Por Fernanda Franco Ventos extremos, praias belíssimas e jovens atletas cheios de talento vêm colocando o Brasil entre os principais points de kitesurf do planeta. De 17 a 24 de setembro, esse sucesso pôde ser visto de perto, na última etapa do Campeonato Mundial de Kite. A disputa aconteceu em João Pessoa, na Paraíba. Conhecida por ser o ponto mais oriental das Américas, a região é famosa pelos ventos fortes que geralmente aparecem entre julho e dezembro. Durante a disputa, porém, Netuno não se mostrou muito inspirado e soprou fraco, e os atletas tiveram de se contentar com condições brandas de vento.
Para os praticantes da modalidade, vento bom é, em uma linguagem pouco técnica, aquele que, de tão forte, castiga a vida de quem está na areia de bobeira e é capaz de arrastar tudo e todos na praia. Foi assim que ventou tanto no Piauí, onde os brasileiros haviam acabado de participar da penúltima etapa do circuito nacional, como em Tarifa, na Espanha, sede da etapa do mundial que antecedeu a brasileira. Depois de tantos dias de sorte, todos estavam esperando condições extremas de vento também na Paraíba, mas a natureza não colaborou. Por conta disso, muitas das baterias tiveram de esperar os melhores momentos do dia para serem realizadas.
A mulherada compareceu em peso ao evento e, diferentemente do que costuma acontecer nos campeonatos, a Professional Kiteboard Riders Association teve de fazer uma seleção para definir as 16 atletas da chave principal para disputar a categoria feminina. Das 17 concorrentes, uma acabou eliminada: Xanda Amin, terceira colocada do circuito brasileiro, não deu sorte ao perder a pipa depois que a fita que a prendia em seu corpo se soltou. As brasileiras Bruna Kajiya, vencedora de duas etapas do tour, Carol Freitas, tetracampeã brasileira, e Carol Homsi, atual campeã paraibana, deram um tom verde-e-amarelo à disputa, que teve 11 atletas gringas.
No masculino, havia vaga para todo mundo e, entre os 28 inscritos, estavam oito brasileiros, além do campeão por antecipação Aaron Hadlow, britânico de 17 anos cuja excelente pontuação já o confirmava como o grande líder. Logo no primeiro dia, a surpresa foi a eliminação de Aaron (que mesmo assim saiu vitorioso do mundial) e do segundo colocado no circuito, Kevin Langeree. Na repescagem, Kevin ainda se recuperou, mas foi superado pelo espanhol Cesar Portas, que disputou o primeiro lugar com o português Rui Meira. Durante a emocionante bateria final, Rui mostrou-se mais seguro e levou o ouro. Sua melhor colocação até então havia sido um quinto lugar na Alemanha. Com a vitória no Brasil, o português garantiu o sétimo lugar no ranking.
Da turma dos brazucas, Reno Romeu, 16, e Guilly Brandão, 25, eram os que possuíam as melhores chances de conseguir boas colocações. A dupla faz parte da seleção brasileira de kite e vive brigando pela liderança na disputa nacional. Mas não se saíram bem e acabaram empatados na 17ª colocação.
O kitesurf de competição vem passando por profundas mudanças e tem sido dominado por uma nova geração de talentos. Um bom exemplo é o carioca Reno Romeu, um típico participante do mundial. Assim como ele, a maioria dos jovens talentos do kite têm entre 16 e 21 anos, exibe cabelos queimados de sol, traja bermudona de surfista e esbanja flexibilidade e coragem para executar saltos mortais e trocas de mão na barra (variações que compõem as manobras da categoria freestyle).
Além disso, a molecada trabalha duro para conciliar a pipa com os livros. Muitos ainda estão no colégio e comparecem às aulas entre uma etapa e outra. Além de torcer, a família quase sempre acompanha os meninos. Em João Pessoa, por exemplo, estavam os pais dos brasileiros Reno e Bruna, de Madison Van Heurck, 16 anos, das Ilhas Virgens, dos irmãos holandeses Jalou, 16, e Kevin Langeree, 18, e do também holandês Youri Zoon, vice-campeão mundial.
Segundo o juiz espanhol Carlos Saez, dois são os motivos para a crescente superação da juventude em relação à experiência dos mais velhos no kite competitivo: “Essa é a primeira geração que nasceu realmente no kite, que é especialista no esporte mesmo. Antes os kitesurfistas eram esportistas experientes que haviam migrado de outras modalidades, como windsurf, surf e snowboard. Essa meninada de agora começou com uns 12 anos e, quatro anos depois, já despontam na cena internacional”.
Além disso, explica Saez, por ser um esporte relativamente novo e com apenas cinco anos de circuito mundial, os juízes vêm modificando os critérios de julgamento: “Hoje os vôos longos e altos não contam muito, são da chamada ‘old school’, apesar de serem plásticos e bonitos. Atualmente, o que vale mais são as manobras rápidas e baixas, com mais impacto e cada vez mais difíceis de serem realizadas”. O russo Peter Tyushkevich, 19, terceiro colocado no Brasil, concorda: “É preciso se preparar mais para as manobras, ser mais ginasta”.
Mas a nova cara do esporte traz um legado ainda difícil de analisar. As manobras de freestyle são altamente arriscadas e, no caso de erro, os pousos são verdadeiros “desastres aéreos”, devido à altura da qual o atleta despenca. Com isso, ombros, joelhos e tornozelos sofrem constantes impactos. Mesmo assim, são poucos os que fazem treinamento físico para prevenir lesões, e as conseqüências só poderão ser vistas a longo prazo. A falta de tempo é a principal razão apontada pelos jovens para não tomar os cuidados necessários com o corpo: “Até trabalhamos a parte física antes da temporada, mas, depois que o tour começa, só viajamos e não sobra tempo. Aí os treinos acontecem apenas na água mesmo”, justifica o tricampeão brasileiro Guilly Brandão.
Experiente, a austríaca Gabi Steindl, 30, é sem dúvida a atleta mais “forte” da turma das meninas. Com ombros e costas bem definidos, ela diz ter consciência dos danos físicos que o kite provoca. Já passou por uma cirurgia no joelho e por isso não dispensa uma boa preparação aeróbica nem musculação. “Os mais jovens ainda não pensam nisso”, diz, sobre a possibilidade de lesões. Outra representante da “velha guarda”, a campeã mundial Kristin Boese, 29, também é adepta da preparação física consciente. Como Gabi, fez uma cirurgia no joelho causada pelos esforços no kite. Apesar de também reclamar da falta de tempo, ela separa um horário na agenda para praticar ioga.
Namorado da brasileira Bruna, Aaron Hadlow, tricampeão mundial, confessa temer problemas no joelho. Mas, pelo menos por enquanto, dá de ombros quando questionado sobre o assunto. No Brasil, Aaron assistiu a um show da namorada no campeonato. Bruna ganhou bonito em casa e compartilhou o sucesso com ele, já que o parceiro tem lhe dado dicas importantes.
“Às vezes falta só um detalhezinho para eu conseguir completar uma manobra, e o Aaron me dá uns toques de fora da água. Isso ajuda bastante”, reconhece. Bruna vem crescendo no tour: venceu a etapa da Alemanha, chegou em xx no Canadá e faturou também na Espanha. Não fosse pela troca de patrocinador no início do ano, que implicou a readaptação da prancha e da pipa, provavelmente ela poderia ter brigado pelo título com a alemã Kristin Boese, que já chegou a João Pessoa com a taça garantida. Apesar de tudo, levar a etapa brasileira e encerrar o ano com o inédito feito de vice-campeã mundial coloca Bruna e o Brasil definitivamente no pódio do esporte.
Nosso país tem ainda uma das melhores condições do planeta para o velejo de kite. Da Paraíba ao Piauí, são aproximadamente mil quilômetros de litoral com praias desertas, uma excelente temporada de ventos, água quente e o incomparável astral brasileiro. Tudo isso atrai kitesurfistas do mundo, que já apelidaram o país de “a Indonésia do kitesurf”.
Prova de que estamos bombando no esporte são os fabricantes de equipamentos que têm feito várias de suas campanhas publicitárias com fotos de atletas profissionais no litoral brasileiro. Entre os adeptos do kite, praias como Pipa, Cumbuco e Jeri tornaram-se points badalados.
Os ventos do kite também vêm impulsionando o turismo, com a criação de hotéis preparados especialmente para receber praticantes do esporte. Na Europa e nos Estados Unidos, várias agências de viagem montam “kite trips” pela costa nordestina com toda a mordomia para o velejador estrangeiro.
Em breve o país do futebol terá de dividir o apelido com o kitesurf. Vento, mar e garotada com vontade de “voar” temos de sobra. Com as conquistas brasileiras e o surgimento de novos talentos, o esporte tem tudo para deslanchar ainda mais. O único impedimento, por enquanto, é o preço dos equipamentos, pouco acessível aos menos endinheirados. Mesmo assim, o kite está, literalmente, decolando na costa brasileira. Que bons ventos o tragam.
(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de dezembro de 2006)
REVELAÇÃO: A paulista Bruna Kajiya não deu moleza para as gringas que competiam na Paraíba e levou para casa o troféu de campeã da etapa
Fotos por Theo Ribeiro
EMPINANDO PIPA: Apesar da ausência de ventos extremos, o campeonato rendeu belos vôos de kite
MULHERADA EM PESO: Feras femininas como a hoandesa Jalou Langeree mostraram que são tão determinadas como os homens
POINT BADALADO: Praias lindas como as da Paraíba, abençoadas com ventos constantes, transformam o Nordeste na meca do kite