Por Piti Vieira
Fotos por Dhani Accioly Borges
Folheie as páginas de uma típica revista de surf e o que você vê? Uma penca de surfistas homens fazendo manobras ousadas em inúmeros picos e campeonatos mundo afora. Ao lado das páginas editoriais, mais fotografias, desta vez de atletas famosos, posando para os anúncios dos patrocinadores, e garotas de biquíni mostrando a bunda e sugerindo que qualquer um que comprar o tal produto ganhará sua admiração. É uma pena concluir que, enquanto a indústria multimilionária da arrebentação deve uma parte “saudável” de sua renda às mulheres que compram acessórios de moda surf, as surfistas ainda permanecem pouco representadas na mídia e até dentro dos line-ups dos circuitos profissionais.
Em outras palavras, apesar de nos últimos cinco anos os fabricantes de boardsports e varejistas terem aumentado o foco nas consumidoras e, ao mesmo tempo, mais mulheres estarem surfando de pranchinha, funboard ou pranchão – ou pelo menos abraçando os elementos do estilo de vida desse esporte, ao se vestirem com marcas do setor –, por uma razão ou outra, em termos de imagem e realidade, a cultura do surf ainda pertence inacreditavelmente ao universo masculino. Isso em qualquer lugar do mundo. Um atraso no universo esportivo que, como bem coloca Megan Abubo, 28 anos, “é controlado por muitos porcos chauvinistas”. Megan é uma havaiana profissional do esporte, que em agosto esteve em Itacaré, na Bahia, para o Billabong Girls Pro Itacaré, uma etapa do World Championship Tour (WCT), que desde 1999 não era realizado na América do Sul.
Segundo a indústria norte-americana do setor, 15% dos surfistas no mundo são mulheres, e quase todo ramo da cultura, de filmes a revistas, parece celebrar um etos que é tão atado à testosterona quanto connoisseurs de charuto. De anúncios a música, a maioria dos sinais externos leva a pensar que o surf é, por meio de uma tradição profunda, se não genética, uma coisa de/e para homem. “Dentro do anacronismo do mundo machista do surf profissional, o respeito só vem quando você rasga uma onda como um homem e age como se não fosse nada demais”, diz a também havaiana Keala Kennely, 28, que está em sua 12ª temporada no circuito mundial e já foi várias vezes campeã nos temidos tubos de Teahupoo, no Tahiti.
“Até pouco tempo, se uma garota aparecesse em qualquer uma das revistas de surf, provavelmente era uma gostosa de biquíni se bronzeando na praia, não uma surfista séria”, emenda a australiana hexacampeã mundial Layne Beachley, 34, vice-líder do ranking e campeã da etapa brasileira, que em outubro fará sua estréia como organizadora de eventos ao realizar o Havaianas Beachley Classic, em Manly Beach, em Sidney, na Austrália. Layne e mais 16 outras melhores surfistas do mundo (oito australianas, três havaianas, as brasileiras Jacqueline Silva e Silvana Lima, uma norte-americana e uma sul-africana) estiveram em Itacaré, que se transformou por duas semanas na grande capital mundial do surfe feminino.
TODAS AS INTEGRANTES DO SELETO GRUPO DE 17 SURFISTAS que formam a divisão de elite do esporte (o WCT masculino conta com 42 atletas) não hesitam em afirmar que os homens surfam bem melhor que elas, mas que o surf feminino mudou para melhor depois que as mulheres conseguiram separar o circuito delas do masculino, em 1999. No fim dos anos 70, a Associação dos Surfistas Profissionais (ASP) incluiu uma divisão feminina em seu circuito de competições, mas a dos homens sempre teve prioridade. “Se as ondas estavam boas, quem entrava na água eram os garotos. As mulheres tinham de se contentar com os dias de mar virado. Quando eles estavam lá, a praia ficava lotada, ‘crowdeada’ de fãs e jornalistas. No dias em que a gente competia, todo o mundo sumia”, lembra Layne, que há nove anos corre o WCT e em 2000 fundou a International Women’s Surfing, junto com as companheiras Rochelle Ballard, Kate Skarratt, Megan Abubo e Prue Jeffries. O grupo é responsável pelo forte lobbie junto à ASP, que resultou nos eventos destinados somente às surfistas.
O esforço acabou resultando em apenas um evento em 2000, dois em 2001 e três em 2002 – ano em que os prêmios de US$ 30 mil por etapa duplicaram para US$ 60 mil. Mas levou um tempo para o WCT feminino achar patrocinadores. No começo, apenas as marcas Roxy e Billabong se interessaram, mas, em 2005, a Rip Curl resolveu apostar nas meninas e o circuito delas passou a ter oito etapas, com prêmios de até US$ 78 mil. Este ano, com a entrada das Havaianas como a quarta patrocinadora do circuito feminino, o tour delas terá a prova mais rica em 30 anos de surf feminino, com uma premiação de US$ 100 mil. Para se ter uma idéia, cada uma das 11 etapas do WCT masculino 2006 paga US$ 280 mil em prêmios.
A mesma defasagem é verificada em campeonatos nacionais. Cada etapa do Super Surf, o mais estruturado campeonato do Brasil, paga R$ 20 mil para as mulheres e R$ 80 mil para os homens. Por enquanto, as surfistas ainda faturam bem menos que os homens. Estima-se que um campeão mundial do nível de Kelly Slater, um dos maiores surfistas da história, ganhe por ano US$ 1 milhão, entre prêmios e salários. A número 1 feminina recebe no máximo US$ 200 mil anuais.
UMA HISTÓRIA INTERESSANTE ilustra bem a visão que os surfistas ainda têm das surfistas. Layne Beachley está concentrada dentro do barco, estreando uma nova pranchinha, vestida com um bermudão azul de jersey em cima do biquíni. É sua primeira bateria hoje, e os fotógrafos e jornalistas estão a postos para mais um dia de trabalho. Uma série de ondas entra. Elas brilham e começam a quebrar, uma depois da outra. Poucas pessoas viram G-Land, na Indonésia, tão grande quanto naquele dia, em maio de 1998.
Um par de salva-vidas a bordo de seus jet skis pára ao lado do barco. “Vocês, meninas, não têm de surfar isto!”, um deles grita. “Eles acham que é muito perigoso, mas querem que vocês decidam. Dedos polegares para cima ou dedos polegares abaixo, ok?”. “Eles” significam os juízes, os organizadores. Claro, “eles” também significam os caras. Quarenta e oito dos melhores surfistas do mundo estão na costa, muitos deles assistindo com binóculos. “Eles” estão esperando pelas mulheres fazerem a coisa delas, como se isto fosse um jogo de juniores antes dos profissionais entrarem em campo. Kelly Slater está lá, assim como Sunny Garcia, Rob Machado e Derek Ho. Ross Williams e Gary Elkerton estão programados para surfar na próxima bateria e parecem incrivelmente ansiosos para entrar na água. Ao mesmo tempo, querem ver como Layne se sairá – ela é objeto de muita discussão e alguma obsessão no circuito.
Layne tem o melhor cutback de todas as surfistas, avaliam eles, o estilo mais polido, a atitude mais séria. É dito que ela é a primeira mulher a surfar de um modo moderno, agressivo, com um centro de gravidade extremamente baixo e um estilo confiante que freqüentemente são descritos por surfistas como, bem, “surfando como um cara”. “Os surfistas ficam aterrorizados com ela”, diverte-se a assessora de imprensa da ASP, Melissa Buckley, 26, que cuida tanto do tour das mulheres quanto dos homens. “Na praia, acontecem coisas surpreendentes. Você vê todos os grandes surfistas encarando-a. Eles têm medo de vir conversar. Ela é realmente muito bonita e ama surfar. Assim, quando ela sai para o outside, todos ficam olhando com uma variedade engraçada de sentimentos, uma avaliação misturada com respeito”, conta ela, minutos antes de deixar seu inseparável lap top de lado e cair no mar de Itacaré.
Mas o que será que afasta patrocinadores e público das competições estreladas por mulheres? Os surfistas têm diferentes explicações, embora ninguém explique ao certo os motivos. Há teorias infinitas, soluções propostas e, sempre, um triste paternalismo. Mulheres não apresentam a mesma força remando e têm menos explosão para completar manobras mais radicais, eles dizem. Também ressaltam que falta a elas o ego necessário a um campeão e os nervos para suportar a pressão dos adversários.
Se você perguntar às mulheres, a resposta é unânime: é a mentalidade de clube do Bolinha que domina o esporte desde o começo. “Nós estamos adquirindo toneladas de exposição”, afirma a cearense Silvana Lima, 22, quinta colocada no ranking e terceiro lugar na etapa de Itacaré. “O surf de mulheres é agora um esporte altamente considerado, com bastante respeito. As garotas estão ficando mais corajosas e os movimentos delas estão se tornando agressivos. Embora a competição seja feroz, as surfistas são afetuosas umas com as outras e agem como irmãs, o que atrapalha um pouco a competitividade”, diz Silvana. “A diferença entre homens e mulheres é que nós tendemos a ser mais preocupadas com a segurança e pedimos mais instruções quando o mar está grande.
Homens nem encostam o carro num posto de gasolina para perguntar por instruções quando estão perdidos”, completa a australiana Jessi Miley-Dyer, 20, quarta do ranking (vice-campeã na Bahia) e dona de um surf superagressivo, que não fica devendo a nenhum marmanjo.
Claro que os patrocinadores seguem o rastro do dinheiro e, por vezes, preferem investir em anúncios com surfistas de biquíni, que também funcionam como modelos e vão atrair mais atenção que uma competição de atletas do sexo feminino. “Moda, surfwear e estilo de vida explodiram”, analisa Melissa Buckley. “Onde você poria seu dinheiro de marketing? Moda praia e moda surf dão um retorno melhor para o investimento, mas nós vamos superar isso em dois anos, no máximo. As surfistas profissionais de hoje são agressivas e poderosas. Elas não estão tentando surfar tão bem quanto os caras. Elas estão tirando inspiração de outras mulheres agora.”
Apesar dos empecilhos, Claire Bevilacqua, 23, outra estrela australiana do WCT, permanece esperançosa de que o surf de mulheres decolará. “A ASP tem investido num plano de marketing para ‘comercializar’ as surfistas”, diz. “Nós queremos seguir na direção do mainstream”. O cerne da questão aqui é que o trabalho árduo das profissionais alterou a popularidade do surf recreativo entre as mulheres. A indústria supervisiona esse espetáculo desde 1994. Desde então, a porcentagem de surfistas recreativas cresceu de 5% para 18% de todos os surfistas. As escolas de surf para mulheres não param de aparecer fora do Brasil e a marca de surfwear Quiksilver viu as vendas da sua linha para garotas, a Roxy, aumentar em mais de 40% no último ano.
Claire e as outras profissionais não se importam em tirar proveito do boom do surf, mas também vêem isto como uma oportunidade rara para elevar o perfil de seu esporte. “O mainstream desenvolveu uma queda pelo surf feminino”, acha Claire. “Talvez ainda seja um sonho as meninas poderem surfar no Pipeline Masters, mas algum dia isso se tornará realidade. Eu não vou deixar de treinar até que aconteça.”
(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de outubro de 2006)
RUMO AO PÓDIO: A hexacampeã Layne Beachley se perpara para mais uma bateria em Itacaré
PREPARAÇÃO: A havaiana Megan Abubo na área reservada às atletas em Itacaré
FUTURO: A australiana Claire Bevilacqua é uma das grandes promessas do Tour
ESTILO: A havaiana Keala Kennely é uma das poucas mulheres do mundo que enfrentam ondas gigantes
TOP: A peruana Sofia Molonovick tem a manha nas manobras e surfa pau a pau com alguns homens