Diário de uma geada


ENTALADOS: Rodrigo Ranieri e Vitor Negrete passam pelo túnel de gelo para tentar chegar a Nyalam

A glória do cume, após enfrentar 8.850 metros de desafios, é o que move alpinistas e o que encanta quem fica em terras mais baixas, torcendo por aqueles que têm a coragem de escalar o Everest. Mas para chegar lá, no topo da Chomolungma, a mãe das montanhas, é preciso muita preparação, planejamento e, principalmente, paciência. Vitor Negrete e Rodrigo Raineri, que fazem este ano sua segunda tentativa de serem os primeiros brasileiros no topo do mundo no estilo mais hardcore – sem auxílio de oxigênio suplementar – que o digam. Eles começaram a preparação física um ano atrás; foram para o Nepal no dia 27 de março e desde então estão lá, aclimatando-se e preparando-se para a subida e para o tão esperado cume, onde ficarão, no máximo, por 60 minutos. Leia, a seguir, a transcrição dos contatos da nossa redação com a dupla, por email e telefone satelital.

KATMANDU – 1.330 metros

29/04

Estamos na capital do Nepal, depois de dois dias de viagem. Aqui ficaremos mais dois dias, comprando equipamentos que faltam e configurando nossos laptops. Depois seguimos para Zangmum e Nyalam – RODRIGO

NYALAM – 3.700 metros

02/06

Para chegar aqui, tivemos que cruzar uma canaleta de neve com dez metros de altura. Mas conseguimos. O tempo aqui está frio, -5oC. Fizemos uma caminhada até 4.000 metros e nos sentimos super bem. Estou otimista com relação ao clima; espero que o raio não caia duas vezes no mesmo lugar e que este ano haja uma janela de bom tempo na época prevista para conseguirmos chegar ao cume. – RODRIGO

SHEGAR – 4.300 metros

04/04

Tivemos que brigar com os transportadores que contratamos para que eles nos trazerem até aqui. Shegar é a última cidade antes do Campo Base e tem toda infra-estrutra que precisamos para prepararmos os equipamentos antes de partirmos para a montanha. Amanhã vamos até um mosteiro realizar todos os rituais que devem ser feitos, de acordo com os costumes nepaleses, antes de se subir o Everest. – VITOR

05/04

Somos em seis pessoas na expedição, por enquanto: nós, dois americanos, um britânico e um malasiano. Outros chegarão quando estivermos no Campo Base. Temos oito sherpas, sendo quatro cozinheiros e quatro carregadores. Dois dos carregadores são só para nós e os outros para o resto do grupo. Hoje nossos cozinheiros e carregadores sherpas foram pro Campo Base. Amanhã vamos nós, junto com os caminhões carregados de equipamentos e comida. Hoje compramos as coisas que faltavam: um monte de papel higiênico (que eu experimentei há pouco e descobri que é uma lixa), 15 litros de água mineral (depois de um tempo, a água derretido do gelo começa a dar dor de estômago) e 20 litros de Coca-Cola. – RODRIGO

CAMPO BASE (BC) – 5.200 metros

06/04

Chegando aqui, tivemos uma notícia triste. Um sherpa da expedição americana passou mal no Campo Base Avançado (ABC), desceu sozinho até o BC, entrou na barraca para dormir e no dia seguinte foi encontrado sem vida. Isso abalou o moral de todos. Quando comentamos os incidentes com os sherpas, eles disseram “no puja”. Puja é uma cerimônia religiosa onde cada expedição constrói uma estrutura de pedra que tem um mastro onde são amarradas bandeirinhas de oração. São feitas oferendas e preces pedindo proteção para os deuses. Para os sherpas, o acidente é uma punição da montanha – VITOR

08/04

Cá estamos, no Campo Base do Everest mais uma vez, perseguindo nossos sonhos. A ansiedade quanto ao que vamos enfrentar caiu a quase zero, uma vez que ano passado o Vitor chegou ao cume e eu tão próximo quanto se possa imaginar. O que aumentou foi a ansiedade por alguns dias de tempo bom para que possamos fazer uma subida segura e com boas chances de cume sem o oxigênio suplementar. O Campo Base é uma mini cidade, cheia de acampamentos e comércio. Hoje fomos ao escritório dos chineses e acertamos nossos iaques – usaremos 41 desses animais de carga – para o dia 12, quando iremos do BC para o acampamento intermediário, devendo chegar dia 13 no ABC. A cada dia analisamos a montanha, conversamos entre nós e com outros alpinistas e tomamos mais consciência da dificuldade da nossa empreitada. Isso só nos leva a reanalisar minuciosamente nosso planejamento e a tomar decisões de segurança aqui embaixo, já que o ar rarefeito pode nos levar a decisões erradas. A visão da Chomolungma (Deusa Mãe do Universo), como os tibetanos chamam o Everest, é incrível. A luz vai mudando com o passar das horas e as nuvens vão tomando formas, cobrindo e descobrindo a grande montanha. – RODRIGO

10/04

Durante a noite o tempo virou. Densas nuvens cobrem o Everest e nossas barracas se contorcem sob as rajadas de vento. Outras expedições chegaram e o vale começa a ficar habitado. Nós estamos no lado esquerdo de quem olha para o Everest e provavelmente seremos o último acampamento nesta lateral. A uns 300 m do nosso acampamento começa a trilha que leva ao ABC. A tenda refeitório é azul, mede 4 m x 4m, a parte mais alta com 2,5 m. Uma mesa desmontável atravessa o interior da barraca. Sobre ela, duas garrafas térmicas, café, leite e chocolate solúveis, açúcar. No acampamento ainda temos uma barraca cozinha, onde a comida é preparada, uma barraca depósito e as barracas dos membros e dos sherpas. Nossos dias são passados arrumando equipamentos, escrevendo, planejando a escalada e conversando com alpinistas de outras expedições – VITOR

12/04

Hoje deveríamos ter subido para o Campo Intermediário para dormir uma noite a 6.200 m e amanhã subir para o ABC. Mas como está ventando muito, decidimos priorizar o descanso e a aclimatação a 5.200 m. Despachamos nossa carga com os iaques e, para isso, tivemos que pesar todos os tambores. Foi aquela bagunça: nem os nossos sherpas entendiam o que os tibetanos falavam! E ainda nos fizeram contratar 15 iaques além que os 41 já contratados. Fomos a uma casa de chá aqui no BC e encontramos vários turistas israelenses. Acabamos participando da cerimônia de Páscoa Judaica. Foi uma prova de que este mundo é muito doido. Quando imaginaríamos que participaríamos da Páscoa Judaica em pleno Everest? – VITOR

14/04

Apenas eu e Vitor continuamos no BC, os outros alpinistas da nossa expedição subiram com a primeira caravana de iaques pro ABC. Soubemos que eles tiveram problemas de dor de cabeça e vômitos assim que chegaram lá, mas parece que estão se recuperando. Estamos animados porque o tempo deu uma melhorada e pudemos tomar um banho de caneca e bacia, à moda antiga – uma coisa banal, mas que renovou nossas forças. Independente do tempo estar bom ou ruim, amanhã subiremos com a última caravana de iaques. Se tudo der certo, lá em cima teremos um aquecedor na nossa barraca refeitório, o que preservará nossas energias. – RODRIGO

CAMPO BASE AVANÇADO – 6.500 m

16/04

A subida para o Campo Intermediário (5.800 m), ontem, foi tranqüila – o oposto do que aconteceu ano passado. Apesar do frio, não estava ventando, a noite estava linda e o céu cheio de estrelas. Hoje viemos para o ABC. A temperatura agora dentro da barraca está em cerca de -16oC. – VITOR

17/04

Hoje passamos o dia montando a barraca depósito e separando os equipamentos que serão levados pelos sherpas amanhã para o Acampamento 1 (7.100 m). Como nevou um pouco, a temperatura subiu um pouquinho: está em -14oC. Conseguimos ligar o aquecedor na barraca refeitório e a vida ficou bem melhor. – RODRIGO

24/04

O tempo está uma praia para uma montanha do tamanha do Everest. Fisicamente estamos muito melhor que o ano passado, porque não estamos nos desgastando com o que não precisa, como nos manter o tempo todo aquecidos. Nesta expedição estamos tendo mais tempo livre pra pensar na vida, escrever, conversar. Aqui tem gente do mundo todo, pessoas de nível cultural alto com quem discutimos religião, política, alpinismo. Passamos a tarde de hoje separando todo o equipamento que será levado para os acampamentos 1 e 2. Amanhã vamos acordar e sair pro Acampamento 1. – RODRIGO

ACAMPAMENTO 1 – 7.100 metros

25/04

Agora a gente está no acampamento 1, amanhã ou depois vamos para o 2 e se conseguirmos vamos andar até os oito mil metros. Tá um tesão aqui. Tô curtindo muito. Eu sempre condenei escaladas comerciais como as que são feitas aqui, mas desta vez estou conseguindo ver o lado bom do Everest. A beleza do alpinismo é escalar a montanha na sua, dentro do que você quer dessa montanha. Este ano está sendo mais fácil eu encontrar no Everest o que procuro numa montanha. – VITOR

26/04

Ficamos muito amigos da expedição turca. É a primeira vez deles aqui e eles querem colocar a primeira mulher turca no cume do Everest. Hoje percebo que fizemos uma puta escalada no ano passado. Tem gente que vem pra cá muitos anos para conseguir fazer o que fizemos na nossa primeira vez. Ontem recebemos a previsão meteorológica de nosso amigo Marcelo Serrão e ela diz que a média de temperatura de janeiro a abril foi bem mais alta e que isto vai possibilitar uma janela de tempo bom na segunda quinzena de maio. Ter a notícia de que o clima pode ser melhor faz o cume parecer mais possível. – VITOR

27/04

Ontem à tarde começou a nevar muito e não deu pra ninguém subir pro Acampamento 2, a 7.800 m. Resolvemos descer pro ABC para esperar o tempo melhorar e teremos que repensar a estratégia de aclimatação. Felizmente, estamos bem adiantados na aclimatação, que leva 30 dias e começou em Shegar. Tomara que o tempo melhore amanhã para retornarmos aos acampamentos superiores! – VITOR

Nosso último contato com a expedição Try On Go Outside Expedition Everest 2006 antes do fechamento desta edição foi no dia 27 de abril. A janela de tempo (quando o clima impiedoso do Himalaia dá uma trégua, possibilitando a chegada ao cume) está prevista para o dia 15 de maio. Estamos na maior torcida!


(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de maio de 2006)







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