Por Mário Roma*
Fotos por Andréa Faidiga
O que você acha de levar sua bike e um rolo de bicicleta para a sauna e fazer uns treinos? Talvez seja essa a melhor maneira de se preparar para enfrentar os 400 quilômetros da competição de mountain-bike do Rally Cerapió, maior prova de regularidade do nordeste brasileiro, que reúne as categorias carro 4×2 e 4×4, quadriciclo, moto e bicicleta. Realizada em cinco etapas, em dias diferentes e consecutivos, a prova passa por rodovias, estradas de terra, trilhas e picadas percorrendo quatro estados: Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba e Piauí. No ano em que sai do Ceará em direção ao Piauí, é chamada de Cerapió. No ano seguinte, o percurso é inverso e recebe o título de Piocerá. Por casualidade, o Cerapió sempre acontece nos anos pares e o Piocerá nos ímpares.
Saí de São Paulo com muitas dúvidas e receios, pois, por mais experiência que tenha adquirido em provas longas de mountain bike, cada ultramaratona é como se fosse a primeira. No dia 24 de janeiro, às 8 horas, foi dada a largada da primeira etapa de bike, que partia de Aquiraz e tinha como destino final Beberibe, ambas no Ceará. O trecho de 67 quilômetros, a maior parte de asfalto com algumas saídas de terra e areia, foi dificultado pelos fortes ventos que sopravam em sentido contrário, fazendo com que muitos dos 93 ciclistas inscritos se unissem em pelotão para se revezar e vencer a ventania do litoral cearense. As provas do Cerapió são contra o relógio – cada etapa tem um tempo limite para ser concluída. Esta primeira tinha que ser completada em até cinco horas.
Após um delicioso almoço para repor as calorias perdidas, partimos para nosso primeiro deslocamento. Os deslocamentos são uma dificuldade extra na prova, que une pedal e rali. Como as bikes não percorrem as mesmas distâncias das motos e carros, tínhamos de nos deslocar, em média, 150 quilômetros todos os dias para chegar à próxima largada. No nordeste, isso significa de três a quatro horas de viagem de carro, sacolejando por estradas que passam por aldeias e cidades.
Do caos à lama
Chegamos a Martins, no Rio Grande do Norte, para a segunda etapa da competição. Considerada a Campos do Jordão do estado, a cidade está localizada numa região serrana, a 760 metros do nível do mar. Novamente às 8 horas, logo após o briefing, largamos da frente da igreja matriz. A previsão era de um dia típico de mountain-bike: trilhas sinuosas com muitas depressões, terrenos com erosões, pedras soltas pelo chão, muita poeira e um visual maravilhoso – tudo percorrido em até 5 horas. Pouco mais de um quilômetro depois da largada, encaramos um downhill de 13 quilômetros. Ao chegarmos à base, pude sentir o drama de pedalar sem vento no nordeste. O calor de 40 graus fazia o cérebro fritar. Vários pontos de água estavam localizados na planilha de navegação, mas a essa temperatura tudo fervia. Resolvi optar pelo abastecimento nas casas dos vilarejos e assim continuei até Teresina, na etapa final, parando de varanda em varanda, recebendo dos simpáticos moradores água gelada em canecas de alumínio.
A organização nos reservou a volta pelo asfalto, uma subida dura e muito quente de 10 quilômetros, totalizando os 49 quilômetros dessa segunda etapa. O gosto típico de nordeste estava na linha de chegada, onde nos esperavam uma banda local e uma enorme mesa de frutas e sucos naturais gelados que faziam qualquer mortal se recuperar rapidinho.
Mas nada de descanso. Saímos para uma viagem de 145 quilômetros em direção à Estância Termal Brejo das Freiras, situada no município de São João do Rio do Peixe, a 70 quilômetros de Sousa, na Paraíba – uma miragem em pleno semi-árido nordestino. Como não é só de poeira que vivem os aventureiros, tivemos umas poucas horas de sol para aproveitar este pequeno oásis e repor as energias. As águas das cinco fontes termais da Estância estão entre as melhores do Brasil e sua lama é indicada para tratamentos de pele e beleza.
Dinossauros e bodes
Na manhã seguinte, começou a terceira etapa – 79 quilômetros em 6 horas – até Cajazeiras, também na Paraíba, que teve a beleza da caatinga misturada a trechos verdes e secos, com muita pedra pelo chão. Largamos do Vale dos Dinossauros, onde existem 53 pegadas dos imensos répteis que viveram a milhões de anos na região. Aquilo ficou em minha mente por grande parte da prova – como era possível estarem ali, ao nosso lado, pegadas de algo tão fantástico que só vemos em filmes de ficção? A última parte da trilha era a mais difícil: as pedras tomaram conta do chão e isso, associado ao calor forte, fez com que alguns pilotos abandonassem a prova. Era o percurso mais longo feito até então e, mesmo com os pontos de água disponibilizados pela organização, era visível o cansaço dos competidores na chegada.
A penúltima etapa aconteceu no sertão cearense, com largada às 8 horas em frente à igreja do Rosário, em Barbalha, a 15 quilômetros de Juazeiro do Norte. Foi a melhor trilha da prova. Atravessamos a floresta nacional do Araripe, na Chapada do Araripe, a primeira floresta do Brasil a ser preservada, em 1946. Essa etapa foi a mais longa do Cerapió, com um circuito de 84 quilômetros, e a que teve o maior número de competidores que não conseguiram chegar ao fim no tempo máximo de 6 horas. Além de ter um visual épico, com um single track de 12 quilômetros na sombra, em mata fechada, a etapa também foi a mais difícil, com muitas subidas e descidas íngremes e cheias de pedras.
No início havia vários trechos de areial, mas a maior dificuldade foi a subida da floresta. Tive o pneu furado cinco vezes e um dos líderes da categoria Elite teve seis furos. Só não teve o pneu furado quem estava utilizando o Mister Tuff nordestino, um produto 100% nacional que foi batizado de “Mister Bode”: uma cinta de couro de bode seco, vendida a cinco reais o par, com melhor desempenho que o importado. Depois de tantos furos, emoções e adrenalina, encaramos mais 550 quilômetros em oito horas de deslocamento até Teresina.
Quatro estações
Chegamos à capital piauense por volta das 23 horas e a largada foi marcada para as 10 horas, devido ao longo deslocamento que todos os atletas tiveram de fazer. O diretor do Cerapió, Ehrlich Cordão, já havia dito que Teresina tinha quatro climas bem definidos: “verão, calor, quentura e mormaço”. Às 10 horas meu relógio marcava 39 ºC; a média de temperatura durante a prova foi de 40 ºC, com picos de 44 ºC! Dá para imaginar socar a bota nessas temperaturas? Tive a clara sensação de que ia derreter. Parei duas vezes na casa de moradores locais para virar uma água gelada em minha cabeça. Ao cruzarmos um rio, diversos pilotos mergulharam para se refrescar.
Foi uma prova rápida, com 50 quilômetros e três horas de tempo máximo. Ao cruzarmos a linha de chegada, todos se cumprimentaram. Éramos 93 atletas que haviam partilhado da mesma aventura por cinco dias, vencendo um só desafio. A atmosfera era extremamente agradável, com trocas de camisetas, fotos, abraços e endereços eletrônicos.
Enquanto tomava uma ducha numa mangueira, me questionava porque já havia corrido em tantos lugares distantes como Europa, África e ainda não tinha participado desse desafio tão grande e bem organizado, nesse Brasil que tanto aprecio. Visuais inéditos, um povo hospitaleiro vibrando a cada pedalada que dávamos… Já estou com curiosidade de conhecer o outro lado do Cerapió, o Piocerá.
Dicas Go Piocerá
– Evite viajar à noite nos deslocamentos. As estradas estão sempre em obras.
– Você vai precisar de apoio para os deslocamentos. A organização fornece pacotes com essas opções ou então você pode contatar grupos que fretam ônibus.
– A culinária do nordeste é maravilhosa, não deixe de experimentá-la. Mas faça isso quando a prova terminar, pois os temperos são fortes.
– No mapa da prova, se houver trechos com probabilidade de furos, prepare-se e leve câmaras de sobra.
– Não confunda: mandioca, macaxeira e aipim são a mesma coisa.
– Hidrate-se e não esqueça o filtro solar com proteção 30 ou 40.
– Leve pouca roupa.
*O português Mario Roma escreveu a matéria “Safári de Bicicleta” na edição número 1 da Go Outside e ficou em terceiro lugar na categoria Over 40 do Cerapió
(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de março de 2006)
FORNO: Falésias de Canoa Quebrada
FESTA: Criançada local festeja a passagem dos competidores
NA PRÓPRIA PELE: O autor, Mário Roma, enfrenta o calor do sertão
PLENO SERTÃO: Uma pegada de dinossauro
MAIS UM TRECHO: Sol, suor e poeira