturais se revelam fortes e severas, gravadas na mente de todos.
Na Papua-Nova Guiné, principalmente nas terras altas, a violência tribal está sempre por perto, e Ninga era um integrante da tribo biangai. Ele estava em situação relativamente boa: dirigia uma picape Toyota 4×4 e sua família era líder da aldeia há gerações. Conforme sacolejávamos em direção a Kaisinik – uma pradaria localizada entre colinas íngremes e vizinha do veloz rio Bulolo –, ele disse que sua casa já tinha sido grande, com cinco cômodos, feita de madeira e apoiada sobre pilares de ferro. Não mais: agora ela e todas as residências em Kaisinik eram simples casebres com esteira de folhas de palmeira, com cozinhas que não passavam de um fogo aberto sob um teto de folhas. Em 2009, os vizinhos da tribo watuts, com quem os biangais estavam envolvidos em uma disputa por terra havia décadas, invadiram a aldeia com lanças e arcos e queimaram tudo, matando cinco pessoas. Em uma decisão rara, Ninga convenceu seus vizinhos a não retaliarem; em vez disso, estavam lutando com os watuts nos tribunais. Mas os ânimos ainda estavam tão tensos que cinco homens foram designados para dormir na entrada de minha pequena cabana. “Sua segurança é nossa responsabilidade”, disse Ninga.
Na manhã seguinte, ele me levou até o início da trilha, onde os carregadores e os clientes ocidentais tinham se encontrado pela primeira vez, sob uma garoa gelada. O lugar era sublime, um mundo quase sem árvores, com grama extremamente verde cobrindo colinas íngremes. Parecia um território desabitado, sem uma única aldeia à vista. Mas lá em cima, lá dentro do mato, havia gente, comunidades inteiras desconectadas do resto do mundo. Foi a chance de ver essas pessoas, de interagir com elas – e seus carregadores e guias, também nascidos naqueles lugares – que atraíram Nick, Rod e os outros clientes do trekking, tanto quanto os desafios da caminhada em si.
Nick tinha feito um trekking pela Kokoda alguns anos antes. “Os garotos cantavam, e era um prazer caminhar pela selva e conhecer aquela cultura”, disse-me ele. Desta vez seu carregador era um jovem tímido e quieto chamado Andrew. “Era o primeiro trekking dele como carregador”, contou Nick. “Se tivéssemos continuado no passeio, teríamos nos conhecido melhor e nos dado muito bem.”
Enquanto os outros carregadores se apresentavam para seus clientes – um guia-chefe, além de um carregador para cada um dos oito clientes, mais nove para levar a comida, as lonas e o equipamento de cozinha –, Christy se surpreendeu ao notar que Kerry estava cheirando a álcool.E, embora ela tenha exigido que fossem contratados carregadores de várias aldeias espalhadas pela trilha, 11 dos 19 garotos eram do vilarejo de Dick. Isso significava que, no final das contas, US$ 3 mil ouUS$ 4 mil ficariam em Salamaua, e muito menos se destinaria para outras aldeias. Somente um carregador era de Kamiaturn, dois eram de Mubo, um de Goudagasule e dois de Skin Diwai. Kerry e Matthew eram de Biawen, um pouco acima de Kaisinik.
Mas era tarde demais para mudar a composição dos carregadores. E Christy confiava nas decisões de Dick: ele conhecia a política tribal melhor do que ela. De sua parte, Dick acreditava na época – e continua acreditando até hoje – que a distribuição das contratações foi justa e apropriada.
A caminhada começou umas sete da manhã: no total eram 27 homens e Christy, com os carregadores com bonés de beisebol, pés descalços e mochilas pesadas, enquanto os australiano usavam chapéus com abas largas e cajados de caminhada. Cada carregador andava atrás de seu cliente, com Kerry e Christy na retaguarda. A trilha saía da estrada e descia uma colina íngreme, para depois começar a subir na direção da pradaria, em um caminho estreito e escorregadio. Às nove horas o grupo chegou à carcaça de um avião B-17 da Segunda Guerra Mundial que há 70 anos jazia no mato. Todo mundo posou para fotos, sorrindo, animados mesmo sob a chuva fina. Em uma das fotos, dá para ver Dick e Kerry ajoelhados, empunhando com orgulho a ferramenta mais importante ali – um facão enorme.
Depois da parada, eles partiram novamente, adentrando logo uma região da mata espessa e úmida. O dia estava nublado, envolto em névoa; as árvores gotejavam orvalho. A cada passo, os australianos penetravam mais profundamente, em todos os sentidos, nas reentrâncias e complexidades de um lugar muito complicado, que poucas pessoas brancas compreendiam por completo. Naquela noite, acamparam em BanisDonki e dali seguiriam para as cabanas de palha de aldeias remotas.
Para os australianos, era uma aventura selvagem. Mas os papuanos – eu estava aprendendo com Ninga e os homens que se sentaram ao redor de sua fogueira – viam tudo aquilo de um jeito diferente. Salamaua ficava em uma região de um povo costeiro que falava o idioma bong e vivia espalhado em pequenas aldeias distintas; a de Dick era chamada Lagui. Conforme a trilha embrenhava-se ilha adentro, penetrava em um território que parecia o mesmo, mas que, na verdade, virava a terra do povo iwal, centrado nas aldeias de Mubo e Bitoi. E, depois, na direção do início da trilha, entrava no território de Ninga e Kerry, as terras dos biangai.
Os bong, os iwal e os biangai sabiam exatamente onde seus respectivos territórios começavam e terminavam, sabiam quem era dono do que e quem era de onde só de olhar para a cara de uma pessoa. E todos eles falavam idiomas diferentes. Papua-Nova Guiné tem sido assim há40 mil anos, uma colcha de retalhos de centenas de grupos linguísticos e tribos cujas relações com os vizinhos do outro lado do morro muitas vezes não existem ou são violentas – embora na Black Cat todos sempre tenham se dado bem.
Tem outro detalhe na Black Cat: há uma diferença entre as duas extremidades da trilha e seu meio. Lagui, ao longo da costa, fica a uma hora de barco de Lae e tem mantido contato com o mundo exterior faz 150 anos. Embora seja empobrecida, a cidadezinha conta com serviço de celular, com turistas indo e vindo e um pequeno, mas constante, fluxo de renda. O mesmo é válido para Wau, Kaisinik e Biawen, no final das terras altas, que podem ser alcançadas por estrada e se situam em meio a plantações de café e uma grande e crescente mina de ouro.
Mas as aldeias no meio da trilha são mais selvagens, mais pobres, não têm serviço de celular e se ligam ao mundo somente por árduas picadas que cruzam a selva. As aldeias ao longo da trilha propriamente dita, como a Mubo, pelo menos recebem trekkeiros de vez em quando. Aldeias como a Bitoi, do outro lado do morro, nunca veem estrangeiros.
Os iwal, no meio do caminho, defendiam um sistema no qual os carregadores trabalhassem somente dentro de suas fronteiras tribais, com os trekkeiros trocando de carregador ao longo do percurso. Segundo eles, dessa forma ficaria assegurado que cada região e tribo teriam trabalho. Mas as empresas que organizam os trekkings não gostaram da ideia. Seus clientes queriam um mesmo carregador durante toda a caminhada. As empresas não queriam ter que lidar com a logística complicada de ficar trocando de carregador várias vezes em um mesmo trajeto. E, como a maior parte da trilha passava pelo território dos iwal, os bong e os biangai, que ficam nas duas pontas do percurso, teriam muito menos trabalho e renda.
Christy estava ciente dessas questões, assim como todo mundo que vivia na região. Um ano antes, ela, seu marido e Dick tinham feito a caminhada até Mubo levando uma carga de suprimentos médicos doados para a clínica local. O lugar lhe deixou com um mau pressentimento, mas Christy achou que eles ficariam bem – e ela havia sido clara com Dick de que queria que fossem chamados garotos de cada aldeia.
Christy e os australianos não sabiam, mas na aldeia de Kamiaturn, um grupo de homens questionou Dick. “Eles me perguntaram se eu iria contratar carregadores de cada aldeia, e eu disse que era isso mesmo que estava fazendo”, Dick me contou. “Eu perguntei aos garotos de onde eram, e eles disseram que vinham de Bitoi.” Quando Christy e seus clientes chegaram a Banis-Donki para armar acampamento, o ataque já havia sido planejado e estava em andamento. Era o único local de acampamento remoto, que não ficava em uma aldeia e estava longe de olhos curiosos. E os agressores estavam lá, esperando, escondidos nos arbustos.
UMA NOITE NA CASA DE NINGA, um grande grupo de anciães biangai começou a chegar para discutir o processo contra os watuts a respeito das terras. Um por um, eles foram chegando, até que mais de 20 se sentaram ao redor da fogueira a céu aberto, bebendo chá e café, mascando bétel e fumando. O fogo crepitando e o som das águas correndo no rio Bulolo enchiam a noite, enquanto eles contavam uma versão muito mais detalhada sobre o que acontecera depois do ataque.
Os clientes australianos desceram da montanha aos tropeços e foram logo colocados em um avião de volta para casa. Mas enquanto eles estavam recebendo pontos naquela mesma noite, Wele Koyu, um ex-conselheiro da aldeia Kaisinik e carregador veterano, reuniu quatro policiais e 24 garotos locais e começou a subir a trilha depois da meia-noite, junto ao encarregado de logística da empresa de mineração Morobe Mines, Daniel Hargreaves. Chegando ao local do ataque às quatro da manhã, eles cuidaram dos carregadores feridos e abriram uma zona para pouso de helicóptero.
“Fazia frio, havia sangue por toda parte e os carregadores estavam chorando”, disse Wele. Os feridos foram levados ao hospital Angau, em Lae, em dois voos de helicóptero naquela manhã. Chegaram lá na mesma hora que um enorme acidente de ônibus encheu o hospital com mais mortos e feridos. Eles ficaram no pronto-socorro, convalescendo, sem receber transfusão de sangue, antibióticos ou analgésicos.
Em um país não conhecido pela eficiên-cia de sua polícia, a família King e seus amigos influentes contataram o primeiro-
ministro da Papua-Nova Guiné, Peter O’Neill. “Do minuto em que tudo começou, os estrangeiros tomaram o controle da situação”, disse-me um expatriado que acompanhou o caso de perto. Eles pressionaram Peter, pressionaram a polícia, se asseguraram que os helicópteros estavam no ar e operando, supervisionaram a hospitalização e o tratamento dos carregadores, falaram com a polícia depois de cada prisão. Imediatamente um helicóptero e uma força de reação móvel – uma unidade bem treinada e fortemente armada da polícia federal criada para combater a violência tribal – começou a passar o pente fino na região ao redor da trilha. Depois que os carregadores feridos ficaram quatro dias no hospital público, os expatriados transferiram todos eles para o Hospital Internacional de Lae, que era privado, na hora que um terceiro carregador, Lionel Aigilo, morreu devido a seus ferimentos. Um assistente dos expatriados começou a pagar os irmãos de um dos suspeitos. “Para manter os canais abertos”, ele explicou para mim.
A mensagem dos expatriados era clara para mim: em uma cultura na qual a retribuição era o padrão, na qual os suspeitos sob custódia policial muitas vezes “morriam” antes de chegar aos tribunais, o entendimento geral era de que qualquer um que se entregasse ficaria seguro.
O que, em vista do que aconteceu em seguida, era uma oferta excelente. Na mente dos papuanos, não havia dúvidas sobre o que tinha ocorrido: Kerry Rarovu fora assassinado. O grande homem que sempre era chamado para trabalhar com os gringos tinha sido golpeado primeiro e talhado até a morte. Matthew Gibob, que também era da região de Wau, fora o seguinte. Tão óbvio como a origem dos agressores: todo mundo acreditava que era o povo iwal das aldeias de Bitoi, Mubo e Wapali, que há muito sentia inveja do trabalho dado aos povos de cada extremidade da trilha – apesar de seus rostos não terem sido vistos devido às máscaras.
“No dia seguinte, os garotos de Kaisinik saíram para procurar os culpados”, contou Wele. “Foram em dois grupos e procuraram dia e noite.” No mundo ocidental, as pessoas muitas vezes vivem anonimamente longe da família, elétrons flutuando livres de qualquer ligação. Em lugares como a Papua-Nova Guiné, todo mundo está ligado a alguma coisa, e não há onde se esconder. Nas aldeias, todo mundo sabe sobre tudo: quem você é, quem são seus pais, primos, tios e tias, de onde você é, por seu idioma e aparência. E em culturas papuanas a violência recíproca é tudo, sempre foi. No sábado, quatro dias após o ataque, o irmão de Matthew, o segundo carregador a morrer, ficou sabendo de uma família suspeita de ocultar um dos agressores, em Bitoi.
“O irmão e uns parentes de Matthew mataram três”, disse Wele. “Eles chegaram, cortaram, picaram e mataram eles com uma faca-do-mato.” Enquanto Wele contava a história, os homens ao nosso redor balançaram a cabeça, em aprovação. O ato não criou qualquer dilema moral ou ético para eles. Aqui esse tipo de violência era mais do que esperada. Era necessária, e assim o mundo se mantinha em equilíbrio.
Não havia para onde ir ou onde se esconder, e os garotos de Biawen, Kaisinik e Lagui estavam vasculhando os morros, os vales, as aldeias, prontos para queimar e cortar qualquer um que tivesse algo a ver com os ataques. A cadeia era mais segura do que tentar escapar. No domingo, um dia depois de Wele e sua gangue chegarem a Wapali com a patrulha policial, três homens se entregaram – em troca, queriam ser tirados dali de helicóptero. “Caso contrário, os garotos teriam massacrado eles, cortado todos em pedacinhos”, afirmou Wele.
Christy e os oitos clientes insistiram que tinham visto apenas três agressores. Mas, no mês que se seguiu, dez homens foram presos, todos eles se entregando para a polícia, incluindo alguns dos próprios carregadores não feridos, que foram ligados aos três culpados principais por meio de seus registros telefônicos.
O ataque, acabou sendo revelado, foi um serviço interno. Embora a sequência exata dos eventos talvez nunca venha a ser conhecida, e nenhum dos supostos agressores tenha sido levado a julgamento ainda, o quadro básico parece claro. Três irmãos que vivam perto de Bitoi, um deles com o apelido de Rambo, eram criminosos experientes que já haviam passado um tempo na prisão por roubo e assassinato. Eles escaparam da cadeia e, nos morros ao redor de Bitoi e Mubo, ouviram falar da expedição que se aproximava. Sabiam da inveja e do ressentimento de seus companheiros iwal e sabiam sobre o dinheiro que o grupo estaria levando. O roubo e a retribuição coincidiram.
Pela manhã, Ninga me levou de carro de volta a Lae e peguei um voo até a cidade costeira de Madang, onde encontrei Dick Reuben, o carregador-líder ferido no ataque, sentado em um leito de hospital. Uma multidão se aglomerava no terreno ao redor e enchia os corredores. Nos hospitais da Papua-Nova Guiné, os pacientes são responsáveis por grande parte de seu próprio atendimento, então ele estava sendo cuidado 24 horas por dia por um homem chamado Labi, da aldeia de Dick.
Dois meses depois do ataque ainda era difícil olhar para as feridas de Dick. Sua perna esquerda estava curada, mas uma cicatriz de Frankenstein corria pelo tendão de Aquiles. Era uma cena estranha. Depois de uma semana de reportagem, eu sabia de algo que Dick não tinha conhecimento – a polícia suspeitava que Labi, seu “enfermeiro”, era cúmplice no ataque.
Passei algumas horas com Dick e observei enquanto o médico checava seu ferimento. Ele estava melhorando e provavelmente iria para casa em breve. Mas para fazer exatamente o quê? Dick voltaria a andar, porém muito devagar, e nunca mais carregaria uma mochila de 20 quilos. Por isso ele não tinha a menor ideia de como sustentaria seus quatro filhos. Eu comprei para ele algumas sacolas de mantimentos. Depois peguei um voo de volta a Lae, onde subi em um barco lotado, e viajei pelo Golfo de Huon até a aldeia de Dick.
Lagui é um lugar lindo, um istmo estreito de areias brancas entre uma água azul reluzente – silencioso, sem estradas, carros ou motores; somente o som do vento nos coqueiros e a voz de crianças. As casas têm teto de palha de palmeira, iluminadas à noite por lampiões e velas. É uma região muito agradável, cheia de flores parecidas com azaleias roxas, o destino final perfeito após uma caminhada árdua pelas montanhas. Mas, no futuro próximo, não haverá trekkeiros vindo para cá, nenhuma tenda será armada em sua praia.
“Não até que nossas exigências sejam cumpridas”, disse Nick Aigilo, cujo irmão Lionel foi morto no ataque. Eu estava sentado com Aigilo no chão de bambu de sua casa, com um fogo crepitando em uma bancada de lama. Conosco estava um carregador chamado Jeremiah Jack, cujas pernas ostentavam cortes profundos dos agressores. Ele era quieto e tímido, magro, uma sombra de bigode, com um inglês muito ruim. Jeremiah achava que tinha “uns 22 anos”. Agora era um aleijado que mal podia andar. “Essas pernas fizeram tanta coisa”, disse ele. “Locomoviam-se para todos os lados, e por isso eles as cortaram, para que eu não andasse de novo. Não foi só um roubo.”
A Trilha de Black Cat está fechada, e ninguém – nem Wele Koyu em Kaisinik ou qualquer pessoa em Lagui – acredita que será reaberta em um futuro próximo. A região continua tensa. “Os iwal devem pagar pelo que fizeram”, disse Nick Aigilo. “É o que chamamos de bel kol, como dinheiro e porcos, produtos tradicionais. Até que isso aconteça, nossos garotos não querem ver nenhum iwal por perto. Ou nós vamos crucificá-los.” Para todos os moradores do interior da ilha ao longo da trilha, ela continua sendo a única rota para ir de um destino a outro. Em Lagui, dizem que duas pessoas das aldeias do interior já morreram porque não puderam ir à clínica médica localizada na costa.
Eu caminhei pela aldeia silenciosa com Gilan Sakiang, o ancião sábio local. O túmulo de Lionel fica diante do mar, coberto de coloridas flores de plástico. Sua mãe se aproxima, chorando. “Por quê?”, ela pergunta, em inglês. “Por que você veio me lembrar de Lionel?”
A PNG Trekking pagou pelo funeral dos mortos, mas não quer pagar mais nada para os carregadores aleijados, alegando que a lei de compensação de trabalhadores de Papua-Nova Guiné é que deve cuidar deles. Os próprios trekkeiros criaram um fundo para ajudar a pagar as despesas médicas dos carregadores, porém a ideia de refazer a caminhada com uma equipe de TV não foi para frente. O clima está tenso demais.
Nick Bennett prefere ser otimista. “O mundo é um lugar violento e selvagem”, disse. “E um raio nunca cai duas vezes no mesmo lugar, certo?” Christy King não tinha tanta certeza disso quando conversei com ela, em Lae. O acordo original com a TV que os clientes australianos tinham tentado negociar exigia que Christy os acompanhasse em uma caminhada por toda a trilha. O acordo foi cancelado quando ela se recusou a participar. “Eu nunca faria isso de novo”, afirma ela, fumando um cigarro atrás dos muros altos de sua casa, um antigo hábito que ela retomou temporariamente depois do ataque, o único sinal externo de seu sofrimento. “É perigoso demais.”
Christy acrescentou que, durante o incidente, ela ficou muito preocupada de os clientes tentarem fazer alguma coisa – eram todos caras grandes e durões –, mas nenhum quis bancar o herói. “Eles obedeceram e ficaram abaixados, por isso tivemos sorte. Mas a Black Cat, diferentemente da Kokoda, é uma trilha tão remota que não dá para fazê-la sem carregar largas somas em dinheiro para pagar os carregadores e por tudo mais ao longo do caminho.”
Christy ama a Papua-Nova Guiné e sempre amará a ilha. Mas é hora de seus filhos poderem ir à escola e brincarem nas ruas, diz ela. Hora de as crianças terem uma infância normal. Apesar de seu marido ter decidido ficar em Lae, cuidando dos negócios da família, ela e os filhos estão de mudança para a Austrália. Quem sabe um dia ela volte a caminhar pela Black Cat.
(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de setembro de 2014)
(Ilustração Jonathan Bartlett)
Kerry Ravoru, em 2011
Dick Rueben em Lae
“Christy, Christy, nos ajude”, imploraram os carregadores. “Estamos morrendo.”
O carregador Andrew Natau
Christy King horas antes do ataque
A casa de Ninga Yawa, em Kaisink
Christy na Trilha de Black Cat
O australiano Nick Bennett
O túmulo de Lionel Aigilo, em Lagui