Por Fernanda Franco É quase que cronometrado. Quando o sol aponta no horizonte, faltam apenas três minutos para a largada. Na praia, a ansiedade e a agitação cedem espaço à contemplação do dia. Depois disso, só dá tempo de dar aquela respirada final. Os 1.220 atletas que correm em direção ao mar largam para o Ironman Brasil 2006, a maior prova de triatlon da América Latina, com 3,8 quilômetros de natação, 180 quilômetros de pedal e, pra fechar, 42 quilômetros de corrida. Encarando essa pedreira, está desde a elite nacional e internacional do esporte, que briga pelas vagas do Ironman no Havaí, quanto atletas amadores em busca de um objetivo pessoal.
Por ser uma competição de endurance, o Ironman atrai atletas de outros esportes. Ciclistas, maratonistas e corredores de aventura que curtem provas longas mudam seus treinos para virar um “Homem de Ferro”. É o caso do corredor de aventura Carlos Eduardo Passini, 27 anos, o Cacá. Para o Ironman Brasil, Cacá treinou focado na prova por dois meses. Foi sua primeira experiência na competição. Apesar disso, ele era só tranqüilidade e confiança um dia antes da largada. A estratégia seria fazer força o tempo todo e manter uma alimentação já assimilada pelo corpo nas provas de aventura. Resolvemos acompanhá-lo na prova.
Habituè das corridas de aventura longas (com mais de duas noites), Cacá ainda tinha na bagagem uma ultramaratona de corrida de 24 horas, disputada num circuito de 400 metros – quem der mais voltas, ganha. Ele deu 395 voltas na pista, num total de 158 quilômetros, e só dormiu por duas horas. Ou seja, se na parte física ele estava bem preparado, no lado psicológico ele já era “macaco velho” em provas até mais longas que o Iron Man. “Parar, eu não paro”, garantia ele na véspera.
Segundo o triatleta Duda Fernandes, 31, trialteta que às vezes encara umas provas de aventura, o fato de ser corredor de aventura realmente ajuda no lado psicológico. “A cabeça do corredor de aventura é boa”, afirma. “Mas o ritmo da prova é diferente. O Ironman é mais intenso”. Para Sidney Togumi, 33, que também já participou de provas longas de aventura, o fato de ser individual e a “mesmice’ do circuito tornam o Ironman um exercício absoluto de persistência. “Não tem a equipe para te dar uma força. Não tem subidas, morros e terrenos acidentados. No Ironman você aprende a superar o tempo”.
O FATOR MAIS DETERMINANTE DA PROVA É O CLIMA, e o dia de sol em Floripa trouxe um vento forte e contra que deixou o pedal mais pesado, principalmente na segunda volta do circuito. Como 60% da prova são em cima da bike, se o atleta forçar muito o ritmo no pedal, ele pode “quebrar” na corrida. Esse não parecia ser o caso de Cacá. A reportagem da Go Outside encontrou com ele um pouco antes do fim da primeira volta de 90 quilômetros de bicicleta, e ele estava se sentindo tão bem que conseguiu até bater papo.
Foi durante o “pedal” que a prova se espalhou pela ilha. Com um circuito de 90 quilômetros, os espectadores arrumam uma base e esperam seu atleta passar para dar o empurrão moral: “Vaiiiiii, Fulano!”, gritam esposas, filhos, sogras e até torcida organizada. Aliás, organização é o nome da prova. Tirando o trânsito de Floripa, que sofre um pouco com o evento, para o participante tudo é megagilizado.
Logo que saem da água, um batalhão de assistentes arranca as roupas de borracha dos atletas. Não fosse pela adrenalina, a cena seria cômica. Os marmanjos e as meninas se jogam de costas no chão e os staffs arrancam as roupas pelas pernas e braços, sem dó. As transições são feitas todas dentro de um local fechado onde cada atleta tem suas trocas de roupa em sacolas numeradas e organizadas. Na transição da bike para a corrida, tudo é planejado para que o competidor não pare um segundo. Quem carrega a bicicleta para o bike park é o staff. O atleta vai direto trocar as sapatilhas pelo tênis.
Como ficam em cima da bike por cinco a oito horas, as caretas ao descer da magrela são praticamente uma unanimidade. Todos saem mancando, desengonçados — uma mistura da não aderência da sapatilha ao asfalto com a “travação” do corpo depois de tanto tempo em cima do selim.
Agora falta a maratona. Para Cacá, já tinham se passado mais de sete horas de prova. Ele correu pela reportagem sorridente, fazendo um sinal de “joinha”. Parecia inteiro. Mas, depois da metade da maratona, o cenário mudou. “Essa ‘bagaça’ dói, hein?”, reclamou quando faltavam “só” 21 quilômetros. Naquele momento, com nove horas e tanto de prova, somente 100 competidores haviam cruzado a linha de chegada. Para os mais de mil que ainda estavam no páreo, inclusive ele, o importante era usar corretamente os postos de abastecimento — que serviam água, Gatorade, Coca-Cola, sal, bananas e bolos — e manter a cabeça focada na chegada, sem deixar o ânimo e as pernas desabarem.
Depois de mais de quatro horas correndo, Cacá cruza a linha de chegada com a marca de 11h19m39s, quase 50 minutos a mais que sua meta inicial, e na 380ª posição. Desafio vencido e mais experiência assimilada pelo corpo, Cacá, assim como muitos outros competidores, teve que diminuir o ritmo do pedal, girando mais leve na segunda volta, por ter forçado demais no começo e também por causa do vento contra. De Floripa, ele trouxe a camiseta de “Finisher”, pouquíssimas dores no corpo e mais respeito pela prova. “Mudei meu conceito. Você é obrigado a manter uma constância na prova muito forte. E por ser individual, você está sempre no máximo, buscando seu limite.”
NO LIMITE, ESTAVA JORGE ROMÃO, 58 anos. Funcionário público aposentado do Espírito Santo, seu Jorge corria os últimos 20 metros do percurso quando já eram mais de 9 horas da noite. Não havia quase nada do clima de festa da prova e pouquíssimas pessoas esperando os guerreiros que ainda chegariam. Mesmo assim, o senhor franzino cruzou a chegada com o tempo de 14h37m04s de prova, mancando e com um jornal sob a camiseta, para aquecer seu corpo. Foi rapidamente encaminhado à enfermaria, que mais parece um hospital militar em tempos de guerra.
Com dores abdominais e nos pés, seu Jorge tomou soro intravenoso e depois foi massageado e alimentado. Tão logo recuperava as forças, ele já falava nas próximas provas e no Ironman 2007. “Segunda-feira estou no site. Gosto de me inscrever logo para pegar numeração baixa”, confessou. “Isso aqui é minha cachaça, menina”. Ex-alcoólatra, sóbrio há 13 anos e praticante de triatlon há sete, o atleta diz que não vai parar mais e que a cada largada se sente nervoso como se fosse a primeira vez. Esse ano, seu Jorge conseguiu diminuir 45 minutos de seu tempo sobre a bicicleta, pois correu com um modelo mais leve, de carbono.
Depois da chegada do capixaba, ainda havia mais duas horas e tanto de prova – o limite estipulado pela organização para os atletas completarem a prova é de 17 horas. Mas o tempo já não importava mais. Àquela altura, cruzar o pórtico é como estar no pódio, mesmo com pouca gente para aplaudir. E, coincidentemente, o Ironman Brasil 2006 foi fechado pelo seu Adir, o mais “experiente” competidor. Ele tem 74 anos, é de Santa Catarina, e chegou depois de 16h54m21s de esforço, recebendo os aplausos dos que ainda estavam lá, como eu. Parabéns seu Adir, mandou bem.
(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de julho de 2006)
PEDAL SEM FIM: Atleta pedala os 180 km do trecho de bicicleta pela orla de Floripa
Fotos Alexandre Cappi
DOR: Socorro imediato na chegada