Por Vitor Negrete*
É muito difícil falar sobre pessoas que perdem a vida nas montanhas. Penso nos que ficaram, na família, nos amigos. Lembro do filme Sob a areia, sobre uma mulher que não aceita a morte do marido que, numa manhã tranqüila, saiu para nadar no mar e nunca mais voltou. Ver e enterrar o ente querido é muito importante no processo do luto; sem isso, a aceitação da morte fica ainda mais dolorosa e difícil.
Conversando com o escalador, alpinista e fotógrafo Tom Papp, que escalou o Mont Blanc sozinho, ouvi dele uma coisa que me marcou: “Gosto de escalada porque é uma atividade que une um forte espírito de parceria e um profundo individualismo. Cada um define seus desafios e escolhe o nível de pressão que vai impor a si mesmo”. Este é um ponto importante: na escalada em rocha, cada alpinista, com o seu parceiro, escolhe o grau e o tipo de escalada que quer fazer – um 5º, 7º ou 9º grau, por exemplo. Em cada lance o escalador vivencia a adrenalina da sua escolha, enfrenta a dúvida e a possibilidade da queda, sente a necessidade de concentração e do trabalho conjunto da técnica, da força e da cabeça. No alpinismo, da mesma forma, cada um decide como quer escalar, escolhendo a montanha, a via, a rota, se quer escalar sozinho ou com mais parceiros e opta pelo estilo. Uma mesma rota pode ser um passeio para um alpinista e a expedição da vida de um outro. O desafio do alpinismo é mental, está na cabeça de cada um. Defendo veementemente que cada um tem o direito de escolher onde e como quer escalar, e para isso deve se preparar e aceitar os riscos que está correndo.
Escalei a rota direta do glaciar dos polacos, no Aconcágua, em solo, ou seja, sem parceiro, sem cordas, sem rádio. Nunca esquecerei esta escalada. Acordei a uma da madrugada. Enquanto derretia gelo para tomar um chá, preparei minha mochila, completamente sozinho. Saí na madrugada e senti os cristais de neve atingindo a minha viseira. Escutei meu coração batendo forte e vi o glaciar brilhando sob as estrelas. Ouvi o som dos meus crampons (bota com cravos de ferro) perfurando o gelo. Subi, senti medo, tive dúvidas, me arrisquei, cheguei ao cume, voltei para o acampamento, desci da montanha. Me elogiaram, mas se eu tivesse morrido diriam: “ele foi sozinho, não levou rádio, não tinha experiência, ele sempre foi meio louco mesmo”. Me considerariam um irresponsável, negligente.
Muitas coisas podem acontecer durante uma escalada. Alguns riscos podem ser previstos, outros não. As montanhas tiram a vida tanto dos iniciantes quanto dos iniciados e há muitos alpinistas extremamente experientes que jazem sob a neve – o que não quer dizer que a experiência não diminua os riscos. Por esse motivo, qualquer um que deseja se aventurar nas montanhas deve escolher escaladas com dificuldade e risco progressivos, e se capacitar através de cursos e treinamentos para esses desafios.
O empresário curitibano Marcos Luszcynski estava escalando o Mont Blanc, na França, fora da temporada, quando as condições são piores. Mas escalar fora da temporada, por si só, não representa uma loucura. A maioria das montanhas tem escaladas fora de temporada, é só um desafio a mais. Pode ser que Marcos Luszcynki não estivesse preparado, mas provavelmente nunca saberemos. A não ser que encontremos algum relato escrito ou gravado por ele, narrando seus últimos momentos, como aconteceu com Chris McCandless, um jovem americano de uma família rica que terminou a faculdade, mudou de nome e caiu na estrada, sem dar mais notícias aos pais. Dois anos depois, Chris apareceu morto em um lugar ermo e gelado do Alasca, junto a um diário. O jornalista Jon Krakauer, colaborador de longa data da Outside, refez a longa saga de Chris e a contou no livro Natureza Selvagem. Na contracapa, lemos: “Um relato fascinante sobre idealismo, fantasia e também sobre o lado terrível do contato direto com a natureza”.
Krakauer nos sugere que muitas pessoas são atraídas pelas montanhas por idealismo, por uma visão romântica. Minha descrição do glaciar dos Polacos, no começo deste texto, é romântica, assim como o recado deixado por Marcos Luszcynki no último refúgio do Mont Blanc: “Estou vivendo momentos mágicos. Agradeço a Deus”. Assim também são os relatos de McCandless. Mas lugares como a alta montanha e o Alasca são indiferentes ao romantismo e ao idealismo. Eles não foram feitos para os seres humanos, neles é mais fácil morrer do que permanecer vivo. Como Gregory Crouch escreve no seu livro Enduring Patagonia: “As montanhas não tem generosidade ou justiça. Elas permanecem imóveis aos dramas humanos que se desenrolam nos seus flancos, elas dão e tiram com uma vontade que não compreendemos. Nós temos somente a dignidade com a qual combatemos esta indiferença terrível e sem face”.
Encontrei a reflexão mais impressionante, e que também não deixa de ser romântica, sobre como alpinistas de alta montanha se relacionam com a morte no livro Extreme Alpinism, de Mark F. Twight. “É sobre alpinistas fazendo o que amam e espectadores especulando, julgando e talvez proferindo a última palavra. Isto é sobre pessoas e o risco que elas enfrentam. É sobre a obsessão, o vício de ir da forma mais difícil e dura, mais alto e por mais tempo. A morte nas montanhas pode ser tão feia quando uma pedra que cai e surpreende uma pessoa que faz uma trilha. Ou pode ser tão linda quanto sete homens que lutam contra uma tempestade, dia após dia, dando tudo que têm. Mas um por um morre. Lentamente. De frio, exaustão, por ter lutado tanto. Até que somente dois restam. Eu digo que isto é lindo por que a maior luta humana é a luta pela sobrevivência”.
As montanhas são um lugar selvagem. Quando decidimos entrar nestes lugares o único erro que podemos cometer é o de não sabermos quais riscos estamos enfrentando. Para alguns deles estaremos preparados, para outros, não.
*Vitor Negrete, 38 anos, é um dos alpinistas mais experientes do Brasil. Escalou o Aconcágua cinco vezes e outras montanhas casca-grossa nos Andes. Junto com Rodrigo Raineri, foi o primeiro brasileiro a escalar a Face Sul do Aconcágua e chegou ao cume do Everest em junho de 2005.
www.vitornegrete.com.br
(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de janeiro de 2006)