Pedras preciosas


BICHANO: Calango bastante comum na região, batizado de bate-xó

Texto e fotos por Alexandre Cappi

Nos últimos cinco anos, os sonhos de conquista na Chapada Diamantina, encruada no sertão baiano, tiveram uma ambição diferente daquela que levou para lá milhares de garimpeiros no século passado e milhões de eco-turistas nas últimas décadas. Escaladores de várias partes do Brasil se uniram para abrir diversas vias no entorno do parque, dando às pedras da região um outro conceito de preciosidade. Ali, a cerca de 450 km de Salvador, os escaladores encaram paredões rochosos de todos os grau de dificuldade, no meio de campos rupestres, campos gerais, cerrado, matas e capões, subindo pelos tetos das antigas tocas dos garimpeiros de uma maneira que esses trabalhadores jamais sonharam. Ao descer das alturas, entregam-se a cachoeiras cristalinas, dignas de capa de revista.

A escalada na Chapada Diamantina vem ganhando força nos últimos anos e já é considerada uma das melhores opções no nordeste brasileiro. Em contradição às regiões Sul/Sudeste, onde a temporada de montanhismo acontece de maio até novembro, na Bahia a escalada nunca pára. Além das vias esportivas “comuns”, a Chapada é um dos raros lugares do mundo que possibilita a prática de uma modalidade de escalada nova e ainda pouco conhecida: o psicobloc, que consiste em escalar paredões negativos e, ao se soltar da rocha, cair nas profundezas de um poço, sem o auxílio de cordas ou colchões.

No meio de todo o patrimônio histórico e cultural presente na região, existe um grupo de escaladores bastante ativos e uma agência, a Fora da Trilha, do escalador Henrique Corrêa, que possui um mini-ginásio de escalada e leva grupos para as rochas diamantinas. Gironha, como Henrique é conhecido, é um dos pioneiros da escalada em Lençóis. Para aproveitar esse parque de diversões natural, montei uma expedição de escalada. Convocados os companheiros de viagem – os escaladores Matheus Vieira, 28 anos, e Florisvaldo Junior, 40, um dos responsáveis pela abertura de várias vias na região –, partimos de São Paulo na madrugada do último Natal. Depois de 25 horas e 1.800 quilômetros de volante, chegamos ao Circuito do Diamante, que abrange as cidades de Lençóis, Andaraí, Mucugê e Palmeiras. Calçamos os chinelos e subimos o rio Serrano em direção ao paraíso dos escaladores diamantinos: o setor Primavera, a uma hora de Lençóis. Pelo caminho, uma infinidade de blocos de pedra perfeitos para a prática de bouldering, além de tetos e mais tetos coloridos de agarras “machuquentas”, como diz Gironha. Ou seja, nem a chuva, tão comum ali, poderia atrapalhar meu reencontro com a imponência da Chapada. Era sensacional estar ali de novo, desta vez munido apenas de sapatilha, chinelo, corda e cadeirinha.


BOULDER COM MERGULHO: O setor Primavera, um verdadeiro oásis localizado no meio de 40 vias de escalada e dezenas de blocos de pedras

A MAIORIA DAS VIAS DE LENÇÓIS É TÃO NEGATIVA QUE ALGUMAS CHEGAM À INCLINAÇÃO DE ATÉ 45o. Além de exigirem muita resistência física, sua complexa leitura acaba confundindo o escalador desacostumado. São buracos, seixos, fendas e agarras de todos os formatos, que produzem um mosaico da adivinhação. A rocha desta região é o conglomerado, que ao contrário do quartzito, machuca bastante as mãos devido a sua deformidade. Em geral, são seixos agrupados por uma espécie de cimento muito resistente, e tão difíceis de perfurar quanto o granito e o sílex.

Já existem mais de 40 vias abertas, de todos os graus de dificuldade, no setor Primavera. Na base da via Boca de Escopeta, de grau 7 B (num sistema de graduação que vai do 3 ao 11, sendo que a partir do grau 6 existem ainda as nomenclaturas A, B e C, progressivamente mais difíceis), Gironha olhou para o imenso bloco de conglomerado e perguntou-me, ironizando o paredão negativo: “Com ou sem sapatilha?”. Mal saquei a câmera e ele já havia escalado descalço os 25 metros da impressionante via. Visto de baixo, o contorno da rocha sugeria o exato formato de um diamante cravado no mirante do vale repleto de piscinas naturais. O mosaico rochoso, o grau do negativo, o cenário e o escalador, tudo ali beirava o absurdo.

Gironha é daqueles guias que só calça botas quando sai para o mato com a brigada de incêndios de Lençóis para lutar contra algum fogo que esteja destruindo a região. Seu calcanhar é tão rachado que quase não sente mais dores ao escalar sem sapatilhas. Completamente apaixonado pelo esporte, ele resolveu há alguns anos aprimorar suas técnicas de escalada e decidiu viver no mato, quase como um eremita. Querendo distância do mundo material, Gironha passou três meses dormindo numa toca de garimpeiro abandonada, contemplando a natureza e dividindo suas frutas com os bichos da floresta. Sua solidão só era quebrada pelos encontros diários com o amigo escalador Gregório e o garimpeiro Zé Rochinho, vizinho de toca.

Todo dia, em jejum, Gironha cumpria um ritual, apelidado de “dever de casa”. Aquecia-se escalando a Boca de Escopeta e em seguida mais três vias de 6º grau: Ametista, Esmeralda e Diamante – todas em seqüência, sem tirar a corda da cadeirinha. Dever matutino cumprido, o escalador almoçava na toca e, mais tarde, mandava as mesmas vias como dever vespertino.

O vermelho do quartzito que encontramos no dia seguinte nas proximidades da ex-toca de Gironha dava o tom perfeito às formas arredondadas da parede. Já os nomes das vias revelavam a pedreira que vinha pela frente: Tocaia e Emboscada, ambas de 8º grau, duas das mais fortes opções do setor da Primavera. A parte final da Emboscada reserva um espetacular bote camicase na saída de um teto, o que garante boas “vacas” para os voadores e altas fotos para os espectadores. Além das cores e formas, as vias do circuito do diamante oferecem um outro atributo: o som. Cada complexo de rochas possui sua própria trilha sonora e o barulho das águas atirando-se das cachoeiras transforma-se num mantra hipnótico para o corpo suado. Infelizmente, a hipnose tem seu preço: no verão, com as chuvas freqüentes e o grande volume de água, a maioria das vias que ficam rentes às cachoeiras ficam molhadas, o que nos impediu de escalar paredes cinematográficas como a da Cachoeira da Primavera.


DESPENCANDO: O escalador Júnior encara o psicobloc no poço do Diabo

PARA ONDE QUER QUE EU OLHASSE, HAVIA UMA PEDRA ESCALÁVEL. As melhores vias estavam entre montanhas e paredões, claro, mas até no centro de Lençóis a escalada outdoor está presente. Numa noite de segunda-feira, já aclimatados depois de dias de surras das agarras da Chapada, escalamos uma das singularidades do traçado arquitetônico da cidade. Trata-se de um muro de 130 metros de extensão construído com o recurso mais abundante na região: blocos de pedras. A travessia é um treino de resistência atípico, utilizado pelos fissurados escaladores locais. Rende, no mínimo, boas risadas.

Entre cachoeiras, rochas e muros, a Chapada reserva ainda uma prática esportiva desconhecida entre a maioria dos escaladores brazucas: o psicobloc. A modalidade ganhou fama depois da divulgação de um vídeo de escalada casca-grossa produzido na ilha de Mallorca, na Espanha.

Resolvemos colocar o psicobloc em prática no Poço do Diabo. Muitos vão até lá somente para se refrescar no gigantesco poço negro, mas nós optamos por escalar sem cordas e sair de banho tomado. Para quem não tem medo de cair na água, são 20 metros de uma via negativa, sobre um poço de dois a cinco metros de profundidade. Depois de aquecermos os músculos nos boulders na garganta da cachoeira, seguimos para o paredão, que não é diabólico só no nome. Muita força, muitas quedas bem-vindas, muitos banhos. Combinação perfeita.

De lá, pegamos a estrada esburacada rumo ao Vale do Capão, onde dormiríamos. Foi difícil deixar para trás a Paulicéia Baiana, uma via de 6° grau que na minha opinião é a mais alucinante de toda a Chapada. Da rodovia é possível avistar seus 150 metros, divididos em 6 cordadas, sem nenhum grampo fixo, totalmente escaláveis com equipamento móvel. Essa belíssima ascensão leva seus conquistadores até o cartão postal mais famoso da região: Morrão, Morro do Camelo e uma cadeia de montanhas que representam a grandiosidade do relevo da Chapada, com seus vales imensos e seus platôs que aguçam a imaginação de escaladores e trekkeiros.


SEGURA: O escalador Jorginho perde os pés na negativa Canta Galo, via graduada em 7b

O tempo da viagem já entrava em contagem regressiva. Depois do café da manhã, conhecemos mais um escalador, o argentino Ezequiel Ordoñes, 26, morador de uma das comunidades alternativas do Capão. Em poucos minutos pegamos os “equipos” e partimos para o Rapadura, um setor de escalada da região. Após uma hora de caminhada saindo do vilarejo, chegamos a um complexo rochoso em meio às montanhas com um total de seis rotas esportivas (dois 6° grau e as demais acima de 7 B). Até que enfim escalávamos uma parede menos negativa! Antes de deixar o Capão, saímos à procura de uma única e solitária via, localizada às margens do Riachinho, um pouco afastado do vilarejo. No caminho demos carona para duas turistas alemãs que se entusiasmaram em observar nossa escalada. Enquanto escalávamos a via, uma 7 A de 200 metros na lateral esquerda da cachoeira do Riachinho, as gringas foram ficando à vontade, até resolverem tomar banho de sol nuas. Resultado: desconcentração total e alto índice de quedas.

Depois de elegermos essa com unanimidade a escalada mais bacana da trip, deixamos para trás o fantástico Capão e seguimos para o sul da Chapada, no sentido de Mucugê. O calor escaldante nos obrigou a dar um mergulho na Gruta da Pratinha, uma caverna calcárea formada por um extenso lençol de águas subterrâneas. Como a cavidade fica fora do parque, tivemos que desembolsar 10 paus cada para poder nadar nas imediações da gruta. Por mais 30 reais é possível fazer um mergulho e flutuar pelas estreitas galerias da caverna abarrotada de morcegos. Difícil de recusar um passeio como esse, mas o relógio, cada vez mais ingrato, nos obrigou a seguir viagem.


ÉDEN: Igatu, a cidade das edras, começa a ser escalada por todos os lados

NA ESTRADA NOVAMENTE, TIVEMOS DE PASSAR BATIDO, A CONTRAGOSTO, PELO FASCINANTE RIO PARAGUAÇU. Há um ano, Junior e os escaladores Luiz, Valadão e Cabeção abriram mais esse recente point de escalada na Chapada. Após descer o leito do rio por um cânion, eles encontraram uma série de paredes alaranjadas e negativas. Descendo mais um pouco, chegaram a uma plataforma alta com um grande teto e um poço para tomar banho. Ali instalaram um acampamento base, apelidado de Varandão. No total foram abertas 12 vias, a maioria com equipamento móvel, que deixa a parede livre de grampos.

Após sete quilômetros de subida por uma estrada calçada pelos próprios garimpeiros, pisávamos em Igatu, a cidade das pedras, um vilarejo estagnado no tempo e no espaço. Ao atravessar uma ponte sobre um rio colorido de lavadeiras, entramos num estreito corredor de casinhas de pedra. Mais tarde, fiquei sabendo que a cidade de Igatu proíbe a construção de casas de alvenaria, sendo apenas permitido construir utilizando as próprias pedras da região.

O cenário da escalada em Igatu é o mesmo de um século atrás, ou seja, as tocas onde já foram encontrados esqueletos intactos continuam as mesmas. Naquela época, mesmo dormindo décadas debaixo dos tetos cavernosos, nenhum garimpeiro imaginaria que alguém pudesse escalar o telhado de suas casas. Assim como Lençóis, Igatu esbanja potencial para a escalada. Há boulders simplesmente por toda parte – no meio da rua, no quintal das casas, dentro das casas, à direita, à esquerda. Além da quantidade, há a qualidade: Igatu quer dizer “águas boas” em tupi-guarani, ou seja, é garantia de escalada com um poço sempre por perto. Os setores de escalada são todos vizinhos à vila e os nomes das vias são cada vez mais regionalistas: “Coco de mocó”, “Fuga Pela Aresta”, “Têm, mas não tá tendo” e “Vai que dá”.

Logo eu apertava a mão de Jorge Dourado, 22, um escalador de cabelos afro que só falava dos 8o graus de Igatu. Jorginho, como é conhecido, contagiava-nos com seu apetite pela escalada. Seguindo ele e seu cão vira-lata, o Pirata, chegamos a um reduto de tocas gigantes, antigas moradias dos garimpeiros. Os tetos mais pareciam entradas de cavernas de tão extensos. Depois de aquecermos os músculos nos incontáveis boulders do setor, entramos nas vias “Movimentos” (7 A) e “Canta Galo” (7 B). Esta última foi a campeã da negatividade.

Caminhando pela trilha que leva à cidade de Andaraí e descendo o rio Coisa Boa, que cruza a cidade (o mesmo das lavadeiras), existe um setor chamado Califórnia, com paredes de quartzito. Mas era dia de seguirmos viagem. Saindo de Igatu, percorremos toda a imponência de uma muralha com 120 quilômetros de extensão – mais um paredão que provavelmente não tem nenhuma via conhecida – até chegarmos em Ibicoara, instigados a explorar as rochas de mais uma cidade.


PLAYGROUND: Gironha em frente à agênca Fora da Trilha, em Lençóis

O TURISMO EM IBICOARA AINDA É INSIPIENTE. Por trás dos chapadões que amparam as plantações escondem-se campos de sempre-vivas, estranhas formações rochosas e, claro, cachoeiras. Há uma queda, no entanto, que dá ao município o orgulho de abrigar de uma das cachoeiras mais lindas da Chapada: a cachoeira do Buracão. Como o nome já prediz, a cachoeira despenca dentro de um grande buraco circular na terra. Acessível apenas por um estreito cânion com paredões de 60 metros de altura, é como se a natureza tivesse criado um teatro só para ela. No Buracão também é possível praticar o psicobloc, mas como havia chovido durante toda a madrugada, as paredes cheias de musgos estavam pra lá de encharcadas.

A idéia de ir embora sem escalar em Ibicoara era demais para nossas cabeças. Antes de seguirmos para a estrada de asfalto, estacionamos em frente a um bloco de pedras com vias de no máximo 10 metros de altura. Era o pit stop perfeito. Mandamos um 5º grau pra aquecer e trabalhamos a via ao lado, uma 8 A. A região também possui uma via clássica que merece destaque por sua beleza. Trata-se da via Catabaga, 5º grau, localizada no setor do Campo Redondo. São 100 metros de parede escalável em que, assim como no morro do Pai Inácio, utiliza-se apenas equipamento móvel.

Infelizmente, não podíamos mais adiar nossa volta à babilônia. Foram 15 dias escalando entre baianos, gaúchos, candangos e cariocas – sem contar os alemães, os portugueses e os argentinos que encontramos pelas trilhas, também de chinelos. Entre todos os escaladores que conhecemos durante a viagem, as opiniões sobre a peculiar escalada na Chapada Diamantina eram bastante parecidas: nem nos maiores pólos de escalada no mundo encontra-se tantas vias de escalada coladas a tão lindas cachoeiras – águas históricas que bailaram nas bateias, lavaram os cristais e moldaram as rochas. Da estrada, assistimos mais um pôr-do-sol tingir as rochas com um dourado singular. A generosidade da natureza, mais uma vez, recompensava a persistência e a coragem de seus desafiadores – ontem com riquezas para os garimpeiros, hoje com a perfeição das rochas e dos picos para nós, escaladores.

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de abril de 2006)