Fotos por Edemilson Padilha
Enquanto vários dos melhores escaladores do mundo eram barrados pelo mau tempo que insistia em estragar a festa de quem tinha se convidado para escalar as formações rochosas do Fitz Roy (3.405 metros) e do Cerro Torre (3.128 metros) – dois picos na Patagônia argentina bastante difíceis de serem escalados devido aos ventos de 180 km/h –, os escaladores brasileiros Edemilson Padilha, 33 anos, Valdesir Machado, 31, e seu parceiro argentino Gabriel Otero, 30, conquistaram o cume do Fitz Roy por uma de suas vias mais casca grossa. Aberta em 1979 por Jean Afanassief – astro nascente do alpinismo francês, que tinha em seu currículo numerosos e importantes feitos sobre as montanhas de todo mundo –, a via Afanassief, também conhecida como Via Francesa, nunca tinha sido repetida por outra equipe, que não a pioneira.
Com uma janela duvidosa de dois dias ventosos, a equipe sul-americana saiu de El Chaltén (povoado que é ponto de encontro dos alpinistas e porta de entrada para os picos) rumo à face oeste do Fitz Roy com uma idéia fixa na cabeça: conquistar os 2.300 metros de via, sem mapa do caminho, na face mais desprotegida do vento. Nas mochilas de 40 litros, com aproximadamente 10 quilos cada, carregavam pouco equipamento de escalada, duas cordas de 60 metros, fogareiro, uma panela, saco de bivaque (capa de náilon pra isolar do frio), barras energéticas, três pacotes de macarrão, suco em pó, um punhado de sal e muita velocidade para ficarem menos tempo expostos ao clima frio da região. “É um desprendimento nos desvencilharmos da mochila cargueira repleta de equipamentos, que confere uma falsa segurança ao escalador”, diz Edemilson Padilha. “Nesta temporada na Patagônia nos aprofundamos nesta arte”.
Depois de uma noite mal dormida no mar de blocos de rocha que é base da via, os três encheram suas garrafas com a água corrente do glaciar que se derretia e se dirigiram para a Anastassief. Mas uma equipe de norte-americanos, que por coincidência tentava a mesma escalada, os passou na rampa de gelo de acesso, já que usavam crampons (grampos dentados que se prendem à sola das botas de montanha, para evitar que se escorregue sobre o gelo), equipamento que os sul-americanos não levavam para todos, para reduzir peso. Edemilson, Valdesir e Gabriel ficaram no encalço dos gringos por quase 1000 metros de via, até uma parede empinada de uns 400 metros, com gelo nas fissuras. Os três gringos montaram “acampamento” ali mesmo – era uma da tarde! – e mostraram uma foto plastificada da face oeste do Fitz com a linha da via, que foi devidamente fotografada pelos brasileiros. Então, munidos de um pseudo-mapa, os três voaram até não poder mais escalar pela escuridão. “Estacionaram” numa repisa torta, cheia de pedras, comeram macarrão, tomaram café quentinho e passaram muito frio. Duas horas de sono depois, amanhecia.
A previsão era de uma quarta-feira esplêndida, mas não era o que se delineava. Muitas nuvens se acercavam ameaçadoras no oeste. Muito alto para descer, a equipe nem pensava em abandonar todo o equipamento. Seguiram adiante. Passaram uma manhã de mãos congeladas pelo excesso de gelo nas fissuras e porque escalavam na sombra, a uma temperatura de mais ou menos -10 ºC. Mais acima, saídos do freezer, foram brindados com um sol maravilhoso e um céu limpo, o que era bom sinal. Continuaram subindo, sem parar. Às 19h30, após 36 horas de escalada, pisavam o cume do Fitz Roy. A via Afanassief finalmente tinha uma repetição depois de 27 anos e ela era sul-americana. “Foram quase quatro dias da saída de Chaltén até o retorno. Não podíamos acreditar, ninguém podia acreditar, foi uma escalada dos sonhos que fluiu naturalmente, em que seguimos nossos instintos, nossa intuição e nosso coração”, conta um exultante Edemilson.
Puro estilo alpino
O escalador Vitor Negrete, que partiu no fim do mês passado rumo a uma nova tentativa de alcançar o cume do Everest sem o auxílio de oxigênio, conta o que achou da conquista da Anastassief pela equipe sul-americana
Existem diversas formas de se escalar uma montanha. Cada alpinista escolhe a quantidade de equipamento, comida e apoio que vai utilizar. Os dois extremos são: o estilo Expedição, onde a escalada conta com uma profusão de tudo, inclusive carregadores e alpinistas de apoio que podem montar acampamentos e fixar cordas para uma equipe principal, que vem depois. O outro é o estilo Alpino onde uma equipe pequena leva o mínimo necessário e muitas vezes menos do que o mínimo necessário. Dessa maneira, os alpinistas decidem sofrer e ir até o limite para ganharem velocidade. No estilo Expedição o mesma escalada pode durar meses. O Alpino é o estilo moderno de escalada onde a equipe sobe da forma mais rápida, precisa e eficiente. Desta forma as equipes escalam em lugares onde nada neste mundo pode ajudar os alpinistas se eles encontrarem algum problema. Escalam em lugares onde o dinheiro não pode te ajudar, onde não é possível contratar pessoas para te ajudar, onde o que importa é a equipe e o que cada um carrega dento de si mesmo.
(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de abril de 2006)
ULTRAPASSAGEM: Edemilson guia uma cordada difícil acima do ponto em que ultrapassaram a equipe norte-americana
NO TOPO: Os brasileiros no cume do pico
CASCA: Avalanche na base do Fitz Roy