Textos e fotos por Henry Ajl/ Baboon Filmes
Quem nunca assistiu a garapa ferver num tacho de cobre de engenho antigo não pode dizer que conhece o Brasil. É nas veredas do grande sertão que o brasilianismo mais sincero se revela, dia-a-dia, como tinta fresca na pena de Guimarães Rosa.
Nos domínios da caatinga, escapar dos estereótipos é tarefa quase impossível. Coronéis e pistoleiros mandam e desmandam em terras abandonadas ao deus dará. Negros quilombolas existem aos montes e seus ritos e crenças nos transportam, num piscar de olhos, pro lado de lá do Atlântico. Garimpeiros, na busca pelo veio do ouro, continuam a fazer e a desfazer fortunas em rincões perdidos do agreste. São todos personagens do Sertão e, não fosse por eles, esta não seria a região mais fascinante do Brasil.
Desfaçam-se, então, alguns mitos imprestáveis: o sertão não é só aridez e o sertanejo não é um pobre coitado. Muito longe disso. De tempos em tempos, as chuvas de inverno falham, a água escasseia, e aí, sim, a vida fica complicada. Séculos de abandono e de ineficiência das políticas públicas para a região transformam vidas difíceis em vidas impossíveis. E os retirantes se colocam em marcha.
Que brasileiro ainda não viu esse filme? Assim mesmo, como num filme, sentamos em frente à televisão e, ao vivo e a cores, assistimos ao drama real como se fosse uma ficção. E a realidade, mais cedo ou mais tarde, chega até nós em forma de gente, podendo ser uma empregada doméstica, um motorista de ônibus, um vendedor, ou, quem sabe, o futuro Presidente da República. O Sertão corre em nossas veias.
Percorremos, então, os caminhos do Sertão Brasileiro, máquina fotográfica em punho, com o objetivo de registrar os panoramas, a gente, os personagens, as histórias – enfim, a vida do semi-árido mais populoso de todo o planeta.
A HONRA DOS VAQUEIROS
Ao som do aboio , o vaqueiro avança caatinga adentro. Penetra num terreno hostil, avesso à presença humana. Sem o gibão, erneiras e guarda-peito, não seria possível durar um minuto sequer, dilacerado pela vegetação traiçoeira. Espinhos que estão mais para lâminas penetram a carne até a alma. Ser vaqueiro na caatinga é profissão de alto risco, mas, é, sobretudo, questão de honra.
Conhecimento que se passa de pai para filho, e pra neto e bisneto, se o destino permitir.
O maior patrimônio do vaqueiro é a dignidade e o rebanho e não existem limites conhecidos que o impeçam de preservá-los. Ele não vacila no caso de um novilho fujão, chispa pra dentro da caatinga e, se necessário for, pode até mesmo se arremessar sobre uma cerca farpada de xiquexiques e mandacarus, dois arbustos espinhentos típicos dessa região, para recuperá-lo. Quanto mais difícil a empreitada e mais sangrento o resultado da captura, tanto mais admirado será o homem pelos seus semelhantes. Aliás, entre os homens de gado do Sertão, continua a vigorar códigos rígidos de conduta, subordinação e respeito. “Sem honra, o vaqueiro não vale nada”, conta Enoque José dos Santos, morador do povoado baiano de Brejão da Gruta e “vaqueiro, sim senhor!”
CANTO DA SUCUPIRA
Lá longe, vem o carro de boi. No canto da sucupira (3), o tempo parece parar. É a melodia de um Brasil antigo, remoto, colonial. No movimento lento das rodas de madeira maciça, a imaginação ganha asas e reconstrói capítulos inteiros da História do Brasil, convocando de minhas memórias esquecidas ilustres brasileiros do antigamente – Cabral, Anhangüera, os Tupi Guaranis, uma tropa inteira dos Farroupilhas, todos se juntam na marcha ritmada pelo canto da sucupira. Caravelas voadoras cruzam o céu do Sertão.
Velas ao vento, avançam rumo à encantada terra das Palmeiras ou Pindorama, nome pelo qual o Brasil era conhecido por seus habitantes originais. É de lá que saem chispando Lampião, Maria Bonita e os cangaceiros atrás. Olha o carro de boi! Navios negreiros, senzala, Canudos, a sucupira parece sangrar. Enfim, o carro de boi silencia o canto. Vazio. Tristeza que se instala pesada no ar, até que se aviste, lá longe, o próximo carro de boi.
BRASIL PRÉ-HISTÓRICO
Para quem quiser ouvir as vozes do passado, a janela do tempo está aberta e fica em São Raimundo Nonato, no Piauí. A Toca do Boqueirão da Pedra Furada é um lugar único no planeta em razão de sua importância arqueológica. A coleção de pinturas rupestres que adorna o paredão da Toca é um dos mais belos exemplares de arte pré-histórica conhecida nas Américas.
O lugar é, no mínimo, intrigante. Por meio das imagens pintadas nos paredões há cerca de onze mil anos, tentamos penetrar num mundo que não existe mais. Muitas vezes, as ilustrações surpreendentemente requintadas fazem com que possamos compreender a mensagem como se fosse uma conversa ao pé do ouvido. Outras vezes, os desenhos são confusos, caóticos, indecifráveis e os pontos de interrogação se multiplicam em nossa cabeça. Mas, afinal, o que eles queriam nos contar? Quem eram, o que pensavam e como viviam os primeiros habitantes deste imenso território meridional ainda é uma lacuna na linha cronológica do nosso continente.
AMARGO DOCE OURO
Rodando as engrenagens dos engenhos, a mata atlântica do litoral nordestino deu lugar às plantações infinitas de cana de açúcar trazida de outras terras. Girando, girando as engrenagens, os tumbeiros cruzaram o oceano, as senzalas foram erguidas e o Brasil tornou-se mulato. No giro das engrenagens do engenho, quantos homens morreram de fome e de dor? Quantos nobres, reis e rainhas se deleitaram com o doce ouro que nascia bruto destas terras atlânticas e era refinado com o suor e o sangue dos africanos? Nas voltas da engrenagem de engenho, quanta riqueza os mercadores lucraram com o produto ‘made in Brazil’? O primeiro ouro a ser descoberto neste país – e o primeiro a ser levado – não foi o metal rígido e dourado das Minas Gerais, mas sim o açúcar, que nascia com o doce típico da terra. Mas com o amargor pesado da escravidão.
A RAPADURA É DOCE
Sertanejo adora rapadura. O engenho antigo, de mais de 200 anos, parece que foi inaugurado ontem, tamanha a movimentação. Do lado de fora, dois, três carros de boi fazem fila para descarregar o corte da cana. A moenda funciona a todo vapor, o bagaço se amontoando numa pilha de dois metros ou mais. A garapa escorre por um encanamento rústico e cai numa coleção de tachos de cobre fumegantes. E tome lenha! Um dos trabalhadores do engenho fica encarregado de alimentar o fogo incessantemente. A produção não pode parar. O vapor adocicado toma conta do ambiente. Silhuetas em movimento. Vez por outra, a brisa limpa o ar, empurra a fumaça para fora e aí é possível reconhecer quem está no local. Depois de cozer por horas, a garapa transforma-se em melaço e é despejada em formas feitas artesanalmente de troncos de madeira para esfriar. Pronto. Rapadura empilhada. Sertanejo feliz!
A ESPERANÇA NA SECA
A imagem chama a atenção. Em meio à caatinga brava, quilômetros e quilômetros de varais onde repousa uma fibra amarelada. É o sisal, salvador da pátria do sertanejo.
Quando a chuva falha, tudo seca e o sertanejo está prestes a se tornar um refugiado em sua própria terra, resta a ele o sisal. A fibra é extraída da agave, uma planta trazida das regiões áridas do México nos anos 20 e que se adaptou muito bem às condições da caatinga.
O processo de extração do sisal é trabalhoso e, invariavelmente, coloca em risco a saúde e o bem-estar dos trabalhadores. O primeiro problema são as máquinas utilizadas para a transformação e beneficiamento da fibra. É comum encontrarmos pessoas que perderam os dedos nas engrenagens expostas destes aparelhos. Outro elemento prejudicial à saúde é o ácido resultante do beneficiamento das folhas da agave, que corrói as mãos.
Mesmo assim, sertanejos vivem um caso de amor – e dependência – com o sisal. É a fibra que, nas épocas de estiagem mais prolongada, permite ao sertanejo lucrar alguns trocados por mês para comprar itens básicos, como o feijão e a farofa. Mas há o outro lado da moeda: durante décadas, atravessadores se aproveitaram dessa situação de penúria para comprar a produção a preços irrisórios e fazer lucros astronômicos com a revenda do produto no sul do país. O estabelecimento de cooperativas de sisaleiros – como a “Cantadoras do Sisal”, em Valente, na Bahia – melhorou a vida dessa gente, mas muito ainda pode ser feito, a começar, pela implementação efetiva de políticas públicas para minimizar o impacto das secas.
(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de janeiro de 2007)