Os visionários

Por Viviane Palladino
Ilustrações por Mr. Guache

O futuro não apenas acontece. As novas fronteiras do esporte, do condicionamento físico, dos equipamentos e da aventura são lapidadas diariamente por visionários com sonhos de mudar o mundo e com mente, músculos e determinação para tornar esses sonhos realidade. Mostramos 11 brasileiros que estão nos levando para além do amanhã e enfocamos um, em especial, que foi tão fiel aos seus sonhos que os levou até as últimas conseqüências.


OS DEUSES DEVEM ESTAR LOUCOS

Vitor Negrete, 38 anos

Alpinista

“Tá um tesão aqui. Tô curtindo muito. Estou conseguindo encontrar no Everest o que procuro numa montanha” – Vitor Negrete, o Vitão, num de nossos últimos contatos telefônicos

Me desculpe, leitor, pela brincadeira no título. Mas os vários anos de convivência e amizade com Vitor Negrete me dão essa liberdade e quase que a obrigação de lidar com sua morte como que ele gostaria – de forma simples, objetiva e bem humorada. Pompa, cerimônia e drama nunca tiveram nada a ver com o Vitão. No dia em que recebemos a notícia de que ele morrera numa barraca a 8.300 metros de altitude, depois de ser o primeiro brasileiro a chegar ao cume do Everest sem usar oxigênio suplementar, eu e os outros integrantes da equipe de corrida de aventura da qual ele fazia parte nos reunimos, ainda meio sem chão. Depois de alguns minutos de silêncio desconfortável, alguém soltou: “Os fantasmas do Everest não terão mais sossego”, e todos rimos. Ele também teria rido. Aliás, ele teria sido o primeiro a tirar um sarro da situação.

Vitor encabeçava nossa lista de Visionários desde que começamos a trabalhar nesta matéria. Um moleque asmático que cresceu em São Paulo e mudou-se para Campinas na época da faculdade; que junto com os amigos da Unicamp, criou um grupo excursionista, o Gaia; que fez viagens de aventura históricas; que escalou a Pedra do Lopo de Kichute; que se encantou e se entregou às altas montanhas até chegar ao cume do Everest e que abraçou apaixonadamente um projeto social com os quilombolas da região do Vale do Ribeira. Sua morte, surpreendente apesar de provável, não muda nada disso.

Vitor era um cara ímpar, desprovido de cinismo, de pré-conceitos, de frescuras – aliás, era tão sem frescuras que na equipe o chamávamos de “Ogro”. Mas era um ogro que não falava palavrão. Meio revolucionário e 100% autêntico, era de uma sinceridade desconcertante (pra não dizer constrangedora). Conversava com qualquer um – da tia nonagenária ao motorista do ônibus – de igual para igual. Usava palavras e expressões engraçadas, como “estou estupefato” e “folgo em dizer”. Ouvia Ramones e New Order e tinha a discografia completa do Smiths em seu Ipod. Arrotava alto e depois ria – mas havia prometido parar com isso, para o bem da convivência em sociedade e para não dar mau exemplo ao filho Leon, de 2 anos e meio. Contava histórias esdrúxulas sobre técnicas de masturbação na montanha, só pra nos manter acordados quando o sono batia forte nas competições. Depois que cortou o cabelão, ficou a cara do Jon Bon Jovi (desculpa aí, Vitão). Não era de grandes demonstrações físicas de carinho ou emoção, mas tinha um amor profundo pela família e pelos amigos. E quando dizia que estava muito feliz, estava mesmo.

O VITOR TINHA ACABADO DE CRUZAR A TRANSAMAZÔNICA DE BICICLETA quando o conheci. Foram três meses e 2.400 km de pedal, saindo de Marabá, no Pará, e chegando a Lábrea, no Amazonas, entre dezembro de 92 e fevereiro de 93. Ele foi com dois amigos, Osvaldo Stella Martins e Igor Alexandre Walter, e trouxe fotos e histórias que iam do cômico ao trágico. Nenhum dos três voltou muito “normal” daquela viagem. O choque cultural foi tão forte que Vitor passou os meses seguintes andando só de havaianas, “num protesto pacífico”, como ele dizia. Quando chegou o dia do casamento de um amigo da família, o pai Vicente teve que implorar para que o filho ao menos usasse uma sandália mais arrumadinha.

Vitor amou viajar de bike – ele curtiu a velocidade que permitia progredir e ao mesmo tempo absorver o visual, curtiu o esforço físico e os perrengues. Em dezembro de 1993, subiu de novo na magrela para mais quatro meses de rolê pela América do Sul, indo de Porto Alegre a Ushuaia, na Argentina, cidade mais austral do planeta, de novo com o parceiro Osvaldo.

Depois começaram as conquistas nas escaladas. Foram, ele e o parceirão Rodrigo Raineri, os primeiros brasileiros a escalar a face sul do Aconcágua (a mais difícil e perigosa) em 2002, e depois a escalar a mesma montanha no inverno, em 2004. Em 2005 chegou ao cume do Everest usando cilindros de oxigênio – uma conquista que, ao seu modo de encarar o montanhismo, nem era das maiores. Por isso ele decidiu voltar em 2006 para fazer a subida do jeito que achava certo, junto com Rodrigo.

Engenheiro de alimentos com mestrado em tecnologia de alimentos pela Unicamp, desde 2002 Vitor fazia parte de um projeto que ensina os moradores de dois quilombos no Vale do Ribeira – região cujas cavernas ele explorou com suas calças de tenente do exército na época do Gaia – a produzir derivados de banana e a colocar esses produtos no mercado. “Estamos ensinando os quilombolas a serem auto-suficientes”, ele me contou, animado, depois de voltar de uma de suas viagens mensais à região. Junto com uma equipe de 15 pessoas, Vitor ajudou a desenvolver as máquinas e a metodologia de produção dos derivados de banana em duas fábricas comunitárias do vale. Era um dos projetos que mais o entusiasmavam recentemente.

Nas corridas de aventura, surpreendia pela força e calma. Não havia tempo ruim para o Vitão. Correu provas antológicas, como o EMA Amazônia, em que ficou em 7o lugar, e o Mundial da Nova Zelândia, no fim do ano passado. Enquanto a gente se desdobrava pra cumprir as planilhas de treino, preocupados com a performance, o Vitão treinava o que queria, quando podia, nos deixando de cabelos em pé. Mas chegava nas provas forte como um touro – ainda que às vezes a força estivesse na mente e o seu corpo estivesse sofrendo mais do que os nossos.

A “brincadeira” de editar e filmar começou ano passado – ele tinha um monte de material e resolveu aprender a mexer no programa de edição de seu computador. Seguindo sem querer aquele ditado que diz “não sabendo que era impossível, foi lá e fez”, Vitor mandou tão bem nos programas que fez para o canal de TV a cabo ESPN Brasil que acabou dirigindo, produzindo e editando um documentário, Aconcágua, que foi selecionado para a V Mostra Internacional de Filmes de Montanha e em novembro do ano passado no Rio de Janeiro. Não cheguei a assistir, mas ele disse que ficou muito bom – e eu acredito. Em seu site, ele fala sobre o filme e diz, bem ao estilo Vitão: “Espero que o público goste, pois todo o filme foi editado e produzido pela Marina e por mim com muito carinho e esmero”.

ACIMA DE TUDO, o Vitor era um cara que não via limites onde quase todo mundo veria. Por que não aceitar o convite de Rodrigo Raineri para ir escalar o Aconcágua pela sua face mais casca, e depois voltar lá e escalar a mesma montanha no inverno? Por que não pedalar a Transamazônica? Por que não fazer um documentário? Por que não ensinar comunidades quilombolas a se sustentar com o processamento de banana? Por que não escalar o Everest sem oxigênio? Não era porra-louquice, era um olhar indomado.

Porque a partir do momento em que ele se propunha a fazer algo, se preparava meticulosamente, estudava tudo o que podia sobre o assunto, imaginava conseqüências e, se achasse que era possível, encarava o risco de frente com a calma de um samurai. “Não me sinto atraído pelo risco, mas pelo desafio. Escalo porque acredito que posso superar os riscos”, ele me disse. Vitão sabia do risco de subir o Everest sem oxigênio nem sherpas. Sabia que o cume era menos que a metade do caminho e que 80% dos acidentes ocorrem na volta. Tenho certeza que subiu porque sentiu que estava preparado e porque achava que aquela era a maneira certa de fazer a escalada – somente ele e a montanha. E é por isso que tenho certeza que Vitor está em paz, com suas decisões e seus atos, ouvindo Ramones e enlouquecendo os deuses.


A MORTE NAS MONTANHAS

Em janeiro deste ano, Vitor Negrete escreveu, a convite da Go Outside, um artigo sobre cumes nevados, coragem e o que separa a fatalidade do imprevisível. Na época, o curitibano Marcos Luszcynski estava desaparecido no Mont Blanc, a montanha mais alta da Europa, e muito se especulava sobre sua morte. Reproduzimos abaixo o artigo.

É muito difícil falar sobre pessoas que perdem a vida nas montanhas. Penso nos que ficaram, na família, nos amigos. Lembro do filme Sob a areia, sobre uma mulher que não aceita a morte do marido que, numa manhã tranqüila, saiu para nadar no mar e nunca mais voltou. Ver e enterrar o ente querido é muito importante no processo do luto; sem isso, a aceitação da morte fica ainda mais dolorosa e difícil.

Conversando com o escalador, alpinista e fotógrafo Tom Papp, que escalou o Mont Blanc sozinho, ouvi dele uma coisa que me marcou: “Gosto de escalada porque é uma atividade que une um forte espírito de parceria e um profundo individualismo. Cada um define seus desafios e escolhe o nível de pressão que vai impor a si mesmo”. Na escalada em rocha, em cada lance o escalador vivencia a adrenalina das suas escolhas, enfrenta a dúvida e a possibilidade da queda, sente a necessidade de concentração e do trabalho conjunto da técnica, da força e da cabeça. No alpinismo, da mesma forma, cada um decide como quer escalar, escolhendo a montanha, a via, a rota, se quer escalar sozinho ou com mais parceiros e opta pelo estilo. Uma mesma rota pode ser um passeio para um alpinista e a expedição da vida de um outro. O desafio do alpinismo é mental, está na cabeça de cada um. Defendo veementemente que cada um tem o direito de escolher onde e como quer escalar, e para isso deve se preparar e aceitar os riscos que está correndo.

Escalei a rota direta do glaciar dos polacos, no Aconcágua, em solo, ou seja, sem parceiro, sem cordas, sem rádio. Nunca esquecerei esta escalada. Acordei a uma da madrugada. Enquanto derretia gelo para tomar um chá, preparei minha mochila, completamente sozinho. Saí na madrugada e senti os cristais de neve atingindo a minha viseira. Escutei meu coração batendo forte e vi o glaciar brilhando sob as estrelas. Ouvi o som dos meus crampons (bota com cravos de ferro) perfurando o gelo. Subi, senti medo, tive dúvidas, me arrisquei, cheguei ao cume, voltei para o acampamento, desci da montanha. Me elogiaram, mas se eu tivesse morrido diriam: “ele foi sozinho, não levou rádio, não tinha experiência, ele sempre foi meio louco mesmo”. Me considerariam um irresponsável, negligente.

Muitas coisas podem acontecer durante uma escalada. Alguns riscos podem ser previstos, outros não. As montanhas tiram a vida tanto dos iniciantes quanto dos iniciados e há muitos alpinistas extremamente experientes que jazem sob a neve. Por esse motivo, qualquer um que deseja se aventurar nas montanhas deve escolher escaladas com dificuldade e risco progressivos, e se capacitar através de cursos e treinamentos para esses desafios.

O empresário curitibano Marcos Luszcynski estava escalando o Mont Blanc, na França, fora da temporada, quando as condições são piores. Mas escalar fora da temporada, por si só, não representa uma loucura. A maioria das montanhas tem escaladas fora de temporada – é só um desafio a mais. Pode ser que Marcos Luszcynki não estivesse preparado, mas provavelmente nunca saberemos. A não ser que encontremos algum relato escrito ou gravado por ele, narrando seus últimos momentos, como aconteceu com Chris McCandless, um jovem americano de uma família rica que terminou a faculdade, mudou de nome e caiu na estrada, sem dar mais notícias aos pais. Dois anos depois, Chris apareceu morto em um lugar ermo e gelado do Alasca, junto a um diário. O jornalista Jon Krakauer, colaborador de longa data da Outside, refez a longa saga de Chris e a contou no livro Natureza Selvagem. Na contracapa, lemos: “Um relato fascinante sobre idealismo, fantasia e também sobre o lado terrível do contato direto com a natureza”.

Krakauer nos sugere que muitas pessoas são atraídas pelas montanhas por idealismo, por uma visão romântica. Minha descrição do glaciar dos Polacos, no começo deste texto, é romântica, assim como o recado deixado por Marcos Luszcynki no último refúgio do Mont Blanc: “Estou vivendo momentos mágicos. Agradeço a Deus”. Assim também são os relatos de McCandless. Mas lugares como a alta montanha e o Alasca são indiferentes ao romantismo e ao idealismo. Eles não foram feitos para os seres humanos, neles é mais fácil morrer do que permanecer vivo. Como Gregory Crouch escreve no seu livro Enduring Patagonia: “As montanhas não tem generosidade ou justiça. Elas permanecem imóveis aos dramas humanos que se desenrolam nos seus flancos, elas dão e tiram com uma vontade que não compreendemos. Nós temos somente a dignidade com a qual combatemos esta indiferença terrível e sem face”.

Encontrei a reflexão mais impressionante, e que também não deixa de ser romântica, sobre como alpinistas de alta montanha se relacionam com a morte no livro Extreme Alpinism, de Mark F. Twight. “É sobre alpinistas fazendo o que amam e espectadores especulando, julgando e talvez proferindo a última palavra. Isto é sobre pessoas e o risco que elas enfrentam. É sobre a obsessão, o vício de ir da forma mais difícil e dura, mais alto e por mais tempo. A morte nas montanhas pode ser tão feia quando uma pedra que cai e surpreende uma pessoa que faz uma trilha. Ou pode ser tão linda quanto sete homens que lutam contra uma tempestade, dia após dia, dando tudo que têm. Mas um por um morre. Lentamente. De frio, exaustão, por ter lutado tanto. Até que somente dois restam. Eu digo que isto é lindo porque a maior luta humana é a luta pela sobrevivência”.

As montanhas são um lugar selvagem. Quando decidimos entrar nestes lugares o único erro que podemos cometer é o de não sabermos quais riscos estamos enfrentando. Para alguns deles estaremos preparados, para outros, não.

GUARDIÃ DO SONO

Hanna Karen, 28 anos

Educadora física

Missão: aplicar pesquisa feita em atletas a pessoas que trabalham em turnos com privação de sono

A mineira Hanna Karen Antunes, formada em educação física na Universidade Federal de Uberlândia (MG), foi a primeira pessoa do mundo a estudar os efeitos da privação do sono especificamente em atletas. Em seu doutorado, sob orientação do professor dr. Marco Túlio de Mello – coordenador do Centro de Estudos em Psicobiologia e Exercício da Escola Paulista de Medicina –, ela se dedicou durante três anos a entender como a atividade física age sobre os atletas que participam de corridas de aventura e viram a madrugada ou passam noites seguidas dormindo pouco ou nada.

Especializada também em ciência do exercício físico e neuropsicologia, Hanna defendeu sua tese esse ano. “Nós sempre tivemos curiosidade de entender o comportamento dos atletas em relação ao sono, mas tínhamos uma preocupação muito grande em não encontrar voluntários”, conta. Quando tiveram contato com as corridas de aventura, viram que estas estavam associadas exatamente ao que eles queriam estudar.

Em 2003, Hanna iniciou a parte prática do seu estudo acompanhando o Ecomotion Pro, na Chapada Diamantina. O objetivo era entender como as noites mal dormidas influenciavam o desempenho dos atletas. Por influência da literatura médica, Hanna já sabia que a privação do sono causa diversos efeitos prejudiciais tanto no aspecto físico como no comportamental. “Nós acreditávamos que, fazendo exercício por um período prolongado e estando sem dormir, esses atletas apresentariam os efeitos já descritos na literatura clássica, como mau humor, irritabilidade, lapsos de atenção, raciocínio, alterações físicas cardiovasculares”, destaca.

Mas a sua pesquisa levou a um resultado quase que totalmente contrário às afirmações dos livros médicos. “Havia sim um desgaste físico evidente.” Segundo Hanna, alguns tiveram redução de massa corporal em torno de sete quilos, devido a um gasto energético de 6.500 a 10 mil calorias/dia – “mas eles estavam relativamente bem”, surpreende-se. “Foi aí que a gente começou a pensar: será que o exercício físico protege o indivíduo dos efeitos deletérios de privação do sono?”

Depois de acompanhar outro Ecomotion Pro e simular uma corrida de aventura num laboratório do Instituto do Sono, Hanna confirmou a proteção dada pelas atividades físicas ao organismo de atletas em condições de privação de sono. Com essa preciosa informação em mãos, a pesquisadora quer mensurar quando, quantos e quais exercícios podem ser utilizados como medida coadjuvante para quem trabalha em turnos. “Policial, repórter, médico, enfermeiro, essas pessoas ao longo do tempo acabam tendo uma série de problemas causados pela falta de sono. São alterações que comprometem muito a qualidade de vida dos indivíduos”, ressalta Hanna, que teve seus trabalhos apresentados no Congresso Anual Americano de Medicina do Sono (APPS) e no Congresso Europeu de Ciências do Esporte, em 2005.


MODELO


Bob Burnquist, 29 anos

Skatista profissional

Missão: “ambientalizar” o mercado de esportes de ação

Ele podia ter se tornado apenas mais um skatista profissional, que viaja o mundo atrás de competições e põe muitos dólares no bolso, mas resolveu se preocupar com uma causa muito maior. Robert Dean Silva Burnquist, o Bob, já é uma lenda viva do skate (foi eleito algumas vezes atleta do ano pela grande mídia norte-americana e pela especializada, conquistou três medalhas de ouro nos X Games e recebeu o prêmio Laureous World Sports das mãos de Michael Jordan) e, de uns anos pra cá, além de extrapolar os limites do esporte – em sua última loucura, ele conseguiu unir o skate ao base jump num salto para dentro do Grand Canyon –, o skatista resolveu conciliar o desenvolvimento econômico de alguns esportes com a preservação ambiental e o bem-estar.

Em 2003, já com ideais voltados para o desenvolvimento sustentável, Bob fundou a organização sem fins lucrativos Action Sports Environmental Coalition (ASEC – www.asecaction.org), cujo principal objetivo é “ambientalizar o mercado de esportes de ação”. Trata-se de uma união de atletas de skate, bike, surf e outros esportes de ação que lutam pelo mesmo ideal de sustentabilidade e que, assim como Bob, querem passar suas idéias para a molecada. “Temos que educar a juventude pelos esportes de ação, para que eles mudem o mundo.”

A idéia da ASEC nasceu em 2002, em uma mesa do restaurante da família Burnquist, o Melodia, em San Diego, na Califórnia, onde mora. O empreendimento ia bem, mas com a maré baixa dos atentados de 11 de setembro, acabou não conseguindo cobrir os altos investimentos e fechando as portas. Mas um projeto que se revelaria muito maior continuou. Bob havia criado uma horta orgânica em um terreno grande comprado de um vizinho seu para atender ao restaurante da família e dali surgiu a Burnquist Organics.

Bob conta que o embrião de suas idéias nasceu bem antes, quando ele sentiu o choque cultural com a mudança para os Estados Unidos. “Cresci com minha mãe fazendo comida mineira em casa. E no Rio [cidade em que Bob nasceu], eu via aquele estilo de vida saudável, com as bancas de fruta em toda esquina. Quando mudei para cá, senti que a mudança na minha dieta estava afetando a minha saúde e, consequentemente, a minha performance. Como a única coisa que me deixa andar de skate é o meu corpo, tenho que cuidar dele. Não tem jeito”, ressalta o brasileiro.

Perseguindo o ideal de um mundo mais sustentável, Bob decidiu mudar seus hábitos visando não só a própria saúde. “Quando vi que como profissional de skate eu tenho uma influência muito grande sobre a juventude – porque tudo o que você faz, o cara usa ou faz –, achei que se eu desse uma mudada no meu comportamento, afetaria não só a mim, mas a muita gente. Se você quer a vida de um jeito, você tem que viver do jeito que você a quer.”

OLHAR PERIFÉRICO

Hermano Vianna, 46 anos

Antropólogo e musicólogo

Missão: mostrar para o Brasil o Brasil que ele desconhece

De fala calma e jeito tímido, Hermano não esnoba a enorme bagagem cultural que carrega nas costas. Antropólogo por formação, é também escritor, idealizador de programas de TV, como o recém lançado Central da Periferia, da TV Globo, e pesquisador musical. Um paraibano com uma paixão encantadora pela cultura brasileira.

Em março deste ano, ele lançou o site overmundo.com.br, um verdadeiro caldeirão de cultura brasileira que reúne informação cultural do Brasil inteiro e é canal de divulgação e discussão para essas manifestações. “A produção sobre cultura no Brasil é muito centralizada no Rio de Janeiro e em São Paulo”, justifica Hermano. O site disponibiliza de forma gratuita um banco de dados para todos os estados do país em que as pessoas podem divulgar suas músicas, textos, vídeos e artes visuais, e se expressar, debater e eleger as melhores produções culturais.

A estrutura tecnológica do site funciona como um blog, que permite a qualquer um postar a sua notícia ou divulgar o seu trabalho. O único filtro que existe vem da própria comunidade, que comenta e vota nos trabalhos postados. Existe uma equipe de correspondentes em todo o Brasil trabalhando diariamente para montar o site e colocá-lo no ar, mas que não gera conteúdo. Mas, segundo o antropólogo, em um ano o Overmundo estará funcionando por conta própria. “O papel da equipe passou a ser muito mais de divulgação do que de busca de conteúdo. E o site está preparado tecnologicamente para essa equipe desaparecer.”

O pesquisador conta que em Manaus, por exemplo, uma fundação cultural gravou cem discos de produção local dos quais não se tem notícia no Sudeste. “Ficou mais fácil com o barateamento do micro e dos equipamentos de produção musical as pessoas produzirem seus próprios discos e vídeos. O problema deixa de ser o dinheiro que você gasta e passa a ser o gargalo, como você vai distribuir isso”, explica. “Diante dessa quantidade avassaladora de produção não tem mais como os críticos de música escutarem e verem tudo o que está sendo produzido. A internet facilita que muitas pessoas escutem e leiam as coisas criando suas próprias maneiras de classificá-las. E é algo muito maior, é uma tarefa coletiva”, complementa.

Hermano atribui esse olhar periférico que adquiriu sobre a cultura do país à vida praticamente nômade que levava quando criança. Em função do pai, que era da Aeronáutica, a família mudava de cidade a cada dois anos. “Esse aprendizado que a gente teve que desenvolver, de que as coisas estão sempre mudando, permanece para sempre. Aprendi a ter um panorama diferente do Brasil desde muito cedo e isso foi o motivo que me levou a fazer antropologia”, conta.

COMIDA SÃ

Jocelem Mastrodi Salgado

Professora titular de nutrição da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (ESALQ-USP)

Missão: pesquisar alimentos que possam prevenir doenças

Há mais de 35 anos desenvolvendo pesquisas com alimentos funcionais, Jocelem Salgado é uma autoridade internacional quando o assunto é nutrição voltada para a prevenção de doenças. Responsável pela criação do alimento Sanavita na década de 1980, ela foi também a pessoa que trouxe o termo “alimentos funcionais” para o país quando pouco se falava sobre o assunto por aqui. Hoje presidente da Sociedade Brasileira de Alimentos Funcionais e professora titular do curso de ciência dos alimentos da ESALQ, ela conta que começou a relacionar os alimentos com a redução do risco de doenças no início dos anos 70, quando o curso de nutrição ainda nem era regulamentado no Brasil.

A primeira prova de que ela estava indo pelo caminho certo foi dada logo no primeiro ano da faculdade de economia doméstica da ESALQ, em 1969. Com a orientação da professora norte-americana Eva Wilson, que havia trazido o curso home economics para o Brasil, ela iniciou uma pesquisa em que relacionava uma substância presente nos feijões à ocorrência de cálculos renais. O resultado foi uma bolsa para dar continuidade às suas pesquisas concedida pela Fundação de Amparo à Pesquisa de São Paulo (Fapesp).

Seu interesse pelo que viria a ser denominado quase 20 anos depois de “alimentos funcionais” foi crescendo cada vez mais e seus estudos nessa área nunca mais pararam. Em 1984, ela desenvolveu um alimento específico para obesos, o Sanavita, que originaria a empresa de produtos funcionais de mesmo nome. “Sabia que o segredo estava na alimentação, então criei um alimento que tivesse uma quantidade de fibra que saciasse, mas ao mesmo tempo nutrisse.” A idéia de Jocelem foi criar um complexo alimentar apenas com o que o seu corpo precisa de cada nutriente e na quantidade certa.

Atualmente, a pesquisadora coordena um grupo de extensão universitária chamado GEAF (Grupo de Estudos de Alimentos Funcionais). Entre os estudos que estão sendo elaborados atualmente, ela analisa junto com o biólogo Marcelo Carneiro da Silva alimentos que possam prevenir traumas causados pela prática excessiva de esportes, como inflamações, osteoartrite e artrites. Ela explica que existem alimentos que atuam sobre o sistema imunológico, como por exemplo, o ômega 3, que faz com que o corpo produza substâncias antiinflamatórias.

Com o objetivo de dividir com todas as pessoas os conhecimentos adquiridos ao longo de sua carreira, a dra. Jocelem criou no ano passado seu site oficial www.jocelemsalgado.com.br, uma página repleta de informações sobre alimentação e saúde. “Amo muito o que faço. Costumo dizer que o alimento é o tempero da alma e a alegria do coração.”


DETERMINADO

Alcino Neto, Pirata, 36 anos

Diretor do Comitê Paraolímpico da International Surfing Association (ISA)

Missão: incentivar o surf adaptado

De um acidente ele criou o seu lema: o impossível está na mente dos acomodados. E decidiu perseguir um ideal de vida. Aos 15 anos, Alcino Neto perdeu uma perna. O apelido pelo qual é conhecido hoje – Pirata – não existiria se não fosse um motorista embriagado que o atingiu em cheio com seu veículo e fugiu.

Morador do Guarujá, litoral sul paulista, e surfista desde os oito anos, Pirata já corria alguns campeonatos locais e pensava em ter uma carreira ligada ao surf. Apesar das mudanças de rumo, seu destino não o afastou do esporte. Logo após o acidente, sem grana pra investir numa perna mecânica, Alcino tentou montar em casa uma prótese de madeira. Aquela primeira prótese não serviu, mas gerou uma gozação por parte dos amigos, que acabou lhe rendendo o apelido que permanece até hoje.

Pirata já experimentou mais de 15 próteses, mas nenhuma delas podia ser molhada na água do mar. A determinação em querer voltar a surfar em pé o levou a montar a sua própria perna mecânica. “O problema é o joelho, que tem engrenagens que enferrujam, então montei uma prótese caseira, com alumínio, polipropileno e borracha”, diz Pirata, que ainda está se aprimorando nas ondas com a prótese. “Como não tinha prótese de água, desenvolvi o surf com uma perna só. Mas o legal da prótese foi que ela me facilitou a entrar no mar sem ficar pulando, que era uma coisa muito chata.”

Desde 1996, Pirata tem o compromisso de abrir fronteiras no surf adaptado. Com a inauguração da escola Pirata Surf, na praia das Pitangueiras, no Guarujá, em uma iniciativa pioneira no Brasil, ele ensina o esporte para paraplégicos e deficientes de mão e perna. Em 2003, teve a idéia de colocar o surf adaptado dentro de uma associação e procurou a ADD (Associação Desportiva para Deficientes). Desde então, conta com a parceria deles no desenvolvimento do esporte.

Ano passado ele esteve em Huntington Beach, em San Diego, na Califórnia, para participar da competição ISA Games. Sua performance durante o intervalo das baterias deixou muito gringo de boca aberta. “Era o começo do projeto da ISA”, conta Pirata, ao mencionar a fundação do Comitê Paraolímpico na International Surfing Association (ISA).

Hoje, como diretor do comitê, ele desenvolve junto com a entidade o primeiro programa internacional voltado para surf adaptado, o Surfing for All. “A gente fez um vídeo didático que está indo para as federações e escolas de mais de 30 países, mostrando as técnicas apropriadas para o surf adaptado.” O objetivo a longo prazo é criar uma categoria só para deficientes dentro do ISA Games. A iniciativa conta com o apoio da Hang Loose e da Quiksilver Foundation. “Quero introduzir as pessoas com deficiência no surf. Fui eu quem deu o start no ensino, mas meu trabalho agora é desenvolver mais e mais. Não quero ser o primeiro, nem o único.”

CONEXÃO DIRETA

Alessandra Marine*, 40 anos

Missionária

Missão: desenvolvimento de povos

A vontade desde o início era ajudar pessoas, mas ela não sabia como. Até que alguém mostrou o caminho – para ela foi Deus. Alessandra Marine tinha 26 anos quando se mudou para o Canadá para fazer um mestrado em psicologia cristã, curso que não existia aqui no Brasil. Hoje, 14 anos e muitas reviravoltas depois, ela mora na China com o marido e os dois filhos e trabalha como missionária.

Na cidade onde vive, o governo às vezes corta a água e a luz, sem avisar. “Aqui a vida é diferente. Você não tem tudo toda hora”, conta. Durante a entrevista, ela pergunta várias vezes se estou entendendo o que ela quer dizer – uma clara demonstração de que não temos idéia do que se passa na China, um país comandado por autoridades comunistas que recentemente abriu as portas de sua economia para o capitalismo e vem crescendo de forma desenfreada – é a 4ª maior economia mundial. “Já vimos muitas pessoas serem mandadas embora do país. Recentemente, o governo fechou todas as fundações e só quer manter as companhias que tenham lucro. Para eles, o que a gente faz não é importante. O que eles querem é dinheiro.”

A escola que Alessandra procurava para fazer sua pós-graduação no Canadá tinha fechado e ela ficou um tempo sem trabalho. Durante um curso, foi mandada para o oeste do país para ensinar uma comunidade indígena. “Lá, percebi que eu não sabia o suficiente para ajudar o povo. Eles me perguntavam: ‘Por que você vem aqui ajudar a gente?’. Eu não sabia responder. Foi aí que resolvi estudar teologia.”

Quando conheceu o marido canadense, começaram a unir esforços para trabalhar com pessoas carentes e procuraram uma agência que envia pessoas para esse tipo de missão. Voltar para o Brasil era uma possibilidade, mas eles acabaram rumando para a Ásia, mais exatamente para Katmandu, no Nepal, onde ficaram um ano e meio. Lá, iniciaram uma escola de treinamento vocacional para o povo. “As pessoas de lá são bem simples e nós trabalhávamos com os tibetanos refugiados, ensinando e ajudando-os a achar uma vocação para que pudessem fazer parte da sociedade.”

No grupo do qual eles faziam parte, cada profissional atuava de acordo com a sua formação, ensinando coisas do dia-a-dia: noções de higiene, educação, criação de animais, outras línguas. “O nosso trabalho busca a transformação da comunidade e isso envolve transformar as pessoas e conectá-las para que possam mudar de vida.”

De Katmandu, o casal voltou para o Canadá, onde tiveram o segundo filho, e depois foram mandados para uma nova missão, dessa vez na China, onde estão há sete anos. “Hoje não lidamos mais direto com as comunidades, a gente treina os líderes que estão com as mãos nessas comunidades.” Agora, a missão deles é apenas espalhar a semente. “A gente ajuda várias pessoas ao invés de uma só.”

*A entrevistada pediu que seu nome e a cidade onde mora não fossem divulgados, por receio de sofrer repressão do governo – mesmo estando legalmente no país.

ZEN

Marcello Árias Danucalov, 39 anos

Professor, pesquisador e fisiologista

Missão: estreitar o elo entre a espiritualidade e a ciência

No final do século passado, alguns pesquisadores comprovaram biologicamente como funcionam as engrenagens no nosso cérebro e como nossos pensamentos e a fé influenciam a saúde. Com as tecnologias que permitem ver in loco o que acontece com a mente em momentos diferentes, as pesquisas evoluíram e, entre as novidades, uma que chama a atenção é a de que nossa mente está toda gravada por coisas boas e ruins. O pensamento que você gera no cérebro estimula uma glândula ou outra que libera hormônios diferentes que vão agir em nosso sistema imunológico. Ou seja, um pensamento ruim pode “patrocinar” a sua doença e o pensamento bom, a sua saúde.

Essas e outras descobertas estão no livro do fisiologista Marcello Árias, coordenador do Grupo Integrado de Pesquisas em Ciências da Saúde (Gipecs) da Unimonte, em Santos. O trabalho feito em conjunto com seu aluno de pós-graduação Roberto Serafim Simões é uma compilação de 1.200 artigos científicos, sob o título Neurofisiologia da Meditação – Investigações Científicas no Yoga e nas Experiências Místico-religiosas: a União entre Ciência e Espiritualidade.

“Uma oração, quando feita de forma contundente, pode ser um tipo de meditação, porque a pessoa fica centrada e se dedica àquela coisa única naquele momento”, afirma Marcello Árias, que no Gipecs direciona também uma linha de pesquisa inédita no Brasil chamada fisiologia da espiritualidade humana. “A fé não necessariamente tem a ver com religião institucionalizada. Mas sim com você sentar na areia, olhar para o céu e falar: ‘pô, tem algo muito grande aí e do qual eu faço parte’”, desmistifica o pesquisador.

Formado em educação física, com pós-graduação em fisiologia do exercício, ioga e mestre em farmacologia, Árias também dá aulas de pós-graduação em seis universidades e foi introduzido no mundo da espiritualidade e da meditação quando moleque, tendo seu pai como mestre e o mar como guia. Ele buscava alimento para a mente nos livros e a prática meditativa na água, entre uma onda e outra. Do pai, ele ouvia explanações metafísicas de diferentes doutrinas religiosas e ficava a par das descobertas sobre o desenvolvimento psíquico humano.

Em 1982, em uma coluna publicada no clube de surf local, Árias descreve suas emoções com relação ao surf: “o mar, o céu, o ar, o vento e o sol me transmitem uma grande paz interior e, quando saio da água, lá deixo todos os meus problemas”. Com 14 anos, ele estava meditando. E a resposta de seu pai não poderia ser melhor. “Talvez você não perceba a profundidade desse teu sentir, mas esta comunhão com a natureza, este sentimento é um verdadeiro se fundir ao Absoluto, a Deus, ao Eu maior, que só se manifesta através da meditação profunda. O surf é uma das mais importantes técnicas de meditação e comunhão com o Divino.”


MÉDICO SEM FRONTEIRAS

Rubens Belfort, 60 anos

Professor titular do departamento de Oftalmologia da Unifesp e presidente do Instituto da Visão

Missão: uma vida dedicada ao trabalho voluntário com comunidades indígenas

Rubens Belfort Jr. sempre foi um homem de visão. Ainda universitário, quando tinha apenas 20 anos, lançou-se à floresta Amazônica como um dos integrantes voluntários do primeiro grupo de médicos e residentes a realizar um projeto de saúde com os índios krenacore, ou “índios gigantes”, do Xingu. A missão fazia parte do programa de medicina preventiva da Escola Paulista de Medicina e levava médicos para a região para operar as cataratas dos índios da tribo. Foram três anos de mutirão e experiências fantásticas em território nada familiar para os jovens estudantes.

Os resultados da expedição aumentaram seu ímpeto de aventura e a sede por conhecimento, e Belfort resolveu aceitar o chamado do mundo novo e cheio de possibilidades que lhe abria as portas. Partiu, então, para a fronteira com a Venezuela, onde descobriu uma nova doença, a oncocercose ocular, que afligia os índios ianomâmis. A necessidade de melhorar a visão (tanto a dos outros como a própria) continuou a empurrá-lo para longe de casa, e Belfort se mandou para os limites que nos separam da Colômbia. No alto do rio Negro, entre montanhas majestosas e cachoeiras vigorosas, tratou de índios com tracoma. No caminho rico em descobertas, trabalhou com os indianistas e sertanistas Cláudio e Orlando Villas Bôas, que eram conhecidos de sua família.

O currículo do dr. Belfort Jr. é imbatível no Brasil. Um dos grandes nomes da oftalmologia mundial, ele é professor titular da Unifesp, onde preside o departamento de Oftalmologia – o maior da América do Sul –, presidente da ONG Instituto da Visão, ligado à universidade e membro da Academia Brasileira de Medicina e da Academia Brasileira de Ciências. Diversas vezes premiado, em fevereiro deste ano dr. Belfort conseguiu vencer uma batalha antiga: trazer o Congresso Mundial de Oftalmologia para o Brasil, no qual foi presidente. O evento, que nunca havia sido realizado na América do Sul, reuniu 16 mil médicos do mundo todo e pela primeira vez teve um presidente latino-americano.

Seus 30 anos de trabalhos com os índios da região amazônica são respeitados e requisitados internacionalmente. Atualmente, sua menina dos olhos é uma pesquisa que estuda quais os fatores ambientais que influenciam no desenvolvimento da miopia. “Historicamente, os índios do Brasil não tinham miopia”, afirma Belfort. Os efeitos do contato com a civilização transformaram esse panorama. “Os índios mudaram a alimentação e passaram a freqüentar a escola. E a miopia começou a aparecer”, continua, antes de fazer a polêmica revelação. “Estamos descobrindo que, para os olhos, a escola normalmente faz mal.” O estudo levará três anos para ser concluído e poderá ser aplicado a todos, e não apenas aos índios e míopes. Uma questão de visão e vanguarda.


ON THE ROCKS

Jefferson Cardia Simões, 47 anos

Pai da glaciologia brasileira

Missão: mostrar a importância do estudo das geleiras para o Brasil

Ele criou o primeiro laboratório brasileiro dedicado ao estudo do gelo da Antártida e dos Andes e hoje é considerado o pai da glaciologia brasileira. Jefferson Simões, atual vice-delegado brasileiro no Comitê Internacional de Pesquisas Antárticas (SCAR) do Programa Antártico Brasileiro (Proantar), empreende esforços há mais de 15 anos para mostrar para o Brasil que o gelo do planeta Terra é mais importante para nós brasileiros do que para os Estados Unidos – apesar de não termos nenhuma geleira por aqui. A explicação é simples: “Nós estamos muito mais próximos dele”, ressalta o pesquisador, lembrando que 90% do gelo da Terra está localizado na Antártida.

Reconhecido como uma autoridade em glaciologia no Brasil, e já tendo viajado o mundo para representar o país em outros programas antárticos, Jefferson está envolvido com os estudos sobre gelo e geleiras desde o início da década de 1980. Quando criança, não fazia idéia da existência de uma profissão especializada no estudo da neve e do gelo. Menos idéia ainda teria de que ele viria a ser o idealizador e introdutor dessa área do conhecimento científico no Brasil. Mas as histórias que lia já lhe aguçavam a mente e não deixavam mentir a sua vocação. “Sonhava com a exploração polar através da leitura da época heróica das expedições na Antártida e no Ártico do final do século 19 e no início do 20”, conta Jefferson.

Em dezembro de 2004, Jefferson também escreveu a sua história de pioneirismo ao ser o primeiro brasileiro a atravessar a Antártida por terra para atingir o pólo Sul geográfico, ponto central do continente. Antes dele, quatro pessoas já haviam chegado ao pólo Sul, porém voando. O feito se deu exatamente 20 anos depois de Jefferson ter sido também o primeiro brasileiro enviado ao exterior para estudar em um dos maiores institutos polares do mundo, o Instituto de Pesquisa Polar Scott da Universidade de Cambridge (Inglaterra), onde obteve treinamento e seu Ph.D. Nos anos seguintes, ele esteve três vezes no Ártico, 13 na Antártida e por três vezes dentro de uma fenda de gelo.

Gaúcho, hoje o professor da UFRGS está realizando um sonho. Depois de fundar a primeira equipe de investigação glaciológica brasileira há 14 anos, e treinar longamente estes grupos, no dia 8 de junho deste ano ele inaugura pelo Proantar o primeiro laboratório nacional de monitoramento de geleiras no mundo, idealizado por ele e oficialmente denominado Laboratório de Monitoramento da Criosfera (conjunto do gelo na Terra, formado por geleiras, calotas de gelo, mar congelado, e que ainda cobre 10% da área do planeta). “É a oficialização de nosso trabalho.”

VERDE-ÁGUA

Mário César Mantovani, 51 anos

Diretor de mobilização da SOS Mata Atlântica

Missão: mobilizar para proteger

Com 35 anos de história ligada à luta pela preservação da biodiversidade do país, Mário César Mantovani extrapola quando o assunto é meio ambiente. Seu espírito ativo e o jeito entusiasmado de falar evidenciam a paixão pelo que faz, sentimento com a raiz numa história antiga, que começou na década de 1970, na cidade de Assis, interior de São Paulo, onde nasceu. “Gostava de acampar, andar no mato, olhar para o céu… E também gostava de uma menina que era meio natureba e bastante ligada nesse negócio de natureza”, diverte-se. Em 1973, Mário fez um curso de educação ambiental quando não existia nada de movimento ambientalista no mundo e muito pouco se falava sobre a proteção do meio ambiente no Brasil.

Hoje ele é diretor de mobilização da maior organização ambientalista do país, a SOS Mata Atlântica, que tem cerca de 100 mil sócios e este ano completa 20 anos de luta. Antes de atuar na ONG, ele trabalhou em vários projetos ligados ao meio ambiente, mas sua carreira como ambientalista sempre esteve ligada à água. Formado em geografia, com especialização em gestão ambiental e manejo de bacias hidrográficas, Mário implementou os consórcios intermunicipais de bacias hidrográficas, que foram a base para a legislação de água no Brasil. “A gestão de água era muito centralizada. O rio era visto como a extensão de uma tomada. Era usado só para levar dejetos e para gerar energia. A gente mudou isso”, conta o ambientalista.

Em 1990, Mário foi chamado para trabalhar com água na SOS. Sua missão era criar e coordenar o núcleo União Pró-Tietê, que monitora a qualidade da água na cidade por meio da atuação de 300 grupos e com a ajuda de mais de sete mil voluntários. Os trabalhos da SOS sempre tiveram repercussão e proximidade muito grande com a sociedade, com formas inovadoras de preservação, como a campanha on-line Click Árvore (em que as pessoas podem “plantar” árvores pela internet). “A questão do meio ambiente é muito dinâmica. Em vez de ir pra frente do trator, prefiro ver como o BNDES vai financiar uma atividade num plano de negócio de uma empresa, interceptar a negociação de projetos e exigir a variável ambiental. Não dá mais pra você ficar lá na frente reclamando com aquela passionalidade.”

Mesmo assim, nossa mata continua constantemente ameaçada, lembra Mantovani. “De sua cobertura original, restou apenas 7%, e o ritmo de devastação é um campo de futebol de floresta a cada 4 minutos”, ele não cansa de repetir. “E não adianta esperar dos políticos. A política nunca levou a sério o meio ambiente”, ataca. “As pessoas precisam saber que a mata atlântica é a floresta mais ameaçada hoje e que é ela que dá água, garante a qualidade do ar, a fertilidade do solo. E que existe uma forma de conservação onde todos ganham – não é só para o ambientalista e pro bichinho”, diz.

(Reportagem publicada originalmente na revista Go Outside de junho de 2006)







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