Quente pra burro


O DIA DEPOIS DE AMANHÃ: Se o planeta continuar esquentando, cena como essa será uma realidade

Por Piti Vieira

ENQUANTO OS ESTADOS UNIDOS ENTRAVAM NUM IMPASSE COM A UNIÃO EUROPÉIA — o primeiro se recusa a aceitar as metas de redução de emissões de gases poluentes, ao passo que o segundo é favorável a elas — na 11ª Conferência das Partes (COP) da Convenção do Clima da ONU (que reuniu em novembro do ano passado, no Canadá, representantes de 189 países para decidir o futuro do combate aos gases de efeito estufa depois que o Protocolo de Kyoto expirar em 2012), surgiu novo dado que evidencia a urgência de tentar conter o aquecimento anormal da atmosfera do planeta.

Estudo de um trio de oceanógrafos britânicos da Universidade de Southampton, publicado no renomado periódico científico Nature, aponta a perda de força do sistema de correntes do Atlântico. Esse sistema funciona como uma colossal esteira que transporta água e calor dos trópicos para o pólo Norte através da corrente do Golfo — mecanismo que impede que o noroeste da Europa tenha temperaturas árticas no inverno. O estudo, que afirma que a circulação das águas já está 30% mais fraca do que em 1957, quando os pesquisadores começaram a monitorar a temperatura e a salinidade das correntes atlânticas na zona tropical, é uma confirmação sombria das previsões climáticas.

Se esse movimento se acentuar, a corrente do Golfo pode ser “desligada”, o que reduziria em 4 ºC a temperatura média no noroeste da Europa. Para dar uma idéia do que tal redução significa, basta dizer que isso deixaria cidades como Londres sob temperaturas glaciais, e que na última Era do Gelo, quando uma capa de gelo de dois quilômetros de espessura cobria Nova York, a temperatura global era apenas 10 ºC menor. É exatamente o que foi retratado no filme-catástrofe O Dia Depois de Amanhã, de 2004, em que o aquecimento global provoca o desligamento da corrente oceânica que leva calor à Europa e causa uma era glacial.

MAIS CENAS: Outra cena do filme O Dia Depois de Amanhã

Já faz algum tempo que os climatologistas prevêem que o derretimento de geleiras na Groenlândia e o aumento das chuvas na bacia do mar do Norte, devido ao efeito estufa, provocariam uma redução da salinidade e um aumento da temperatura da água. Como resultado, o afundamento da corrente deixaria de acontecer, desligando a esteira. A equipe de pesquisadores, liderada por Harry L. Bryden, o padrão de mudança visto em várias profundidades respalda a idéia que o deslocamento foi uma tendência significante e não uma variação aleatória.

Os americanos, tidos como vilões do aquecimento global devido à recusa do presidente George W. Bush a ratificar Kyoto, provavelmente sentiram, e sentirão ainda mais nos próximos anos, as conseqüências do efeito estufa. Vários cientistas atribuem a esse fenômeno a temporada especialmente intensa de furacões no Atlântico tropical, que produziu catástrofes como a destruição de Nova Orleans.

A agência ambiental da União Européia divulgou recentemente um estudo demonstrando que, enquanto a Terra esquentou em média 0,7 ºC ao longo do século 20, em 32 nações européias esse aumento foi de 0,95 ºC. Isso ocasionou, só em 2003, o derretimento de 10% das geleiras dos Alpes europeus. A divulgação do relatório coincide com o esforço da União Européia para convencer os EUA e grandes emissores do Terceiro Mundo, como Brasil, China e Índia — dispensados de reduzir emissões por Kyoto — a adotarem metas de redução de gases de efeito estufa durante a COP-11. Especialistas avaliam que será uma tarefa difícil de cumprir. Primeiro, porque vários países aumentaram suas emissões de gases-estufa. O mundo subdesenvolvido aumentou suas emissões em 9,2%. Só no Canadá, esse aumento foi de 57,5% até 2003.

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de janeiro de 2006)