CARREGAMENTO: Uma das equipes tenta transpor uma das inúmeras cachoeiras da região
Por Enrico Bernard*
Gigantesco e colossal. Estes são adjetivos que se encaixam perfeitamente quando o assunto em questão é o Parque Nacional Montanhas do Tumucumaque, no Estado do Amapá, na porção norte da Amazônia brasileira. Localizado em uma das áreas mais bem preservadas da Bacia Amazônica, sua área se estende por cerca de 3.867.000 hectares, fazendo fronteira com o Suriname e a Guiana Francesa. Seu tamanho é difícil de assimilar. Basta dizer que se alguém quisesse caminhar entre seus pontos mais extremos, percorreria aproximadamente 220 quilômetros de norte a sul ou 250 quilômetros de leste a oeste. Caso esse bravo andarilho quisesse ainda percorrer todo o perímetro do parque deveria se preparar para cruzar nada menos do que 1.750 quilômetros de florestas. São estes números que fazem do Tumucumaque o maior parque de florestas tropicais contínuas do planeta.
Administrar uma unidade de conservação desse tamanho em plena Amazônia não é tarefa fácil. Conhecê-la e estudá-la razoavelmente é ainda mais desafiador. O que à primeira vista parece um tapete verde uniforme de florestas tropicais é na verdade um mosaico de vários tipos de vegetação, de rios de tamanhos variados, de diferentes solos e formações rochosas. Então, por onde começar? Essa foi a pergunta que eu e um grupo de jovens pesquisadores nos fizemos quando iniciamos um grande projeto de expedições de inventários biológicos dentro do Corredor de Biodiversidade do Amapá – desenvolvido pela ONG Conservação Internacional, o Instituto de Pesquisas Científicas e Tecnológicas do Amapá, o IBAMA Amapá e a Secretaria Estadual de Meio Ambiente, e coordenado por mim. Deveríamos fornecer dados básicos sobre a diversidade de aves, répteis, anfíbios, mamíferos, peixes, crustáceos e plantas para a elaboração dos planos de manejo do Tumucumaque e de duas outras unidades de conservação no Amapá, a reserva de desenvolvimento sustentável do Rio Iratapuru (880.000 hectares) e a floresta nacional do Amapá (412.000 hectares).
Diante do tamanho do Tumucumaque, adotamos uma estratégia de amostrar parcelas que representem os ambientes mais significativos do parque. Usando imagens de satélite, identificamos os principais tipos de vegetação e escolhemos pontos para serem estudados. Descrevendo assim parece fácil, mas chegar a campo é uma tarefa bem mais complexa. Imagine que você tem que deslocar um grupo de cerca de 30 pessoas, desde pesquisadores até cozinheiros, para-médicos e auxiliares, com todos os equipamentos, carga e comida para passar cerca de 20 dias em locais distantes, alguns nunca antes visitados pelo homem. Estradas são uma exceção e nenhuma adentra o parque. O acesso é somente por rios ou helicópteros. Manter a carga no menor peso e volume possível passa a ser seu mantra. O esforço físico é rotina e o conforto fica longe, na cidade.
Como um ingrediente a mais de aventura, diferentemente de outros rios da Amazônia que são plenamente navegáveis, todos os rios que cortam o parque são encachoeirados, o que faz com que a acessibilidade e a segurança da equipe passem a ser também fatores limitantes, principalmente na época de águas baixas. Adicione a essa difícil equação, um orçamento enxuto, um cronograma apertado, imprevistos dos mais variados tipos, necessidades especiais para a amostragem de determinados animais, a convivência e administração de personalidades e vaidades diferentes, e você verá o tamanho da encrenca em que estava me metendo.
ATÉ AGORA, QUATRO EXPEDIÇÕES já foram feitas ao Tumucumaque. Na terceira delas, em setembro de 2005, o local escolhido foi o rio Anotaie, um afluente do Oiapoque, que marca a divisa entre o Brasil e a Guiana Francesa. Nos dividimos em dois grupos, sendo que o primeiro subiu direto o rio Oiapoque e entrou no Anotaie, em direção ao local que seria estudado. O segundo, composto por mim, pelo chefe do parque, sua equipe de fiscalização e mais duas equipes de TV, uma brasileira e outra alemã, foi primeiro até Vila Brasil, uma pequena comunidade 100 quilômetros rio acima. O combinado era que após três dias em Vila Brasil nós nos encontraríamos no rio Anotaie.
A subida pelo rio Oiapoque, em longas canoas de madeira ou alumínio, foi relativamente tranqüila, apesar da necessidade de transposição de algumas cachoeiras. Os pilotos têm uma longa experiência neste rio, pois seus barcos são freqüentemente usados para fornecer suprimentos aos diversos garimpos de ouro que existem ao longo da fronteira com a Guiana Francesa. Numa ilha no meio do rio Oiapoque, conhecida como Ilha Bela, conhecemos um brasileiro chamado Cleiston, que de lá, por um sistema de rádio-comunicação, coordena o transporte de gasolina e o abastecimento de pelo menos dois garimpos na Guiana Francesa. A localização de seu “escritório” é estratégica: ninguém sabe ao certo se a ilha onde ele está pertence ao Brasil ou a Guiana Francesa, uma vez que a fronteira destes dois países não é claramente demarcada, fato que inibe a atuação das polícias locais com receio de um incidente internacional. Ilha Bela também funciona como um pequeno supermercado, só que todos os preços são cobrados em gramas de ouro – e bem cobrados. Uma garrafa de Coca-Cola custa cinco vezes mais que em outros lugares do país e um litro de gasolina custa quatro vezes o preço das bombas na capital do Amapá. Em conversas com Cleiston, nossa equipe confirmou que os garimpos estão do lado francês e que até o momento nenhum estava ativo na margem brasileira do Oiapoque e, portanto, dentro do parque.
LAGARTO: Um dos moradores do Parque Nacional de Montanhas do Tumucumaque
Uma hora de barco acima de Ilha Bela encontra-se Vila Brasil. Fundada há cerca de 20 anos, bem antes da criação do parque, em 2002, esta pequena comunidade conta com cerca de 200 moradores que vivem basicamente do comércio. Mas comerciar com quem? É isso que torna este local peculiar. Vila Brasil está defronte a Camopi, na outra margem do rio Oiapoque, já na Guiana Francesa. Em Campoi vivem cerca de 300 “cidadãos franceses”, na sua maioria índios da etnia Wajãpi. Como cidadãos franceses, eles desfrutam dos mesmos direitos de um morador de Paris e recebem um auxílio-desemprego, ajuda de custo para mães-solteiras, além de auxílio-educação para as crianças freqüentarem a escola. Tudo pago em euros, moeda corrente na Guiana Francesa. Somando todos os benefícios, uma família com quatro filhos pode receber no final do mês cerca de 3.000 euros. E são estes euros de Camopi que movimentam a economia de Vila Brasil. Os preços são todos na moeda européia e os comerciantes locais praticamente não aceitam o Real.
DEIXAMOS VILA BRASIL e descemos novamente o Oiapoque em direção à sua confluência com o Anotaie, rumo ao encontro com a outra equipe. Ao entrar nele, já dentro do parque, suas águas escuras indicavam que este era um rio livre de garimpos. Por telefone via satélite, falamos com a outra equipe e fomos informados que a subida seria bastante trabalhosa, pois teríamos que cruzar uma série de cachoeiras. Eles mesmos não haviam atingido o ponto escolhido anteriormente, tendo que montar acampamento antes do previsto. Cachoeira após cachoeira, fomos progredindo lentamente, num ritmo menor do que esperávamos. Foi um alívio quando, em nosso segundo dia de subida, a tela do GPS piscou avisando que havíamos chegado ao nosso destino. Após cruzarmos 14 cachoeiras, encontramos o acampamento.
Assim como nas expedições anteriores, aos poucos o Tumucumaque exibia a sua exuberância: diversos tons de azul, vermelho, púrpura, amarelo, verde, branco, laranja e preto estampavam as patas, caudas, dedos, papos, olhos, pêlos e penas dos bichos. Eram sapos, lagartos, pássaros, peixes, pequenos roedores e morcegos que compunham esta pequena amostra da diversidade deste pedaço de floresta. As duas primeiras expedições ao parque registraram 234 espécies de aves, 41 espécies de sapos e pererecas, 31 de lagartos, 26 serpentes, 140 espécies de peixes, 11 de crustáceos, 47 de mamíferos não voadores e 41 de morcegos. Os dados da terceira e quarta expedição estão sendo analisados, mas já sabemos que mais espécies serão adicionadas a estas listas.
Em novembro de 2005, o IBAMA inaugurou na cidade de Serra do Navio a primeira base operacional do Tumucumaque, doada pela Conservação Internacional. Todas as informações obtidas através dos levantamentos feitos pelas expedições, bem como recomendações conservacionistas feitas pelos pesquisadores, estão sendo usados pelo IBAMA na elaboração do Plano de Manejo do Parque, que deverá ser concluído até o final de 2006. A equipe do parque espera que ele esteja apto a receber visitantes a partir do começo de 2007. O IBAMA estuda ainda a reabertura de uma pista de pouso em Vila Brasil, o que aumentaria a capacidade de fiscalização no local. Espera-se que com esta medida a atividade garimpeira do lado brasileiro seja impedida. Do lado francês, existem estudos para a criação de um parque nacional ao longo da fronteira com o Brasil que, assim como o Tumucumaque, garantiria a preservação de um grande bloco de florestas. Entretanto, infelizmente, a situação dos garimpos nos rios Camopi e Siquini, na Guiana Francesa, ainda é incerta.
* Enrico Bernard, 31 anos, é biólogo PhD e gerente do Programa Amazônia da Conservação Internacional, sediado em Belém, Pará.
(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de abril de 2006)
RIO ANOTAIE: As águas baixas expõem a vegetação ao longo das diversas corredeiras no rio
PÁSSARO: Ave registrada pela equipe de inventários no Parque
SEPARADAS PELO RIO OIAPOQUE: Vila Brasil, em território brasileiro, vista a partir de Camopi, na Guiana Francesa