Os big brothers


FIGURINHAS: Eddie Vedder transita com desenvoltura no mundo do surf. "Surfar é minha religião", diz o roqueiro

QUASE UM CASAMENTO

O vocalista do Pearl Jam, Eddie Vedder, é um surfista de mão cheia. O campeão mundial de surf, Kelly Slater, é um guitarrista não assumido. Juntos, formaram uma sociedade de admiração mútua, baseada em música, viagens e sessões constantes de surf, da Austrália ao Havaí.

Por Anthony Cerretani

Go Outside: Que tipo de amizade é a de vocês – irmãos de sangue, primos distantes, parceiros no crime?

Vedder: Eu levaria um tiro por ele, mas o cara ainda tenta me matar no surf.

Slater: Eu levaria uma farpa por você, cara. A qualquer momento.

Como começou a amizade de vocês?

Slater: Foi em 92, eu estava na África e dei uma boa ouvida no Ten, o primeiro disco do Pearl Jam. Tinha tudo a ver com surf. Eu não sabia nada sobre o Eddie; não sabia que ele surfava ou de onde vinha. Só nos conhecemos em 96, na festa do prêmio Grammy.

Justo quando a sua carreira estava chegando no auge. Foi essa a conexão?

Slater: Quando comecei a ganhar os campeonatos, não tinha o controle que deveria ter sobre as minhas coisas. Você nem sabe direito o que significa “estar no topo” até que chega lá e vê que não é tudo aquilo que diziam.

Vedder: Se você está perdido nas nuvens nessa escada que não leva a lugar nenhum e pára no meio do nada, olha em volta e vê outro cara a 50 metros na sua própria escada no meio das nuvens, olhando em volta, é como dois caras se cumprimentando: “E aí, beleza? Vai ficar por aqui mesmo? Quer descer? Vamos descer. Vamos surfar, vamos curtir”.

E a coisa nasceu daí?

Slater: Não trocamos telefones naquele dia. Simpatizamos um com o outro, mas foi só um ou dois anos depois que nos encontramos de novo, na Austrália. Só ficamos amigos quando a gente já se entendia o bastante e entendia nossas vidas para se dar bem de verdade. Eddie está na crista da onda do que ele faz, e eu tive sorte de ter o mesmo tipo de sucesso, por isso temos uma familariedade com as circunstâncias ao nosso redor e como lidar com elas. A gente vê as mesmas coisas um no outro.

O que os mantém juntos agora?

Vedder: O mar e a música alimentam nossa ligação. Talvez ele possa aprender um pouco de música comigo, apesar de já ter se conformado com o que ele pode tocar, o contrário de mim com o surf. É muito bom estar com o Kelly nas ondas.

Slater: Uma vez o Eddie queria ir pra Flórida surfar, mas eu não podia, então ele se encontrou com meu irmão. Foi como se estivéssemos juntos, já que partilhamos pessoas em comum.

Com que freqüência vocês se encontram?

Slater: Umas poucas vezes por ano. Podemos até passar um ano sem nos vermos. Mas quando estamos perto, damos um jeito de nos encontrarmos.

Vedder: Não consigo pensar em ninguém que eu conheça que seja mais cidadão do mundo que o Kelly. O mais interessante é que – foi mal, Kelly – ele nunca pára de se mexer. Mesmo quando está parado, está se mexendo. É uma tremenda força para se estar por perto. Ele simplesmente fica viajando pelo mundo e, quando aparece num lugar qualquer, é como um filme de John Wayne: pode estar na África do Sul, Austrália, Taiti, tanto faz. Todo mundo fica feliz de ver ele.

Slater: Estou me ligando disso agora que estou viajando tanto. É como se eu fosse uma estrela cadente. Tudo rola muito rápido e eu consigo ver muita coisa e passo por um monte de lugares, mas não consigo estabelecer a ligação que quero com o que é realmente importante.

Vedder: Bem, o legal é que quando você se acomodar em algum lugar vai poder sentar na varanda e não se arrepender das coisas que poderia ter feito e os lugares pra onde poderia ter ido. Você já fez tudo.

Descrevam uma típica sessão de surf dos dois juntos.

Vedder: Ele me enfiou em algumas situações bem caóticas nas ondas. Que também foram alguns dos melhores momentos da minha vida. Adoro cada segundo que estamos juntos, tocando cavaquinho havaiano ou falando sobre design de quilhas ou bolando como pegar uma onda com mapas na internet ou na mesa da cozinha.

E o que fazem para se divertir?

Vedder: Pegamos umas cervejas e umas garrafas de vinho e ficamos falando do passado, dando risada e nos divertindo. Com o Kelly você não fica só sentado falando sobre coisas que podia fazer. Você faz. Nova vida sendo criada, novas memórias. E sempre acabamos tocando alguma coisa. Dá para ficar em Seattle com alguns dos maiores músicos do mundo e não tocar nada, mas com o Kelly rola sempre. Ao redor da fogueira no acampamento, na sala de casa, tanto faz.

Slater: Pra mim, tocar com você é inspiração. Não é sempre nesta vida que se consegue conhecer gente que você admira tanto e ainda se tornar seu amigo.

Parece um caso de admiração recíproca por um herói.

Vedder: Isso não se fala… Você está deixando a gente desconfortável! [risadas]

Slater: Isso não me deixa nem um pouco desconfortável. Eu já admirava o Eddie muito antes de conhecê-lo. Não é algo que me deixe com vergonha.

E toda essa música e surf compartilhado – é algum tipo de terapia?

Vedder: Para o Kelly, a música é meio que um tipo de religião.

Slater: Eu não poderia viver sem ela. Literalmente. Tocar todos os dias é como comer. Ultimamente tenho feito isso mais que surfar. É minha válvula de escape para o que não posso expressar no surf.

Vedder: Surfar é minha religião. O Kelly sentiu a ligação com a água em nosso primeiro álbum, e nem tinha idéia que metade desse disco foi escrito nas ondas. Quando estou acabado – quando esgotei todos os meus recursos e perdi todo o interesse – tudo que tenho a fazer é pular no mar por uns dias, e estou de volta com tudo. É uma absoluta necessidade para nós dois: música pra ele, o mar pra mim.


PASSE LIVRE: O surfista transtita com desenvoltura no território do rock. "Para o Kelly, a música é um tipo de religião", diz Vedder

E não é estranho então ver o outro atuando profissionalmente?

Slater: Quando escuto “Eddie Vedder”, não é só uma pessoa; é uma coisa sobre a qual as pessoas têm uma idéia a respeito, que amam ou admiram. Elas cresceram com a música dele. Então, é meio engraçado ficar no canto do palco vendo tudo acontecer. Você está olhando pro seu amigo, que fez algo tão importante, como toda essa gente que conhece ele tão bem, mas ao mesmo tempo não o conhece nem um pouco. Acho que isso rola no meu próprio mundo também.

Vedder: Lembro uma vez que estávamos em nossas pranchas, na água, remando numas ondas no Havaí e tinha um pai com um menino de sete anos na frente da prancha. O pai está remando é vê o Kelly e arregala os olhos, fica todo animado. Às vezes as pessoas exigem mais de você. O Kelly sempre correponde a todas as expectativas. Ele é um incrível embaixador do esporte, nunca deixa ninguém na mão.

Então, quem tem o melhor emprego?

Vedder: Tenho que admitir que é o Kelly. Porque ele não tem que – preciso tomar cuidado com o que digo agora… Pittsburgh é ótimo, Cincinnati também, mas …

Slater: Deixa como está. É, seria difícil pra mim dizer que alguém tem um trabalho melhor que o meu. Sou pago pra surfar ao redor do mundo.

Vedder: Essa pode ser a única vantagem que tenho em cima do Kelly: posso fazer minha própria agenda. A banda concorda democraticamente com as datas das turnês. Já o Kelly tem que estar em determinados lugares.

Slater: É, mas seu horário não é dos melhores.

Vedder: É. Eu nunca durmo.

Kelly, recentemente você tocou “Rockin’ in the Free World” com o Pearl Jam no palco em San Diego. Como foi isso?

Slater: A moral dessa história é que todo mundo merece uma segunda chance. Eddie já tinha me convidado para tocar no palco em 99 e eu amarelei total.

Como ele se saiu, Eddie?

Slater: Eu fui mais ou menos.

Vedder: Não, não, não. Foi pura eletricidade. Acho que, honestamente, foi ótimo – ele estava calmo, no controle e no último volume. Não foi uma brincadeira. O cara se virou muito bem num grande show de rock.


Comparem a energia de uma casa de shows lotada à energia de uma grande onda.

Slater: O medo do palco provavemente me afeta mais, fisicamente. Fico nervoso. Mas o verdadeiro perigo não está lá. Quer dizer, a não ser que você tenha um problema cardíaco.

Vedder: Com a casa lotada, a menos que você diga algo incrivelmente ofensivo a Deus ou ao país, uma multidão de 15.000 pessoas não vai te matar. Acho que poderiam, se quisessem, mas eles não vão todos cair em cima de você e te segurar por dois minutos. Essa é a diferença entre um grande show e uma grande onda. Quando Kelly me leva pra Waimea Bay, as ondas de lá estão pouco se lixando pra quem eu sou.

POUCAS PALAVRAS
Nenhum deles precisa falar muito para que o outro capte a urgência do momento: no mundo da vela, não há parceria mais bem-sucedida
Por Daniel Nunes Gonçalves
Torben Grael é um homem silencioso. O maior medalhista olímpico da história do Brasil tem fama de reservado e costuma velejar por horas, dias até, falando pouco, concentrado naquilo que mais gosta: obter a melhor performance do seu barco no mar.
Curiosamente, há 18 anos (tem 45) ele divide os desafios da vela na classe star com Marcelo Ferreira, um falastrão de primeira linha, desses que têm sempre uma história divertida pra arrancar gargalhadas do interlocutor. Apesar dessa diferença, Torben e Marcelo, 41, formam a dupla mais bem sucedida da vela nacional: além de campeões mundiais na temporada de 1990, Torben e Marcelo já ganharam 3 medalhas olímpicas: uma de bronze em Sydney (Austrália), em 2000, e duas de ouro, uma em Atlanta (EUA) em 1996 e outra em Atenas (Grécia) em 2004. Tudo isso apesar de mal se falarem.
“O Gordo conhece o meu temperamento” diz Torben, brincando com o apelido que mais usa quando fala com Marcelo. “Ele sabe que sou quieto, sabe como eu raciocino, e isso ajuda o nosso entrosamento”, continua. O companheiro, por sua vez, confessa que às vezes é tagarela demais e mais disperso que o “Orelha” – sim, é assim que ele zoa com Torben. No barco, eles se entendem só pelo olhar. “Aprendi a falar menos, e isso virou parte do nosso estilo de velejar”, explica Marcelo. E continua: “Outras duplas precisam de frases inteiras pra comunicar uma decisão do tipo ‘olha, vou fazer a manobra no barco, atenção, 3, 2, 1, já!’. O Torben olha pra mim e diz apenas: ‘foi!’”. O silêncio parece dar certo. Depois que se tornaram uma dupla pau-pra-toda-obra, eles hoje são favoritos onde quer que velejem. Como no caso dos próximos jogos olímpicos, em Pequim (China), para o qual vão começar a se preparar em junho, com 10 meses de treino intensivo.
Eles se conheceram no próprio habitat, em 1985, velejando no mar da cidade onde moram, Niterói, no Rio de Janeiro. Ambos já tinham currículos respeitáveis como velejadores. Torben já conquistara duas medalhas em Olimpíadas: bronze em Seul (Coréia do Sul), em 1988, e prata em Los Angeles (EUA), em 1984 (totalizando cinco, o que o torna recordista mundial na vela). E Marcelo, além de sete títulos brasileiros e três europeus, tem um título mundial a mais, o de 1997. Depois que se uniram, nunca mais encontraram química igual com outros parceiros. Basta o tempo estar bom para um telefonar para o outro e correrem para treinar. “Não só no esporte, mas em qualquer negócio, o segredo do sucesso é o objetivo comum”, diz Marcelo. E isso não falta a Torben e Marcelo.

AFIADOS: Muita sintonia entre a dupla para garantir o outro em Atenas, 2004
Uma vez, no entanto, a fórmula falhou. E as Olimpíadas de Barcelona (Espanha), em 1992, se tornaram uma lembrança amarga pelo resultado pífio: 11º lugar. “Não tivemos o preparo ideal”, justifica Torben. O balde de água fria congelou a relação. Sem patrocínio, venderam seu melhor equipamento e ficaram afastados por todo o ano de 1993, cada um cuidando da sua vida, em países distintos. Marcelo se casou e foi morar na Itália, Torben permaneceu no Rio, com a mulher e os dois filhos. “Mas o período distante foi bom”, analisa Marcelo. Quando retomaram a parceria, em 1994, conseguiram patrocínio e a retomada do sucesso. “Voltamos mais fortes”.
O melhor exemplo dessa cumplicidade foi o desafio mais longo que enfrentaram: a regata Volvo Ocean Race 2205/2006, quando passaram nove meses dando uma volta ao mundo no veleiro Brasil 1, ambos como integrantes de uma equipe de 10 pessoas. Torben era o comandante, e seu estilo calado intrigava parte da tripulação. “Alguém me perguntou: o que será que esse cara está pensando?’”, lembra Marcelo, que sempre tinha a resposta na ponta da língua. “Acabei atuando como o meio-de-campo entre o comandante e a galera”, continua. O conhecimento do parceiro parece ter contribuído para a experiência. Numa participação pioneira na vela mundial – uma volta ao mundo com uma tripulação dessas e num moderníssimo barco nacional –, o time terminou em terceiro lugar. À boca pequena, a gente sabe: talvez o resultado não tivesse sido esse se ali não estivessem o monossilábico comandante Torben Grael e seu fiel – e falante – escudeiro, Marcelo Ferreira.

OS DONOS DO MUNDO

Aviadores e apaixonados pela natureza, a dupla usa o mesmo grito de guerra pra abocanhar com os olhos toda a paisagem que passa por eles

Por Daniel Nunes Gonçalves

Parecia até que iria rolar um suicídio a dois. Gérard Moss e Júlio Fiadi saltaram, como adolescentes, do terraço de um prédio de 19 andares para uma estreita laje de meio metro, do outro lado da grade. “Está bom assim para a foto?”, perguntou, abraçado ao amigo, um Fiadi com risadinha de Dick Vigarista. “Querem que eu dê um passinho pra trás?”, emendou Moss, provocando um frio na espinha da equipe que se preparava para fotografar a dupla para essa reportagem, numa manhã de fevereiro, em São Paulo.

Para uma dupla acostumada com a altura, a distância de 70 metros do chão no nobre bairro paulista de Higienópolis não metia medo algum. O suíço naturalizado brasileiro Gérard Moss, 51 anos, começou a voar com a família aos 4, e suas 4.500 horas de vôo incluem nada menos que duas voltas ao mundo. Com uma cópia da chave, ele acabava de chegar ao apartamento do paulistano Julio César Fiadi, 46, que já voou mais de 1.500 horas sobre a selva amazônica, 300 delas na companhia do parceiro. “Quando você confia a sua vida na mão de um amigo piloto, pode confiar todo o resto: a chave de casa, o carro, a conta bancária”, disse Gérard, que viera de sua casa em Brasília para uma reunião com o patrocinador do Projeto Brasil das Águas, que realiza desde 2003 na companhia de sua esposa, a queniana Margi Moss, 52 anos. “Quando eu não posso estar com meu marido, o Júlio é seu companheiro preferido”, contou Margi, apaixonada pelos ruivos bigodes de Gérard desde que o conheceu em Búzios, 22 anos atrás. “Será que eu e a Sandra deveríamos ficar com ciúmes?”, brincou, se referindo à esposa e mãe das duas filhas de Fiadi.

Desde que se conheceram em um churrasco no estaleiro de um amigo em comum, Amyr Klink, 12 anos atrás, Gérard e Julio sabiam que também dividiriam a mesma estrada. Afinidades já não faltavam: ambos são engenheiros mecânicos, adoram o ar e o mar, já tinham velejado longamente, curtem explorações solitárias na natureza e escreveram livros consagrados. Fotógrafo de duas expedições de Amyr Klink, Fiadi tinha entrado para a história como o primeiro brasileiro a ter caminhado os últimos 120 km de gelo que levam até os dois pólos da Terra, a uns 20º C abaixo de zero, na saga relatada na obra Rumo aos Pólos. E Moss relatara, nos seus cinco livros publicados, epopéias como a primeira volta ao mundo num motoplanador, contada em Asas do Vento.

Em 2003, Gérard chamou Julio para buscar em Manaus, no Amazonas, um avião anfíbio que comprara para o projeto das águas. “O Gérard pousava com uma habilidade incrível em lagoas pequenas em meio à selva”, diz Julio. “Não tínhamos nem 600 metros para fazer a decolagem, e ele pegava velocidade rodando em círculos, algo que eu nunca tinha visto antes”, conta. Quando seguiam para o Sul do Brasil, uma frente fria os obrigou a abandonar a aeronave em Santa Catarina, levando-os a enfrentar 12 horas de ônibus até o aeroporto de Curitiba.


COMUNHÃO DE BENS: "Quando você confia a sua vida na mão de um amigo piloto, pode confiar todo o resto: a chave de casa, o carro, a conta bancária", diz Moss, sobre Fiadi

Julio sentiu um frio na barriga semelhante quando sobrevoaram rios que serpenteavam em ziguezague próximos à Serra de Carajás, um desafio à destreza de qualquer aviador. “Se fosse outro acompanhante, teria pedido para descer”, brinca Fiadi. Quando tiveram a chance de tomar o comando de um dirigível para sobrevoar o Rio de Janeiro, em 2005, ao longo de três horas, foi a vez de Julio demonstrar que sabia pilotar. Sua experiência em grandes latitudes e temperaturas congelantes foi fundamental quando voaram, a bordo do monomotor Sertanejo, rumo às ilhas Malvinas, em 2000. “Por precaução, voamos o tempo todo com roupas de mergulho”, lembra Fiadi.

Foi nessa viagem que Gérard aprendeu com Julio um grito de guerra que ele também adotaria – e que seria citado no prefácio que escreveu para o livro do amigo. “O Julio abriu os braços em meio aos pingüins-rei e gritou: tudo isso é meu, cara. Tudo isso é meu!” Como se vê, de todas as semelhanças de Gérard Moss e Julio Fiadi, a maior delas parece ser o amor a vida ao ar livre. “A gente tem consciência de que a vida é curta e que o planeta é maravilhoso”, diz Julio.

Eles se tornaram amigos em longas situações de desconforto em que, segundo ambos, todas as máscaras caem. “Num restaurante ou num shopping, todo mundo é gentil”, continua. “Nas expedições, as aparências não servem para nada”. É por isso que suas diferenças são bem aceitas. Um exemplo: quando vão correr a pé, uma atividade que ambos adoram, cada um vai para um lado. “Ninguém corre no mesmo ritmo”, explica Gérard. “Para um não atrapalhar o outro, cada um se aventura sozinho. É assim que a amizade resiste”, conclui.

O ÍDOLO E O FÃ

Na modalidade mais perigosa do surf mundial, fã e ídolo se revezam na admiração pelo outro e se ajudam nos maiores perrengues

Por Daniel Nunes Gonçalves

Os surfistas nem precisam vasculhar a memória: a mais recente situação de perigo rolou mês passado, na ilha de Maui, no Havaí, um dos melhores lugares do mundo para se pegar ondas do tamanho de prédios de sete andares. E isso no estilo tow-in, em que um surfista é levado à crista dessas muralhas marinhas puxado por outro, que pilota um jet-ski.

Na prancha vinha Haroldo Ambrósio, enquanto a responsa de guiar o jet estava nas mãos de Jorge Pacelli. Mas Haroldo largou o cabo que os prendia um pouco antes do ponto ideal, e não teve tempo de sinalizar ao companheiro que iria descer a onda para a esquerda, e não para a direita, como eles sempre fazem. O vacilo podia ter sido fatal. Quando saiu da onda, Haroldo estava a apenas 15 metros de rochas amedrontadoras no meio do Pacífico. E Pacelli estava longe, do outro lado da mítica baía de Jaws. “Quando olhei para trás e vi duas séries de ondas de 30 pés se aproximando, pensei: agora vou me machucar”, lembra Haroldo. Como o colete salva-vidas não lhe permitia afundar, ele tratou de remar desesperadamente para o fundo do mar. Em segundos, seu anjo da guarda motorizado apareceu. “Cara, eu estava com o coração na boca”, desabafou Pacelli, olhando para os olhos do colega, ambos já protegidos atrás da arrebentação. Haroldo agradeceu. “Calma, vamos respirar. Dessa vez, o bicho pegou.”

Perrengues como esse transformaram os dois paulistas em uma das duplas mais entrosadas do tow-in mundial. “Somos amigos há mais de 20 anos. Um conhece o jeito que o outro surfa, sabemos ler as ondas, respeitar o mar”, diz Pacelli, 42 anos, conhecido como o primeiro free-surfer brasileiro, pioneiro entre os profissionais que ganham a vida surfando em mais de 30 países (tanto é que já está em seu sexto passaporte). “Ele é mais cabeça, mais calmo, e eu sou mais emoção, mais elétrico. É um bom complemento”, define Haroldo, 30 anos, considerado a maior fera do tow-in atual por ninguém menos que Laird Hamilton, o pai da modalidade. A combinação se mostrou perfeita há quatro anos, e eles formaram um dueto que nunca mais se separou. “Você sabe o que é ver o cara que era seu ídolo transformado em seu parceiro?”, me pergunta Haroldo. Dá pra imaginar.

Filho do zelador de um prédio do Guarujá, onde nasceu, Haroldo era um caiçarinha de 7 anos quando conheceu Pacelli, 19, já respeitado na roda dos surfistas da praia de Pitangueiras. “Eu era um pentelho, achava o cara o máximo e vivia na casa dele pedindo bermuda, prancha emprestada, essas coisas”, lembra Haroldo. Quando Pacelli começou a série de mais de 20 invernos no Havaí, o sonho do fã passou a ser um só: pegar onda na Meca do surf do lado daquele amigo respeitado mundialmente por sua habilidade de entubar monstros como Pipeline e Backdoor. Hoje, Haroldo também é um surfista profissional patrocinado, com passagens por ondas distantes como as de Austrália, Japão e Indonésia, e até se acostumou às viagens anuais para o Havaí ao lado de Pacelli. “Fui mais longe do que eu mesmo imaginava”, confessa.

O risco de morte no tow-in é um fato, e por isso eles levam a preparação a sério. “O que dá a ‘liga’ é treinar juntos o maior tempo possível”, diz Pacelli. Nos quatro meses por ano que passam no Havaí, eles estão todos os dias praticando algo: surf, tow-in, kitesurf, canoagem. A dedicação tem dado resultado. Em 2006, eles ficaram em segundo lugar no primeiro campeonato brasileiro de tow-in, em Jaguaruna, Santa Catarina, e estão próximos de se classificar na lista oficial dos maiores “tow-surfers” do mundo. Riscos como o que viveram em Jaws no início do ano, eles já enfrentaram vários. “A gente até já deu risada depois de tomar caldos fenomenais, como quando o motor do jet que nos levava apagou, levando nós dois, mais a prancha e o jet, pra debaixo da onda”, lembra Pacelli.

A lista de roubadas compartilhadas vai além do mar. Em 2006, numa viagem de carro de 40 dias para surfar no Chile, quase congelaram ao trocar o pneu do carro a 4 mil metros de altitude, sob um frio de 10 graus negativos. A camaradagem fez o mundo dar voltas… Hoje, quem não sai da casa de Haroldo são os três filhos de Pacelli, também surfistas, fazendo exatamente como o fã de seu pai no Guarujá de duas décadas atrás.

SENHORES DO DAKAR

Há 20 anos, os pilotos abriram as portas do rali Dakar para o Brasil. Juntos, tornaram-se corredores e empresários de sucesso

Por Daniel Nunes Gonçalves

O motociclista André Azevedo lembra-se muito bem da raiva que passou, em 1986, quando um novato impediu sua ultrapassagem na última etapa de um enduro de regularidade, em Atibaia (SP). Para alguém que tinha começado a competir dez anos antes, ser atrapalhado por um grandalhão estreante era algo difícil de engolir. Meses depois, ao ser convidado para ser um dos dois novos pilotos do time de 12 corredores da equipe Trilha, André quase caiu de costas ao reconhecer o outro recém-chegado à equipe: era o tal “tranca-trilha”, Klever Kolberg.

Não teve jeito: os paulistas teriam que dividir o mesmo quarto nas viagens, mesmo um sendo corintiano e o outro palmeirense. O estranhamento só diminuiu quando, no ano seguinte, eles ganharam o prestigiado enduro das montanhas, que passava por Campos do Jordão. Empolgados como se fossem velhos amigos, André e Klever divulgaram que aquela parceria de sucesso tinha um foco: eles iriam disputar o rali Dakar, considerado o mais difícil do mundo.

“Aquilo foi um blefe de marketing”, lembra Klever, hoje com 44 anos, numa conversa que aconteceu logo após a dupla dar uma palestra de uma hora para empresários paulistas, em fevereiro. “Era só um sonho, não tínhamos dinheiro e sabíamos que era como se quiséssemos passar do kart para a Fórmula 1”, diz. “Mas compartilhar daquele segredo acabou nos aproximando”, continua André, 47. Cada um vendeu sua Chevy 500, juntaram 60 mil dólares com patrocinadores e, na virada do ano seguinte, André Azevedo e Klever Kolberg se tornaram a primeira dupla do Brasil a largar no rali Dakar.

A relação que nascera com uma desavença e um blefe se tornou um caso de sucesso. No último mês de janeiro, André e Klever cruzaram pela vigésima vez seguida as areias do deserto do Saara, ambos no comando da equipe Petrobras Lubrax, a única do mundo com participantes nas categorias motos, carros e caminhões entre os 505 veículos participantes. Com André agora piloto de caminhão e Klever guiando um carro, seu grupo de 27 homens conseguiu cruzar os seis países ao longo de 9.000 quilômetros e concluir o desafio, o que já é uma vitória. Em 29 edições, o rali fez 51 vítimas fatais, e em média apenas 30% dos corredores chegam ao fim.


NA ESTRADA: Confiança e respeito para disputar 20 vezes o Rally Dakar

A realidade, hoje, é bem diferente daquela das primeiras participações, quando eles nem chegavam ao final do percurso. Como a equipe se restringia apenas aos dois, eles optavam, por segurança, por guiar lado a lado. “Era um pacto de ajuda mútua”, define André. Além da falta de estrutura inicial e dos desconfortos do deserto – calor, vento, sede –, o Dakar é um desafio emocional. “Fica difícil digerir a miséria que você vê na África”, conta. Em 1990, quando se perderam no deserto de Teneré, no Niger, eles quase foram vítimas da injustiça social. Klever parou para pedir informações e foi cercado por quatro ladrões. “Não fosse o André vir logo atrás e afugentar os caras, eu teria ficado ali, no meio do nada, sem a moto”, conta Klever.

Em outra competição, o Rali dos Incas, em 1989, o tratado de cumplicidade já tinha sido cumprido. O motor da moto de Klever tinha estourado e ele perdeu muitas posições. Três dias depois, a moto de André, que vinha nas primeiras posições, precisava de amortecedores. Klever desisitiu da prova e passou pra frente seus amortecedores.

As grandes roubadas, no entanto, viraram lembranças. A dupla virou sinônimo do rali Dakar no Brasil, e desde 1993 André e Klever são sócios na Dakar Promoções, que cuida das atividades de uma equipe com verba de 5 milhões de reais por ano. O sucesso é tão consistente que eles estão com os mesmos patrocinadores há 14 anos. Além de colecionarem vitórias em várias etapas do Dakar, tornaram-se bicampeões do Rali dos Sertões (em 1997 e 1998), a prova off-road mais disputada do país.

Suas vidas pessoais são separadas, com família e amigos distintos. “Já passamos muito tempo nesse casamento, e para a saúde do relacionamento, a distância é fundamental”, diz Klever. O filho dessa parceria é a empresa, e seu futuro nas competições depende de uma fórmula que já deu certo. “Temos confiança um no outro e sabemos tolerar as diferenças”, continua André. “Foi assim que conseguimos realizar nosso sonho de sucesso no Dakar”.

BRIGA FEIA

Eles eram os melhores amigos e viraram os piores inimigos

Por Gordy Megroz

Amigos para sempre! Messner estava um caco depois da travessia dos 8.125 metros do Nanga Parbat, no Paquistão, onde perdeu sete dedos para o frio e seu irmão, Günther, morreu, aparentemente em uma avalache. Quando o colega de expedição, von Kienlin, o convidou para passar um tempo se recuperando em seu castelo em Munique, na Alemanha, que ele dividia com sua esposa, Ursula, Messner aceitou prontamente.

Oops, foi mal: Messner foi um hóspede muito ruim – e não porque bebia o leite direto da caixa. No período de um ano, Ursula anunciou que estava deixando Max para se casar com Reinhold (ela e Messner se divorciariam em 1977.) As tensões voltaram a se inflamar em 2001, quando Messner culpou publicamente seus antigos companheiros por deixarem de ajudá-lo a salvar Günther. Von Kienlin contra-atacou com um livro, The Traverse, alegando que Messner admitiu certa vez ter abandonando o irmão na montanha. A resposta de Messner foi o escárnio – “Ele perdeu a esposa para mim”, ele disse mais tarde para a Outside norte-americana – mas ele também processou von Kienlin, que teve que revisar as edições seguintes do livro.

O perdão é possível? Pouco provável. Von Kienlin não está disposto a parar com as provocações. “Messner adora essa controvérsia – assim ele consegue publicidade”, diz. “Mas meu sonho é todos nós subirmos no cume do Monte Chimborazo no Equador e apertarmos as mãos.” A resposta de Messner: “Eu não tenho o menor interesse em Von Kienlin”.

Campeões do Tour de France

Amigos para sempre! Os astros do ciclismo estavam cheios de afeição mútua depois da primeira vitória de Armstrong no Tour de France, em 1999. “Aquela corrida compensou a desgraça do ano passado”, LeMond falou para os repórteres, referindo-se aos escândalos do Tour de 1998. De sua parte, Armstrong disse que considerava seu colega um herói: “Assistir LeMond em 1989 me fez sonhar pela primeira vez com o Tour de France”.

Oops, foi mal! Com Armstrong vestindo a camiseta amarela em 2001 – e quase empatando com o recorde americano de LeMond, com três vitórias no Tour – LeMond não pedeu tempo para atacá-lo. Após notícias de que o texano tinha ligações com um médico italiano que estava sendo acusado de ajudar atletas que usavam doping, LeMond falou aos repórteres “Eu só elogiaria Lance se achasse que ele está limpo, mas até o julgamento do Dr. Ferrari, não podemos ter certeza”. Mais tarde ele se desculpou, mas o estrago estava feito.

O perdão é possível? Não com um nível (natural) de testosterona tão alto. Em junho de 2006, LeMond falou ao jornal francês L’Equipe que recentemente havia testemunhado em uma disputa legal em que Armstrong estava envolvido e que Armstrong havia “ameaçado minha esposa, meu negócio, minha vida”. Armstrong, enquanto isso, alega pura loucura. “Greg não só perdeu o contato com a realidade como está obcecado em destruir minha carreira”.

Mergulhadores livres

Amigos para Sempre! Em 1988‚ quando se conheceram em uma sessão de fotos, o italiano Pelizzari era detentor do recorde de apnéia estática (ele prendeu o fôlego sob a água por cinco minutos e 33 segundos). O cubano Ferreras tinha o recorde de “lastro constante” (com nadadeiras, ele descia a 70 metros). Quando os amigos começaram a disputar numa boa o recorde do “sem limites” (ele trocaram de posição quatro vezes entre 1990 e 1993, chegando a profundidades de 115 a 125 metros com ajuda de pesos deslizantes), eles deixaram que os jornalistas pensassem que eram inimigos mortais. “Queríamos tirar o máximo daquilo tudo”, escreveu Ferraras em seu livro de 2004, The Dive. “Afinal de contas, sem a mídia, não éramos nada”.

Oops, foi mal! Culpe a falta de oxigênio – ou o choque de egos gigantes – mas nos anos 90 a briga de mentira virou realidade. Ferreras certa vez recusou-se até mesmo a ficar no mesmo hotel que Pelizzari. Nenhum dos dois aponta o que aconteceu exatamente. “É normal em qualquer esporte”, explica Pelizzari. “Quando você compete e o desafio vai ficando cada vez maior, acaba se criando a separação”.

O perdão é possível? Se baleias e cracas podem ter uma relação simbiótica nos mares, quem sabe esses caras não possam também? “Não vejo por que não”, diz Ferreras. “Tudo que ele precisa fazer é dizer oi”. “Não estou bravo com ele”, oferece Pelizzari, “mas é preciso dois para dançar”.

O poder da dupla


Hilaree O’Neill e Kasha Rigby, alpinistas esquiadoras

O’Neill e Rigby se conheceram há sete anos, em uma lavanderia em Chamonix, na França. Desde então realizaram 12 expedições das grandes, escalando e esquiando de picos da Argentina ao Líbano. O que selou a amizade entre elas, além do vício comum em masoquismo de altitude? Cinco dias de tempestade presos em uma caverna no Monte Elbrus de 6.542 metros de altura, na Rússia, em 1995. “Não é só que escalamos juntas”, explica Rigby. “Podemos estar cansadas, com frio e famintas, e ainda curtimos a companhia uma da outra”. GRANDE MOMENTO: uma escalada em 2005 do Cho Oyu, de 8.201 metros, sem ajuda de sherpas (ou seja: muita coisa pra carregar). PAPÉIS: “Sou melhor em cordas e fendas, e esquio com mais confiança”, diz O’Neill, que mora em Telluride e tem 33 anos. “Kasha é melhor para achar rotas”. “Hilaree é muito boa”, conta Rigby, que tem 36 anos e mora em Salt Lake City. “Eu me viro sendo regular”. O FATOR MARTHA: “Kasha às vezes esquece de levar uma camiseta extra”, revela O’Neill, “mas sempre leva óleo de lavanda para que nossa tenda não fique fedendo”. A SEGUIR: Norte de Myanmar ou o lado indiano dos Himalaias. “Nossa próxima viagem vai ser longe dos lugares mais freqüentados”, conta O’Neill. “Um retorno aos antigos dias de aventura”.

O poder da dupla

Brad Gerlach e Mike Parsons, surfistas de tow-in em grandes ondas

Para confiar em alguém para ser sua segurança em ondas com mais de 20 metros, o cara tem que ser seu amigo de longa data. Na verdade, não. “Quando a gente estava no Pro Tour, a gente não se gostava”, diz Parsons. Foi só em 1999, no Todos Santos do México que os dois fizeram tow-in um para o outro em swells mortais. “Todos vez que encarávamos as ondas”, lembra Gerlach, “parecia natural”. GRANDE MOMENTO: Em 2001, Parsons ganhou a XXL, competição de grandes ondas depois que Gerlach fez o tow-in que o pôs em um montro de 21 metros em Cortes Banks, a 160 km de San Diego. Ano passado, Gerlach ganhou o XXL 2006 por uma onda de 22 metros em que Parsons o jogou em Todos Santos, em dezembro último. PAPÉIS: “Mike é o capitão”, diz Gerlach, de 40 anos, que mora em Los Angeles. “Ele é o cara com o jet ski e que fica de eolho na internet atrás dos grandes swells. Eu só apareço na hora”. “Brad é o melhor surfista”, oferece Parsons, de 41 anos, que vive San Clemente. “E ele traz a comida”. O que não te mata: “Brad fez um tow-in pra mim em uma onda de 16 metros em Jaws, em 2005, então alguma coisa apareceu no seu caminho e ele não pôde me pegar. Fui jogado nas pedras, Fiquei furioso”, conta Gerlach. “Eu contei essa história no casamento dele”.—H. Thayer Walker


(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de março de 2007)