Ironman alpino


CASCALHO: Grande parte dos 37 km de corrida da Coast to Coast é feita em leitos de rio, como esse
(Foto: Lion Nathan / Getty Images)

Aventureiros polinésios – os maoris – já corriam, escalavam e remavam nessas montanhas há 200 anos, mas foi somente 25 anos atrás que um ocidental buscou (e encontrou) nas cristas da ilha sul uma rota que as cruzasse latitudinalmente. Desde então, essa travessia é o percurso de uma das provas multiesportivas mais cruéis, disputadas e importantes do planeta: Coast to Coast, a mãe das corridas de aventura.

A 24a edição da prova foi disputada dias 11 e 12 de fevereiro e, como sempre, teve duas categorias principais: um dia (um atleta fazendo todo o percurso sozinho, sem paradas) ou dois dias (individual ou em equipes de revezamento de duas pessoas, com uma noite de sono entre as etapas). Para ambas, o mesmo percurso: 140 km de pedal em estrada (divididos em três etapas), 36 km de corrida (com uma etapa decisiva de 36 km em montanha, cruzando os alpes) e 67 km de caiaque num rio classe 2.

Este ano, na categoria mais casca grossa, a individual, 146 atletas da 3º geração de aventureiros kiwis e 31 atletas internacionais – entre eles dois brasileiros pioneiros, o brasiliense Guilherme Pahl e a paulista Silvia Guimarães, a Shubi – largaram para essa longa jornada de 243 km cruzando a ilha sul da Nova Zelândia, neozelandês, do mar da Tasmânia ao oceano Pacífico. A seguir, os relatos de Guilherme e Shubi, corredores de aventura de destaque no Brasil que foram buscar experiência, superação e adrenalina no berço da aventura.

RELATOS

Nome: Silvia Guimarães

Idade: 30 anos

capitã da equipe Atenah e instrutora outdoor

Passei os últimos três meses na Nova Zelândia, treinando com os melhores atletas de aventura daqui. Tudo por dois objetivos: melhorar como atleta e competir no Coast to Coast. Não à toa, a categoria solo dela é chamada de “Multisport World Championship”, ou Campeonato Mundial de Multiesportes. É uma prova altamente técnica, com uma corrida de montanha sem trilhas e sem mapa e uma canoagem em rio classe 2, num caiaque veloz e instável.

No dia 11 de fevereiro, em Kumara, uma cidade praiana na costa oeste, largamos de bike antes do sol dar sinal de vida. No meio da escuridão, alguém fez a contagem regressiva e a sirene botou 180 loucos para correr num ritmo insano, mesmo na subida.

Eu não agüentaria aquele pique. Diminuí o ritmo e vi várias pessoas me passarando nos 3 km mais longos do mundo. Treze minutos depois, com o coração na boca, subi na bike e procurei alguém para andar colada, já que no primeiro pedal é permitido o vácuo. Logo estávamos em 30 pessoas num pelotão, o que deixa o pedal mais fácil, mas também mais perigoso: garoando, 30 bicicletas a mais de 30 km/h numa estradinha cheia de curvas e morrinhos. Vi dois acidentes, um deles de uma menina que bateu na minha roda de trás e se espatifou no chão.

Chegamos 10 minutos atrás do primeiro pelotão. Larguei a bike, peguei a mochila e saí pra parte mais difícil da prova, o corridão das montanhas. Os primeiros 3km são em pastos, mas eu corria com as pernas pesadas. Logo cheguei no rio Deception, cujo leito cheio de pedras me guiaria até o Goat Pass, a passagem para o outro lado dos alpes. Descemos pelo vale do rio Mingha até chegar no rio Bealey, por onde corremos mais 4 km sobre pedras – e não é cascalho não, são maçãs, mangas, melões e melancias de pedra.

Eu já imaginava que esse seria o meu trecho mais difícil, e dito e feito. Mas fiz um tempo melhor do que em todos os treinos, 4h40m.

Cheguei na transição e o Ian, meu apoio e amigo neozelandês, me entregou a bike, pegou minha mochila e tchau Shubi – 16km até a canoagem. Eu deveria comer bastante na bike, mas não consegui. Me hidratei bem e tentei manter o coração dentro da boca e as pernas girando. Meia hora depois, mais uma transição rápida: remo, colete salva-vidas, saia do caiaque, capacete, e tchau de novo.

Finalmente eu estava sentada, sem precisar usar as pernas por um bom tempo, já que adiante haviam 67km de rio com corredeiras. Eu estava confiante: remo é a modalidade de que mais gosto e treinei num caiaque mais difícil do que o que usaria na prova. Comecei a remar devagar, respirando fundo para recuperar o fôlego e me acostumar com o barco. Em uma corredeira no meio de uma garganta, me desconcentrei e acabei virando. Perdi totalmente a confiança, não consegui mais acompanhar as correntes fortes do rio e fugia de todas corredeiras.

Virei de novo – e ainda faltava metade do rio. Terminei o remo em pouco menos de 5hs, meia hora a mais do tinha feito nos treinos. Na última transição, meu super apoio me esperava com um milk shake de chocolate – uma delícia dos deuses, depois de tanta bebida isotônica e gel de carboidrato diluído em água.

De novo na magrela para os últimos 70km de asfalto, com vento contra, para chegar na praia de Sumner, na costa leste. Fechei o trecho em 2h18m e completei os 243km de prova em 14h42m, em 14º entre as XX mulheres. Depois da longa viagem atravessando a ilha, apertei as mãos do Robin Judkins, organizador da prova, e abracei todos os amigos que me esperavam na chegada. O dia foi duro, mas aprendi muito e já sei o que fazer diferente no próximo ano. Sim, vou voltar – mais preparada e trazendo mais brasileiros junto comigo.

Nome: Guilherme Pahl

Idade: 25 anos

corredor de aventura e estudante de educação física

O despertador tocou. Está escuro. Lá fora chove. Rolei na cama a noite inteira, ou melhor, metade da noite, porque ainda são quatro e meia da madrugada.

Como a estrada está bloqueada, temos que ir pedalando até a primeira área de transição, deixar a bike e caminhar até a largada, a 3 km dali. Nos lançamos na escuridão – dez minutos pedalando, olhando para dentro de mim mesmo. Chegamos na largada e só distinguíamos alguns vultos. Um deles gritou: três minutos pra largar! Tempo apenas de tocar o mar da Tasmânia pra ter certeza que atravessaríamos mesmo toda ilha sul da Nova Zelândia.

FOOOOOM! “Mas ainda tá de noite, galera! Pra que essa pressa toda?!”, pensei? Apenas no primeiro trecho de ciclismo é permitido vácuo, então todos se apressam nos primeiros 3 km de corrida pra pegar a bike junto com o primeiro pelotão. Tudo bem: aprendi com um parceiro de corrida de aventura a ser campeão de largada e “pelo menos aparecer na foto”.

O pelotão da bike já estava formado e o sol não tinha saído. Aliás, chovia e eu só veria o sol do outro lado dos alpes. Pouco menos de 60 km de pedal num terreno com poucas ondulações, todos se poupando pra corrida de montanha mais difícil que eu já fiz na vida. Saí da transição em 5o, correndo o mais que eu podia no único trecho plano de grama. Com 11 minutos de corrida, descemos e fizemos a primeira das 12 travessias de rio e subimos por um vale, correndo sobre as pedras. No começo era uma subida gradual sobre seixos do tamanho de bolas de futebol, que foram ficando cada vez maiores e nos obrigavam a pular de boulder em boulder até literalmente estarmos escalando as cachoeiras. Chuva, lama, lodo e limo.

Eu ia tão rápido que não conseguia parar de pé. Pior que isso: eu estava babando, muito além do meu limiar. Quando cheguei nos boulderes meu esforço era tão grande que eu não sabia onde estava nem para qual lado do rio devia ir. “Preciso me recompor. Ainda tenho um longo dia”. Foi só pensar nisso e levantar a perna um pouco mais pra superar uma pedra que senti uma fisgada na parte de trás da coxa. Caminhei na próxima travessia do rio para aproveitar a água gelada nas coxas, mas de pouco adiantou. A partir daí, começou o sofrimento. Câimbras me impediam de continuar correndo e a todo momento eu tinha que parar e me alongar. E não conseguia reagir às ultrapassagens, nem quando a primeira garota me passou despencando no downhill.

Felizmente a descida do outro lado dos alpes tinha uma trilha em seus primeiros dois terços. Não que fosse mais fácil, porque era só raiz e buraco, mas pelo menos a aterrissagem era mais macia. E pra terminar de moer a carne das pernas, voltamos pro leito do rio pra mais 4 km nas pedras.

Cheguei no AT3 naquele estado letárgico em que só se ouve o eco das vozes, tentando ficar feliz por ter acabado a corrida. Só pensava em como entraria num caiaque com tanta dor nas pernas. Mas felizmente havia um pedal de 15 km entre a corrida e o começo do remo – tudo que eu precisava pra comer e me renovar. A chuva parou e no começo do caiaque me senti bem de novo, depois de aceitar que minhas pernas iriam arrebentar de câimbras dentro do cockpit e não havia nada que eu pudesse fazer além de respirar fundo e rezar.

Fiz oito ultrapassagens e voltei à disputa. Mesmo com a chuva, o nível da água estava baixo, o que significa que acima da garganta o rio estaria mais difícil, com canais rasos, mas que a tão temida garganta seria tranqüila. Realmente, a parte alta do rio me pareceu mais difícil, com as pedras aflorando na superfície da água. Mas sai ileso e, bem ou mal, estava indo em velocidade máxima pra costa leste.

Antes de se afunilar na garganta, o rio Waimakiriri recebe as águas de outro grande rio e este estava completamente inundado, com águas marrons e turbulentas. Isso deixou tudo mais difícil. Depois de duas horas e meia negociando com as pedras, ondas, refluxos e bolhas do rio, me vi de cabeça pra baixo, tentando manter meu quadril no assento, posicionar meu remo, proteger meu ombro das pedras e sair dali antes de perder o fôlego. Não consegui. Me desesperei e nadei. Perdi muito tempo e, pior, perdi minha confiança, o que me fez mergulhar mais duas vezes até o fim desse trecho – um lapso aquático.

Ainda bem que me senti confortável pros últimos 70km de pedal no plano. Fácil, pra quem tem memória curta. E aí veio a recompensa: mergulhar no Oceano Pacifico, 13horas depois, com a 35a colocação na minha categoria (44a no geral) na prova mais tradicional do berço da aventura.

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de março de 2006)