Alagados


VILA DE TARTARUGUEIRO: Após saída de Belém, expedição descansa às margens do rio Arari

Texto e fotos por Adriano Gambarini

A neblina nem sumiu direito e o sol quente já prenuncia algo novo e ousado que está para acontecer nas águas que banham Belém, no Pará. A movimentação no píer é acompanhada pelos olhos desconfiados do povo local. Um ou outro curioso se arrisca a chegar perto daqueles caras vestindo dry suits amarelos e tentando, a todo custo, enfiar dezenas de sacolas plásticas dentro de compartimentos nos cascos de caiaques oceânicos.

– “Aonde vocês vão?”, pergunta um dos locais.

– “Vamos remar pela baía até Mexiana, cruzando Marajó pelo rio Arari”, explica Dênis Oliveira, idealizador da expedição.

– “Nesses casquinhos? Chega não. Num chega nem a Cotijuba [25 quilômetros dali]”.

Independente da descrença, organizar os caiaques é mais emergencial do que confabular com os “uruquentos”, já que a maré muda com muita rapidez. Somos uma expedição de sete pessoas prontas pra enfrentar, remar e decifrar cantos e recantos escondidos da ilha de Marajó. A proposta é sair remando de Belém, cruzar a temida baía de Marajó e seguir pelo rio Arari, que corta praticamente de sul a norte toda a ilha. Já no extremo norte, tentaremos cruzar o Canal do Sul, um dos braços violentos da foz do rio Amazonas, e terminar a viagem na ilha Mexiana, exatamente no marco zero da linha do equador. Uma “viagenzinha” de 15 dias e 350 quilômetros.

Murilo Bellesi, um dos sócios da Kaluanã Esportes de Aventura e responsável pela logística da expedição, olha incessantemente para o relógio. É hora de partir. Cinco caiaques oceânicos, sendo um deles duplo, seguem rumo ao desconhecido. Embarco num veleiro que se dispôs a nos acompanhar nos dois primeiros dias da viagem. Havíamos decidido que a melhor maneira de documentar a expedição seria seguir uma parte num barco de apoio e outra remando com os aventureiros. Logo no fim da baía de Guajará, o veleiro encalha gravemente nas ferragens de um barco naufragado, invisível nas águas barrentas, e tenho de seguir num pequeno barco de madeira.


CAMUFLADO: Murilo rema em meio a um campo na ilha Mexiana

NO DIA SEGUINTE, TALVEZ O MAIS RADICAL, enfrentamos a baía do rio Pará, conhecida por seu mau humor. Os remadores estavam confiantes e estimavam cruzar a baía em 6 ou 7 horas, mas uma maré agitou de tal forma a água que um dos remadores passou mal, o que acabou atrasando a passagem de toda a equipe. Enquanto prestamos socorro com o barco de apoio, o comboio rema forte na tentativa de recuperar o tempo perdido e chegar à Vila de Tartarugueiro, na entrada do rio Arari.

Tartarugueiro foi fundada por descendentes de escravos. Com cerca de 80 pessoas, praticamente todos parentes, a comunidade vive da pesca, produção de açaí, bacuri, mandioca e outras frutas amazônicas que são vendidas semanalmente nos mercados de Belém. Com uma simpatia que só se encontra no interior do Brasil, todos nos convidam para dormir em suas casas. Aceitamos com gosto, é claro.

É comum associar a ilha de Marajó a campos alagados e búfalos. Mas existe no local uma grande diversidade de ecossistemas, que variam de padrões amazônicos com árvores altíssimas a campos com vegetação rasteira. Começamos a usar os famosos furos –pequenos atalhos entre os campos que cortam e confundem os caminhos. Na linha d’água tudo é absolutamente igual e é fantástica a capacidade dos moradores de se localizarem naquele mar de pasto e flores aquáticas. Apesar de estarmos navegando com GPS e mapas, sempre que possível parávamos em alguma casa ribeirinha pra nos certificar do caminho e saber de possíveis atalhos.

No quarto dia de viagem, as avarias começam a despontar – bendito seja o silvertape e as tiras de borracha! Com um dia de atraso, chegamos finalmente à Cachoeira do Arari e podemos descansar um pouco com uma cerveja estupidamente gelada e um peixe pra rebater as barrinhas de cereais e o Miojo.


REMO: pelo rio Arari

JÁ É FINAL DE TARDE e estamos chegando à vila de Jenipapo, considerada a maior estiva do mundo. Trata-se de uma grande vila suspensa em palafitas, toda em madeira e, dizem, com mais de 10 quilômetros de pontes que ligam as casas, igreja e comércio. Seguimos pelas margens do lago Arari até a cidade de Santa Cruz do Arari. Apesar de um entardecer fabuloso, uma maré agitada castiga os remadores. Tive de ficar nas margens do rio que banha a cidade, emitindo sinais com uma lanterna poderosa para que eles pudessem navegar na escuridão.

Santa Cruz do Arari é um importante “porto” à beira do lago, passagem para os barcos que transportam pessoas e mantimentos de Belém até a borda norte da ilha. Ali, os búfalos, montados como se fossem cavalos, com direito a cela e alforje, ficam estacionados na entrada dos bares, onde vaqueiros (ou será bufaleiros?) se acotovelam entre as mesas de sinuca. Dali em diante, seguiremos pelos furos até o Canal dos Mocoões, para tentar recuperar o atraso.

No sétimo dia de viagem, os calos e as micoses mostram sua força, mas sem tirar nosso entusiasmo – afinal, de agora em diante a corrente corre a favor. Esta característica fluvial na ilha é muito interessante. Até chegarmos ao Lago, pegamos corrente contra praticamente o tempo todo, já que as águas do rio Arari deságuam no rio Pará. Já na porção norte é o contrário. Pelo fato do canal dos Mocoões – construído artificialmente para facilitar o trânsito de barcos que transportam búfalos – ser mais estreito, a corrente chega a parecer uma corredeira.

Não podemos mais parar nas margens, principalmente com o barco de apoio. A região durante muito tempo foi atacada por ladrões de gado e, para evitar roubos, os fazendeiros contratam jagunços para proteger suas margens. Então é comum avistá-los cavalgando com espingardas em punho e cara de poucos amigos.

A MÉDIA DE QUILOMETRAGEM DIÁRIA tem beirado os 30 quilômetros, mas nesta região teremos que acelerar. As sedes de fazenda, como a que nos abrigou alguns dias atrás, são cada vez mais escassas. As margens do canal são úmidas, enlameadas, com uma vegetação de arranha-gatos muito densa, nada convidativa ao acampamento. Sem contar os mururés, nome regional dado ao aguapé, que surgem como por encanto, fechando o canal e dificultando muito a remada. Num trecho assim, Lobato, um dos remadores, nascido na ilha, sobe no barco de apoio, deita-se na proa e, com um facão, fatia as plantas, abrindo passagem para os caiaques que vêm atrás. Surge outro barco maior, rasgando o caminho. Pegamos o vácuo dele e conseguimos atravessar até a fazenda Santa Elias, depois de quase 50 quilômetros remados. Já era de noite, na hora da sucuri!

No outro dia seguimos por mais furos pelos campos das fazendas – e é aí que mora o perigo. A igualdade das paisagens e a escassez de casas para nos dar informações nos fazem remar mais de 10 quilômetros na cilada. O cansaço, o sol escaldante e a preocupação de estarmos num lugar ermo atiçam os nervos de toda a equipe. Ficamos algumas horas num vai e vem nervoso, até conseguirmos informações com uma canoa. Pegamos o trilho certo e decidimos seguir até Arapixi, a última cidade antes de enfrentarmos o Canal do Sul. Nossa estrada agora é o rio Egito, de águas negras e frias, estreito, pouco ensolarado e muito sinistro. Cenário perfeito para filmes tipo Anaconda ou Piranhas Assassinas.


LANCHE: Pausa para o lanche no canal dos Mocoões

Arapixi parece uma cidade cenográfica. Formada por um ‘quadrado’ de casas de madeira que circundam a igreja, todas cuidadosamente pintadas, reformadas e suspensas, é rodeada por plantações de açaí e palmeiras buriti. Permaneceremos ali um dia inteiro, no aguardo da melhor maré. À noite, ao conversar com os pescadores, decidimos sair de madrugada e eles mais uma vez expõem um sorriso que mistura sarcasmo e nervosismo, nitidamente nos achando loucos de cruzar o canal com esses ‘casquinhos’.

Nos precavemos com quatro rádios espalhados pela equipe e tentamos formar um V invertido, para que todos possam se ver e se policiar. De longe, parece que estamos entrando numa panela em ebulição. A maré forma ondas enormes. A tentativa lógica de seguir beirando a margem e tentar cortar reto o canal vai literalmente por água abaixo quando o caiaque duplo vira. Eles conseguem desvirar, mas ficam completamente alagados. Com arriscadas manobras, resgatamos o casal e o caiaque, que está trincado e sem diversos acessórios. Com uma sensatez frustrante, abortamos a travessia, já que outro remador deslocou o ombro direito. As lanchas do hotel nos resgatam na margem da foz do rio Egito.

A saída foi entrar na ilha Mexiana pelo rio Jacaré, maravilhosamente intacto. Casais de araras vermelhas cortam o céu, e a vegetação densa da margem volta a ter árvores altas e imponentes. Remamos por mais 7 quilômetros até o próximo hotel, que nos dá todo o apoio logístico, alimentício e etílico – um oásis depois de tantos dias de adrenalina e cansaço.

No 11º dia a expedição está fragmentada. Três remadores voltam para Belém de avião monomotor. Os teimosos restantes seguem até o Marco Zero – travessia com direito a mais campos alagados, búfalos folgados, revoadas de marrecos selvagens e jacarés pacíficos. Nem o dia nublado é capaz de diminuir a emoção ao ver o GPS marcar 0000000 em suas coordenadas, ainda mais sabendo que a noite será regada à culinária marajoara, com pirarucu fresco, saladas e, de quebra, um açaí recém tirado, amassado e misturado com farinha. Depois do jantar, horas de conversa fiada e momentos relembrados. Afinal, não sabendo que era impossível, viemos e fizemos a viagem, mesmo com estes ‘casquinhos’!

Agradecimentos: Marajó Park Resort, Hotel Regente, prefeitura de Cachoeira do Arari, prefeitura de Santa Cruz do Arari, prefeitura de Arapixi, Paratur, Movimento Orla Livre, Eko e SEEL


(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de agosto de 2006)