Por Shubi Guimarães*
Rapel dentro de cavernas cabulosas, trekking dificílimo em terrenos completamente alagados, trechos de caiaque de mais de 90 quilômetros por fiordes intermináveis e muita, mas muita correria e determinação marcaram o Adventure Race World Championship (ARWC) deste ano. O mundial de aventura, considerado um dos mais duros do planeta, rolou entre os dias 14 e 24 de agosto no Círculo Ártico, localizado entre a Suécia e a Noruega. Teve 800 quilômetros de extensão e incluiu modalidades que vão de montanhismo em geleiras a caving (passagem por cavernas), passando por mountain bike e até patins in-line. Enquanto enfrentavam etapas sobre-humanas, os competidores atravessaram alguns dos cenários selvagens mais bonitos da Terra.
Lendas do esporte, entre elas algumas feras do Brasil, participaram em 32 equipes de 17 países. Em meio aos melhores atletas do mundo, estavam sete brasileiros, distribuídos nas equipes Cosa Nostra-Caverá (RS) e Mitsubishi Quasar Lontra (SP) – além de mim, que desta vez competi com uma equipe local, a sueca FJS, formada por ex-militares das forças armadas.
Na terça (15), na cidade sueca de Hemavan, durante o briefing e entrega dos mapas, o organizador Mikael Nordstrom explicou alguns detalhes do percurso e mostrou por que o ARWC é uma das provas com logística mais complicadas que existem. São 17 trocas de modalidades, sendo seis delas nas primeiras 24 horas. As equipes tinham direito a quatro caixas de equipamento e alimentação, além de uma mala de patins. O problema é que não havia uma ordem específica para encontrar cada caixa ao longo da competição, por isso era necessário planejar com sabedoria o que levar e, principalmente, calcular a quantidade exata de comida a ser transportada dentro delas.
Apenas 20 minutos após a largada, um tumulto: 200 metros de corrida por um pasto até os patins, depois mais dois quilômetros de subida até o estacionamento das bicicletas. Com todas as equipes juntas, a confusão foi geral. De lá saímos para um trecho curto de mountain bike, bem técnico. Depois voltamos ao mesmo estacionamento, onde as equipes tinham de vestir as roupas de neoprene para a etapa de canyoning (caminhada pelo leito do rio). Nós e a equipe Lontra fizemos o trekking lado a lado até o começo de um cânion. Acabamos nos separando no momento de nadar, quando fomos ganhando algumas posições.
De volta para a mesma transição, pegamos as bikes para mais uma etapa, que nos levou ao lago Guata. As equipes tinham que mergulhar e procurar, nas varias bóias espalhadas, os mapas do próximo trecho. Com ele nas mãos, corremos para um trekking cabeludo nas famosas “wetlands”, terrenos semelhantes a mangues e que parecem xaxins encharcados. Mesmo com muita cerração, Johan, meu companheiro de equipe, fez uma navegação perfeita. Tão boa que competidores de peso como as equipes Merrel e Buff resolveram nos seguir. Terminamos essa etapa entre os cinco primeiros.
Em nossas magrelas, saímos da transição ao lado da Buff, tentando manter o mesmo ritmo que eles. Mas logo lembramos que o importante era fazer uma prova inteligente, respeitando nosso ritmo. Sábia decisão! Esse foi um longo trecho de bike, com 42 quilômetros bem técnicos e que duraram até o começo da primeira noite.
Chegamos finalmente ao chamado GZ1 (Gear Zone One), que não passava de um local para deixar as bicicletas. Ficava em um lindo vale, na beira das montanhas Viterskalsstugan, nosso próximo destino. Mal sabíamos o que estava por vir: um trekking complicado, cheio de pedras soltas. A chuva e a cerração tornaram a noite ainda mais tenebrosa. Felizmente nossa navegação foi dez e atingimos o primeiro PC junto com os líderes. No segundo posto da montanha, cruzamos a equipe da Nike, do famoso Ian Adamson. Eles começaram a subir e resolvemos segui-los. Nosso primeiro grande erro: os caras estavam errados! Percebemos a roubada antes deles e voltamos rápido, mas perdemos com isso meia hora. Falha corrigida, continuamos até o terceiro PC da montanha para, de novo, encarar as bikes.
Um trecho triplo de mountain bike nos saudou nessa etapa. Uma trilha curta levou-nos até a primeira transição, no mesmo estacionamento da largada. As quatro primeiras equipes estavam dormindo ali. Eram 8h do segundo dia de prova, mas eu não estava com sono e, para piorar, não havia roupas secas em nossa caixa. Pela frente tínhamos mais 77 quilômetros de bike em estradas de asfalto. Momento histórico: estávamos liderando o ARWC! Pelo menos até sermos ultrapassados pelos Lundhags… Depois da bike, era a vez de uma tirolesa gigante, seguida de mais 75 quilômetros de bicicleta. Apesar das dificuldades, consideramos essa uma etapa tranqüila e optamos por ir para a próxima transição.
Nessa área de transição antes do montanhismo e da travessia de glaciar, a organização foi impecável, com cabanas para os atletas – todo mundo merece um pouco de conforto. Com roupas secas e quentinhas, dormimos por duas horas. Ao acordar, três equipes já tinham partido e, no gás, fomos atrás. Começamos a caminhar ainda no escuro, em uma noite com chuva e vento. E dá-lhe subir. De um lado, 300 metros de queda, do outro, 700 metros. Ainda bem que não dava para ver nada. O dia amanheceu em algumas horas, quando já estávamos rumo ao glaciar. No final desse trecho, fomos ultrapassados pelas equipes Merrel e Buff. Atravessamos o glaciar fugindo de gelos frágeis. Dizem que a montanha era lindíssima, mas eu não vi nada por causa da cerração. Quando chegamos ao próximo PC, estávamos em quarto lugar de novo.
Na GZ3, tivemos de montar as bikes que estavam nas caixas. E simplesmente colocar todo o equipamento de montanha nas mochilas, que ficaram gigantes. Ainda bem que era para atravessar um curto trecho de descida. Na Área de Transição 4, encontramos uma estrutura ótima de alimentação e descanso. Chegamos no meio da tarde e, para aproveitar a luz do dia, fomos direto para uma pista de orientação de 15 quilômetros dificílimos. Devagar e sempre, Johan fez novamente uma orientação impecável. De volta ao camping, depois de comer e trocar de roupa, dormimos mais duas horinhas. Quando acordei, sonolenta, encontrei meus conterrâneos da Lontra, que estavam se preparando para dormir. Como é bom encontrar rostos familiares numa hora dessas.
Mais um longo trecho de bike em asfalto, onde encontramos a galera da Merrel e da Orion. Ficamos todos juntos em um pelotão, que agilizou o percurso de 75 quilômetros. Chegando à transição, encontramos mais duas equipes se preparando para sair, a Aberdeem e a Go Lite. Todos aceleraram para guardar as bicicletas nas caixas e reabastecer as mochilas. As cinco equipes saíram praticamente juntas. Foram 35 quilômetros pela Serra das Sete Irmãs, um famoso cenário no sul da Noruega. Trekking sinistrão: acompanhamos a crista de uma montanha de pedra, em que cada equipe escolhia sua passagem. Uma agonia só, pois cada um ia para um lado e muitas vezes não sabíamos qual seria a melhor rota. As equipes Go Lite e Orion dispararam na frente, enquanto Merrel e Aberdeen ficaram para trás. Depois de doze horas massacrantes, concluímos a etapa. Para finalizar, uma rápida e perigosa travessia de patins in-line, repleta de “mata-burros”.
Finalmente veio o caiaque pelos fiordes noruegueses. Foi um apuro: meus companheiros suecos, que passam dez meses do ano debaixo de neve, não são nada bons de canoagem. Foram 90 quilômetros intermináveis, em que paramos quatro vezes para dormir. Diversas equipes nos ultrapassaram, mas sobrevivemos entre as dez primeiras. Ali fomos abençoados com uma aurora boreal, um espetáculo da natureza com feixes de luzes que se movimentam no céu.
E lá fomos nós progredindo na prova. Depois de atravessar um rio gigante e gelado, resolvemos dormir duas horas, por volta da meia-noite. Quando acordamos, atingimos o PC seguinte e cometemos o maior erro da prova. Tentamos dar a volta num lago pelo lado errado e perdemos duas horas… Chegamos ao glaciar em oitavo, ainda uma excelente posição. Uma pequena trilha na beira do rio nos levou até os caiaques, onde descemos 21 quilômetros em águas de degelo. Faltando doze horas para o final da prova, calçamos os patins mais uma vez para fazer 25quilômetros. Êta, que dureza.
Surgiram as famosas cavernas e nos lançamos no rapel. No começo até que foi legal, com grandes galerias de pedras brancas, porém, do meio para o final, transformaram-se em corredores estreitos e cheios de lama. No trekking depois da caverna, bateu aquele cansaço. Mais ainda havia 65 quilômetros de bike até a chegada. Chegamos em oitavo! Uma vitória! A Caverá acabou sendo cortada, e a Lontra foi a última equipe a completar a prova, na 21º colocação. Foram dias de sofrimento, mas de muita garra, que me ensinaram ainda mais sobre o valor da determinação e do trabalho em equipe. Valeu!
* Silvia Guimarães, a Shubi, é corredora de aventura da equipe brasileira Atenah e já competiu nas principais provas do mundo, como Eco Challenge e Ecomotion Pro.
(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de outubro de 2006)
DUREZA: Para vencer os glaciares escorregadios, foi preciso concentração, coragem e muito preparo físico
RECOMPENSA NATURAL: Trekkings complicados, cheios de pedras soltas, desembocavam em lindos vales entre a Suécia e a Noruega
ROUBADA NOS FIORDES: Depois de dias de esforços sobre-humanos, os competidores tiveram de remar intermináveis 90 km