Menina dos olhos

FACES DA TERRA: Menina da etnia Xhosa

Por Andréa Estevam

FALTAM POUCO MAIS DE 48 HORAS PARA DEIXARMOS A ÁFRICA DO SUL. Pela primeira e única vez na viagem, nos vemos dentro de um clichê turístico sul-africano: um safári. E até isso é bacana – um final inevitável para uma road trip surpreendente. Nos 28 dias que já passamos no país, rodamos cinco mil quilômetros de carro e outros tantos a pé, de bike e de caiaque. Conhecemos sete parques nacionais e dezenas de reservas ecológicas. Dormimos em 19 cidades diferentes, comendo e bebendo super bem. E, o melhor de tudo, sem voltar para casa com um rombo na conta corrente – coisa rara, a moeda sul-africana é 3,4 vezes mais barata que a brasileira. Sentimos o cheiro ainda azedo do apartheid e dos conflitos raciais. Visitamos comunidades rurais que ainda vivem no passado. Aproveitamos a ótima estrutura de ecoturismo, uma alternativa econômica real e viável para um país que luta contra a pobreza. Conhecemos quilômetros e quilômetros de praias, algumas já com cara de point badalado, outras ainda totalmente selvagens. Nos curvamos às espetaculares montanhas sul-africanas em trilhas de mountain bike e trekking. E assim fomos, dia após dia, atingidos no peito pela força da nação arco-íris.

Na pontinha da África, ocupando uma área que equivale a duas Franças e com uma população de mais de 47 milhões de habitantes, a África do Sul é o país mais desenvolvido do continente africano. Foi colonizada em diferentes épocas por ingleses, holandeses e franceses, que trouxeram escravos da Indonésia, Madagascar e Índia. Uma mistura e tanto. O país é dividido em nove províncias, mas como em tudo na África do Sul, o passado se infiltra no presente: no meio de seu território, existem dois antigos reinados soberanos, Lesotho e Suazilândia.

Nesse espaço todo, convive uma impressionante diversidade de ecossistemas e paisagens, num surpreendente parque de diversões naturais para todos os gostos e bolsos. O norte é árido e lunar. O interior, plano e seco. O litoral leste é banhado pelo oceano Índico e delineado por florestas; o oeste tem as águas do Atlântico e é margeado de campos floridos. A diversidade continua nas crenças, nas línguas (inglês, africânder e outros nove dialetos são reconhecidos como línguas oficiais), nas religiões e tradições. A desigualdade social também se faz presente: assim como o Brasil, a África do Sul é um país de duas realidades; a dos ricos e a dos pobres.

O Apartheid – política de segregação racial que nasceu em 1948 e que durante décadas simplesmente isolou os negros da sociedade, negando-lhes acesso a educação, condições dignas de trabalho e até o direito de viver junto aos brancos – foi extinto em 1994, mas suas conseqüências práticas duram até hoje, assim como o ressentimento que os negros carregam desse passado. Na África do Sul não há mulatos, o preconceito é bilateral. Em nosso mês de viagem, não vimos negros e brancos namorando ou sentados juntos, na mesma mesa. Unir essas cores, violentamente separadas durante tantas décadas, vai levar um bom tempo.


LITORAL LESTE: da África do Sul, sob os paredões de rocha da Table Mountain

O FILÉ MIGNON DA ÁFRICA DO SUL são seus 2.500 quilômetros de litoral, principalmente a sua porção índica. É lá que ficam a Rota dos Jardins (Garden Route), um trecho de praias badaladas onde estão as casas de veraneio dos sul-africanos endinheirados e o melhor pedal que fizemos na viagem. Seguindo o litoral rumo ao norte, vem então a Costa do Sol (Sunshine Coast), com os tubos intermináveis de Jeffrey’s Bay, e a Costa Selvagem (Wild Coast), com praias ainda inexploradas e trekkings lindíssimos.

Os vôos que saem do Brasil aterrissam na Cidade do Cabo (no sul) ou em Johannesburgo (ao norte). A dica é chegar em uma dessas cidades e percorrer o litoral até a outra, com alguns desvios ao interior para conhecer alguns pontos imperdíveis, como as montanhas de Cederberg e o majestoso maciço de Drakensberg, com seus picos de mais de 3.000 metros de altitude. Seja qual for a direção que você escolher, a melhor pedida é alugar um carro. A rede de trens e ônibus não é extensa nem confiável, e o serviço Baz Bus (www.bazbus.co.za) – microônibus que unem pousadas e hotéis credenciados – tem horários e itinerários restritos, além de ser mais demorado porque vai “pingando” de cidade em cidade. Um carro alugado, um bom mapa rodoviário e o guia Coast to Coast – livrinho de bolso que é distribuído gratuitamente nas pousadas e hotéis de mochileiros, e que traz toda a informação de que você pode precisar sobre hospedagem e atividades ao ar livre no costa sul-africana – vão te garantir uma viagem muito mais confortável e proveitosa.


JANELA PARA O CÉU: O Wolfberg Arch, ponto de chegada de uma das trilhas mais loucas do Cederberg

Eu e meu namorado, Eric, aterrissamos na Cidade do Cabo, depois de oito horas de vôo saindo de São Paulo. Cape Town, como a cidade é chamada em inglês, tem um quê de Rio de Janeiro, com praias e montanhas em plena cidade. Mas é bem menor, mais limpa e moderna. É uma das cidades mais “brancas” e cosmopolitas da África do Sul – se não saíssemos do perímetro urbano, dava até pra esquecermos que estávamos na África. É na periferia que ficam as gigantescas townships (velhas conhecidas nossas, as favelas), onde se amontoam 95% da população negra da península do Cabo. Depois de ver dezenas de quilômetros de barracos e casas alquebradas, percebemos que a verdadeira fronteira da África do Sul é o dinheiro. Os moradores das townships eram mais estrangeiros que nós naquele país.

Se você tiver que escolher uma única coisa para fazer em Cape Town, suba a Table Mountain (www.tablemountain.net). O nome descreve bem o que é a montanha: uma grande mesa de arenito, com 1.086 metros de altura e um platô de cerca de três quilômetros de largura, que começa na cidade e se estende até o fim da península do Cabo, cercada de íngremes penhascos. A Table Mountain é caprichosa: durante muitos dias ela fica coberta por uma fina camada de nuvens conhecida como “toalha de mesa”. A montanha só pode ser subida, pelas trilhas ou pelo bondinho que leva turistas ao cume, quando está sem essa nuvem. Para saber se a montanha está liberada, é preciso ligar para o telefone (021) 424 8181, que também informa sobre os horários de funcionamento do bondinho naquele dia.

Mas o legal mesmo é subir nessa mesa à pé ou de bike. A trilha de Platteklip Gorge tem fácil acesso – ela começa perto da estação do bondinho, onde você pode estacionar seu carro – e sobe em ziguezague, entre paredões de pedra, até o topo. Andarilhos bem condicionados levam cerca de 90 minutos para vencer a subida. No platô existem dezenas de outras trilhas, todas sinalizadas e bem cuidadas. Dá pra ficar horas, até dias, andando ali por cima e vendo os visuais do oceano Índico e Atlântico, um de cada lado. Também dá para subir escalando, pedalando ou por trilhas que exigem domínio de técnicas verticais. Se você quiser se aventurar pela montanha, compre o mapa da montanha no centro de informações ao visitante da Cidade do Cabo. Ele mostra todas as trilhas, com descrições do caminho e previsão de tempo. Para os bikers, a dica é contatar a operadora Adventure Centre

(www.adventureshop.co.za), que leva seus clientes lá para cima de carro e depois despenca com eles por downhills alucinantes.

Se a Table Mountain é o ponto mais turístico da Cidade do Cabo, a montanha Lion’s Head é o pico preferido dos locais para curtir um pôr do sol ou ver a lua nascer no Atlântico. A trilha que leva a seu cume é super conhecida e bem sinalizada – é só perguntar pra qualquer cabodiano. São 90 minutos de caminhada e 360 graus de visual da Cidade do Cabo, com suas praias urbanas e jardins botânicos – a cidade é uma das mais arborizadas do mundo. As trilhas da Table Mountain e do Lion’s Head são exemplo de infra-estrutura e sinalização, mas são também técnicas, cheias de pedras e desníveis. Mesmo assim, encontramos gente de todos as idades e condicionamentos caminhando pra lá e pra cá.


SURPRESA: Ninguém nos avisou que no fim da trilha de bike íamos encontrar este visual

Reserve também um dia para conhecer a Reserva Natural de Cape Point (Cape Point Nature Reserve), que é parte do Parque Nacional de Table Mountain e fica na pontinha sul da península. A estrada que vai da Cidade do Cabo até lá beira o Atlântico e parece um pouco a famosa Pacific Highway, na Califórnia, com curvas que contornam penhascos e praias, começando pelas badaladas praias da cidade, Camps Bay e Clifton Bay, cheias de cafés e bares. Em ritmo de cruzeiro, com paradas para fotos, vinhos e nacos de queijos brie (mais baratos do que mussarela!), levamos três horas para chegar à reserva, onde ficam o Cape Point, ponto mais meridional da península, e o Cabo da Boa Esperança – aquele, que dizemos cruzar depois dos 50 anos de idade. A opção de atividades na reserva é enorme: trilhas de trekking e bike, mergulho em naufrágios (para quem não tem medo de águas gélidas), monumentos históricos e áreas de piquenique. Tudo isso sob a invariável força do “Cape Doctor”, nome que os nativos deram ao vento que vem de sudeste e varre a região, levando embora a poluição e trazendo boa sorte.

Ainda na órbita da Cidade do Cabo, mas em direção ao norte, está Stellenbosh, centro da produção vinícola da África do Sul, a duas horas de viagem da Cidade do Cabo. A cidade, segunda mais antiga do país, concentra centenas de vinícolas, a maioria delas oferecendo degustação e tour por suas instalações. Para mim, até então uma completa leiga no assunto, foi uma imersão fascinante num mundo de aromas e misturas sutis – tão sutis que na maioria das vezes eu não conseguia captar as madeiras, frutas, cafés e chocolates que os atendentes nos diziam estar contidos em cada garrafa. Mas era gostoso mesmo assim. Vá até o centro de visitantes da cidade e peça o mapa das vinícolas. Escolha algumas e se entregue a Baco.


FIRMEZA: Escada de ferro que leva ao topo do Amphitheatre, no maciço de Drakensberg

POUCOS TURISTAS DIRIGEM OS 250 KM – 62 deles em estrada de cascalho – que separam a Cidade do Cabo de uma das áreas de montanha mais bonitas da África do Sul: Cederberg (www.cederberg.co.za), área protegida como Patrimônio da Humanidade e parte da Reserva Natural do Cabo. O lugar é uma rede de picos de escalada e trilhas para trekking e bike. Suas rochas em tons de vermelho e ocre assumem formas inexplicáveis como a Maltese Cross e o Wolfberg Arch. O trekking que vai ao Arch é imperdível, passando entre enormes blocos de rocha e paredões de pedra com centenas de metros (chamadas de Wolfberg Cracks, ou fendas de Wolfberg). Fique na pousada Cederberg Oasis (www.cederbergoasis.co.za) e, se não tiver medo de se espremer entre boulders gigantescos, peça ao dono, um figuraça chamado Herald, para te desenhar o mapa da trilha que vai ao Arch passando pelas Cracks e pela “Dark Passage” (Passagem escura) – uma espécie de “game B” para aventureiros mais saidinhos. São oito inesquecíveis horas de trekking, ida e volta.

Os dois dias que passamos em Cederberg foram incríveis, não só pelas trilhas como pela comida e hospitalidade de Herald. Nosso primeiro jantar na pousada – uma bisteca suculenta, com batatas fritas e vegetais grelhados, pelo irrisório preço de 20 Rands ou R$ 6 – foi especialmente educativo. Dividimos a mesa com um casal da Cidade do Cabo, ambos com cerca de 50 anos, que nos mostraram uma perspectiva surpreendente da situação da classe média branca sul-africana. Ele, Matthew, fora despedido por causa da política governamental de cotas para negros. Sem conseguir outro emprego, se aposentou precocemente. “Hoje é mais difícil para um homem branco conseguir um emprego do que para um negro”, ele nos disse. Herald, branco descendente de holandeses, moveu a cabeça afirmativamente, concordando com seu hóspede. “É, my friend, essa história de cotas está deixando muita gente numa pior”.

A esposa de Matthew, Jane, trabalha numa farmácia tradicional da cidade, mas não sabe até quando. Talvez a farmácia seja comprada por uma grande rede e ela pode perder o emprego, ou ter que abrir mão do tratamento pessoal que gostava de dispensar aos clientes. É o progresso trazendo novas desigualdades.

Cederberg também é um conceituado pico de escalada e tem muitas trilhas de mountain bike, mas não há como alugar equipamentos e magrela por lá. Melhor alugar na Cidade do Cabo e levar para a reserva. Não acho que valha a pena levar a bike do Brasil e carregá-la durante toda a viagem. A África do Sul é tão segura quanto o nosso país, ou seja, é preciso tomar cuidado com suas tralhas, ou periga não achá-las onde deixou. Na maioria dos lugares é possível alugar bikes decentes e se divertir sem preocupação.


PELADA: Futebolzinho de fim de tarde nas colinas de Mdumbi, na Costa Selvagem

A FAMOSA GARDEN ROUTE OU ROTA DOS JARDINS (www.gardenroute.co.za) vai de Mossel Bay até o rio Tsitsikamma, numa seqüência de praias, baías, penhascos e montanhas costeando o litoral leste. A área recebe bastante chuva e por isso concentra a maior parte das poucas florestas úmidas da África – bem parecidas com a nossa Mata Atlântica, por sinal. Há praias perfeitas pro surfe, outras ótimas para mergulho, e quase todas infestadas por baleias, principalmente na primavera, de agosto a novembro. Por ser uma espécie de riviera sul-africana, na Rota dos Jardins tudo é um pouco mais caro, mais desenvolvido, mais arrumadinho. É como o litoral norte paulista, com estrutura de turismo desenvolvida e também lugares lindos e desertos para curtir a natureza, pra você se embrenhar em trilhas durante o dia e curtir um bom jantar à noite. Aproveite estes dias de luxo, porque mais adiante você terá poucas opções de restaurantes e pousadas.

Ao longo de toda a Rota, a N2, uma das principais rodovias da África do Sul, segue colada ao litoral. O lance é ir dirigindo, parando nas cidadezinhas e decidindo onde dormir ou passar o dia – mas esse esquema livre e desimpedido só dá certo na baixa temporada; no verão é preciso reservar hospedagem com antecedência, ou corre-se o risco de ter de dormir no carro, ou de gastar uma fortuna. Mossel Bay, primeira praia para quem segue a rota de sul para o norte, como fizemos, vale a pena para quem quer surfar. É um dos picos mais consistentes do litoral sul-africano. Lá, assim como em vários outros pontos da rota, também é possível fazer o famoso shark cage diving – entrar numa gaiola e ser mergulhado no mar como um saquinho de chá, para encarar tubarões bem de perto. Como não nos animamos com essa idéia, seguimos em frente e paramos na próxima praia, Hartenbos. Com areia batida e muitos quilômetros de extensão, ela é perfeita para uma corridona de fim de tarde. Lá, ficamos no chalezinho mais barato da viagem: uma simpática oca por 126 Rands a diária do casal (menos de R$ 40).

Cerca de 50 quilômetros depois de Mossel chegamos a Wilderness, uma cidadezinha litorânea cercada pelo Parque Nacional de Wilderness, com sua fileira de lagos e quilômetros de praias separados por uma fina faixa de terra, por onde passa a N2. Lá ouvimos falar pela primeira vez em kloofing – descer rios a pé, transpondo cachoeiras de rapel e saltando de pedras em pedras, às vezes de pedras em poços. A Eden Adventures (www.eden.co.za) tem um roteiro de kloofing de um dia, que passa por gargantas que em alguns trechos têm somente um metro de largura, mas quase 100 metros de altura.

Knysna, outros 46 quilômetros adiante na N2, é uma das cidadelas mais agitadas e estruturadas da rota. É um estuário maravilhoso, guardado por duas rochas que eles chamam de “Heads”, uma de cada lado da entrada do lago. A praia Brenton On The Sea fica a poucos minutos de carro do vilarejo e tem um pôr do sol clássico, que pode ser apreciado em grande estilo dos bancos estrategicamente colocados no topo das falésias. Coisa fina.

Mas o que você não se pode deixar de conhecer de jeito nenhum são as trilhas de bike de Harkerville, uma propriedade particular 15 quilômetros ao norte de Knysna. Você paga 25 Rands (cerca de R$ 7) para entrar e recebe um mapinha com quatro opções de trilhas, diferenciadas por cores. A vermelha e a verde são as mais legais, porque chegam pertinho da beirada dos penhascos e têm visual do mar. Escolhemos a vermelha, de 24 quilômetros, e vimos todas as nossas maiores expectativas serem superadas em grande estilo. A trilha tem single tracks perfeitos – alguns no meio da floresta úmida, outros entre os fynbos, uma vegetação de arbustos típica da África do Sul – que sobem e descem as colinas e chegam na beira dos penhascos, num dos visuais mais impressionantes de toda a viagem. Foram quatro horas de pedal, completados com um sorriso no rosto. Esse rolê merece a fama que tem de melhor trilha de MTB da África do Sul.

A Rota continua por Plettenberg Bay, praia onde o grande barato é dar um rolê de caiaque oceânico para ver as baleias de dentro da água. As baleias vão para essa região na primavera para ter seus filhotes e ficam ali cinco meses, alimentando seus rebentos com 600 litros diários de leite. Em nossa remada, levados pela Dolphin Adventures (www.dolphinadventures.co.za), encontramos somente uma baleia preguiçosa, provavelmente grávida, que deixou que chegássemos a 50 metros de distância, mas não se animou a dar uns saltos para nos deixar mais felizes. Tudo bem: ver de perto suas cracas e ouvir o barulho do sopro de ar que sai de sua cabeça valeu a remada.

Saímos de Plett (como os locais chamam a praia) e trocamos a N2 pela estradinha não pedagiada, linda, que cruza o passo de Grootrivier e passa pelo Nature’s Valley para chegar ao Parque Nacional de Tsitsikamma, uma estreita e longa faixa de litoral que vai de Nature’s Valley ao rio Groot. Tsitsikamma merece dois dias inteiros de suas férias. No parque há dezenas de trilhas, de poucas horas a vários dias de duração. É pagar os 40 Rands (R$12) de entrada, pegar o mapa e escolher por onde e quanto andar. A ponte suspensa que cruza o rio Storms é imperdível e rende um friozinho na barriga. Espante a preguiça e encare a trilha que começa do outro lado da ponte e sobe até o mirante no topo do penhasco. De lá de cima dá pra ver longe. E não deixe de ir até a cachoeira, a pouco mais de 1,5 hora de caminhada pelo trecho inicial da Otter Trail – trilha de 42 quilômetros que é percorrida em cinco dias e exige reserva com antecedência. Fizemos a trilha correndo – literalmente – contra o relógio, porque já era quase fim de tarde. As ondas explodiam nas pedras ao nosso lado, passávamos zunindo pelos single track dentro da mata e pulávamos as pedras nos trechos em que a trilha virava costeira, às vezes com água pelo joelho. Foi ótimo.

Depois da Rota dos Jardins, o próximo trecho de litoral que realmente vale a pena – ei, são 2.500 quilômetros de praia e é preciso fazer escolhas! – é a Costa Selvagem, ou Wild Coast. No caminho, porém, não dá para ignorar a lendária Jeffrey’s Bay, onde ficam as direitas mais longas do mundo, sonho de 10 entre 10 surfistas e palco de uma das etapas do circuito profissional mundial, o Billabong Pro WCT, em julho. Até quem não pega onda fica com vontade de começar, e pra isso existem na cidade várias escolinhas de surfe. Fora as ondas, J-Bay é o pico das compras. Todas as grandes marcas de surfwear têm na cidade suas lojas de fábrica, com preços super baixos. Nosso carrinho alugado saiu de lá abarrotado de sacolas.


NA FISSURA: As Wolfberg Cracks ou fendas, trilha surreal para se chegar ao topo do Cederberg

A COSTA SELVAGEM PARECE O LITORAL DO SUL DO BRASIL, com praias de areia branca permeadas de colinas gramadas e rios que desembocam no mar. A N2 passa longe desse trecho da costa. Para chegar a cada praia, é preciso encarar mais de 100 quilômetros de estradas vicinais, sempre retornando à N2 para ir à próxima vila. Isso tem ajudado a manter esta costa ainda intacta, mas impediu que conseguíssemos conhecer muitas praias desse trecho. A região é totalmente rural, pontilhada por esparsas cabanas Xhosa – principal etnia que vive nesta área –, redondas e com teto de palha. O povo é pobre, paupérrimo, e vive da criação de gado, cabras e carneiros. A terra é ruim. O acesso à água e ao saneamente básico é limitado. Nós, os turistas, somos a luz no fim do túnel para essa gente.

Elegemos as duas praias mais famosas da Costa Selvagem para conhecermos: Chintsa (pronuncia-se Tsíntsa), a menos de duas horas de East London, e Coffee Bay, um pouco mais ao norte. A estrutura turística das duas é pequena. Cada uma tem duas ou três pousadas e não existem restaurantes – você pode fazer seu rango nas cozinhas comunitárias ou encarar os jantares oferecidos pelas próprias pousadas (nossa experiência mostrou que comemos melhor quando fizemos nossa comida). As estradinhas que levam até as duas praias são bem perigosas, sem iluminação ou sinalização e com muitos animais e pessoas andando na pista. Melhor encará-las só de dia.

Chintsa é uma delícia de praia, totalmente deserta e sem nenhuma construção à vista. A única pousada é a Buckanneer’s (www.cintsa.com), mas a falta de opção não é problema porque essa foi um dos melhores lugares em que nos hospedamos em toda a viagem – peça para ficar numa das suítes com vista para a praia. O rio que desemboca na praia é ótimo para uma remada, e a pousada disponibiliza caiaques e remos para os hóspedes, além de passeios à cavalo pela praia. Ali conhecemos um casal inspirador, nossos vizinhos de quarto: David e Helen, dois londrinos que resolveram comemorar seus 25 anos de casados com uma viagem de um ano ao redor do mundo. E aquela era apenas a segunda semana deles fora de casa.

Coffee Bay é famosa por causa da Hole In the Way (Muralha Furada), uma das formações rochosas mais peculiares da África do Sul. O paredão, separado do continente e com um arco que se parece uma porta para o mar, é realmente lindo, mas o trekking que vai da vila até ele é ainda mais impressionante. Passa por colinas gramadas que deslizam até as pedras, que por sua vez encostam-se no mar ou nas praias. Ovelhas, cabras e vacas pastam pelo caminho e algumas cabanas Xhosa podem ser vistas aqui e ali. Decidimos ir sem guia, mas acabamos ganhando um no meio do caminho, por acaso. Seu nome era Boneta e ele estava indo na mesma direção, junto com seu primo. Falava um pouco de inglês e passou a caminhar com a gente, com os pés descalços. Recusava-se a aprender o africânder, língua dos brancos. Em sua casa e na escola, só falavam o dialeto Xhosa. Contou que queria ser médico, porque “não tem nenhum doutor em Coffee Bay”, e lamentou o fato do avô ser policial. “Outro dia mataram um policial aqui perto”, preocupa-se. Andando rápido e ouvindo as histórias de Boneta, chegamos a Hole in The Wall em menos de duas horas.

Nossa casa em Coffee Bay foi a pousada Bomvu Paradise (www.bomvubackpackers.com), auto-proclamada o centro dos tambores na África do Sul. As instalações são mais simples – chuveiros, só fora do quarto –, mas o astral é especial. Os donos, Karl e sua esposa, Monique, fazem um trabalho muito bacana na comunidade. Empregam dezenas de nativos na pousada, ajudam a criar as crianças órfãs que ficaram órfãs por causa do HIV e encabeçam o projeto “AIDS To Eden”, que tem como objetivo usar os tambores – com aulas, produzindo e vendendo instrumentos ou com workshops – para arrecadar fundos para a educação da população xhosa sobre a AIDS. Assim como os donos de outras pousadas, eles pedem que os turistas não dêem dinheiro ou doces para as crianças, para não transformá-las em pedintes. Karl e Monique querem incentivá-las a trabalhar e produzir.

No Bomvu vimos uma apresentação de dança Xhosa e assistimos à batucada dos meninos que fabricam seus famosos tambores com tronco de árvores e pele de cabras. Os caras são uma espécie de Olodum sul-africano, muito bons de ritmo. Com o incentivo de Karl e Monique, estão ensaiando para se apresentar na Polônia. Kobra, apelido de um dos integrantes do grupo escolhido para ir pra Europa, estava empolgadíssimo com a idéia. “Entrar num avião, imagina só. Nunca saí de Coffee Bay. Quando voltarmos, seremos reis para nossos irmãos”.


ALÉM DO HORIZONTE: Pedalando em direção ao penhasco na trilha de bike em Knysna, na Rota do Jardim

SAINDO DO LITORAL RUMO ÀS MONTANHAS DE DRAKENSBERG, as mais altas da África do Sul, deixamos a província de Eastern Cape e entramos em Kwala Zulu Natal. A mudança foi imediata. Das estradas secas e cheias de animais soltos, fomos para vales bem irrigados, plantações cuidadas e animais atrás de cercas.

As Drakensberg (“Montanhas dos dragões”) são uma enorme formação rochosa com picos que chegam a 3.482 metros. Os zulus, etnia que vive nesta província, batizou os picos recortados de Ukhahlamba, ou “barreira de lanças”. Ótima descrição. O maciço estende-se por mil quilômetros e possui três áreas distintas: a região de Underberg, mais ao sul; o Central Berg, no meio; e o Northern Berg, onde fica o Parque Nacional de Royal e os cumes mais altos e espetaculares. A estrada que une tudo é a R74.

É tudo muito grande e muito lindo, então vale a pena reservar no mínimo cinco dias para conhecer a região, protegida como Patrimônio da Humanidade. No Underberg, o destaque é a Sani Pass, um dos passos de montanha mais espetaculares da África. A estradinha sobe a 2.874 metros, sendo que o trecho final – possível somente para bikers, trekkers ou veículos 4×4 – sobe 1.330 metros de desnível em 8 km. Subimos a piramba a pé. No meio do caminho, cruzamos a fronteira com Lesotho, um dos reinados independentes incrustados na África do Sul. Só entra-se com passaporte, depois de passar por um decrépito escritório de imigração. Chegando perto do cume, o vento nos jogava para trás e as mãos congelavam. Foi um alívio entrar no Sani Top Chalet (www.sanitopchalet.co.za), o bar mais alto da África, e tomar um vinho e uma sopa na frente da lareira.

No inverno, de maio a junho, as montanhas de Lesotho ficam cobertas de neve esquiável, mas não há estrutura de teleféricos: quem desce tem que subir andando. Daí o sentido da placa na entrada do bar, construído em 1958: Lesotho is not for sissies (Lesotho não é para molengas). Também não foi para molengas descer aquela piramba como fizemos, correndo a passos largos. A fronteira fechava às 16 hs e começamos a descer às 15h10. Chegamos faltando dois minutos para fecharem os portões.

Na região do Central Berg há outro passo famoso, o Mike’s Pass, perto do pico conhecido como Cathedral Peak. O caminho é uma trilha de mountain bike das mais duras e bonitas, com 25 quilômetros de subida forte e um arrepiante downhill de sete quilômetros. A operadora Ezemvelo Wildlife organiza o pedal: (33 845 1000). O trekking mais famoso dessa região é o que sobe o Cathedral Peak, com 3.004 metros de altitude. A trilha é técnica e exposta, pra quem não se incomoda com altura, e precisa ser feita com guias. O ponto de partida para conseguir um é ligar no Cathedral Hotel (36 488 1888). A subida leva cerca de seis horas e, dizem, o visual compensa o esforço. No dia que havíamos marcado para subir essa trilha, junto com um sul-africano que estava se preparando para subir o Kilimanjaro e dois animadíssimos jovens israelenses, acordamos às cinco da manhã com chuva, o que cancelava automaticamente o trekking. Uma pena – ou será que foi sorte?

Mas a melhor parte das Drakensberg é sem dúvida sua porção norte, onde fica o Parque Nacional de Royal Natal. É lá que ergue-se o Amphiteatre, um inimaginável paredão de rocha com 3.000 metros de altura e seis quilômetros de extensão, formando um leve “u” que explica o nome. Na entrada do parque, recebemos um mapa das trilhas, com distâncias e duração estimada de cada uma. Num dia, fizemos a trilha chamada de Gorge (Garganta), maravilhosa. Ela segue pelo vale, acompanhando o rio Tugela em direção ao Amphitheatre e chegando ao pé do paredão. No outro dia, dirigimos cerca de duas horas até o estacionamento do Sentinel, um dos picos que flanqueia o Amphiteatre, com 3.165 metros. Do estacionamento, subimos a pé por duas horas, passando pelas tão cometadas chain ladders – escadas de ferro, mais atemorizantes na imaginação do que na prática – até chegar ao topo do rochedo. Nem dá pra começar a descrever o visual que se tem lá de cima, da beira do precipício.

Lá em cima, encontramos dois casais com quem já havíamos nos encontrado em pontos diferentes da viagem. Engraçado, isso. Como a rota é basicamente a mesma, você vai “trombando” com as mesmas pessoas, vindas de todos os lugares do mundo, em diferentes pontos da viagem.


PINTURA: Cores e formas do maciço de Drakensberg

COM A CHUVA NA MONTANHA, decidimos voltar para o litoral. Foram sete horas de viagem do norte das Drakensberg até o Parque Nacional de St Lucia, um estuário habitado por hipopótamos (como vimos com nossos próprios lhos) e crocodilos (como dizem, mas não vimos). Todo fim de tarde, os hipopótamos, redondos, ficam na beira do rio, boiando e bocejando em família. Uma simpatia.

A ida para St Lucia tinha um objetivo: conhecer as reservas animais de Hluehlue e Imfolozi – em outras palavras, fazer um safári. O que nos leva exatamente ao ponto em que esta reportagem começou. Acordamos ainda de noite, às 4h30 da matina. Dirigimos 40 quilômetros até a reserva, seguindo durante parte do trajeto um caminhão cheio de trabalhadores, tipo bóias-frias. No fim do dia, ao voltarmos para St. Lucia, veríamos o mesmo caminhão, com aquelas mesmas pessoas, acabadas depois de 12 horas de batente. E perceberíamos mais uma desigualdade sul-africana: os animais das reservas são mais bem tratados e respeitados do que aquelas pessoas.

Às 6h15 da manhã, estávamos com mapa na mão e permissão para entrar e rodar as centenas de quilômetros de estradas dos parques. É assim que funciona: você entra com seu próprio carro ou com um grupo turístico num daqueles caminhões camuflados, e passa o dia percorrendo as estradinhas, torcendo para encontrar um leopardo ou leão na próxima curva.

Foi bom termos madrugado: nas quatro primeiras horas do dia, encontramos 70% dos animais que veríamos o dia inteiro. Íamos riscando todos eles no nosso mapa, que também funcionava como álbum de figurinhas, com ilustrações e nomes dos animais. Logo não agüentávamos mais ver zebras, impalas e gazelas. E nada de felinos. Mas quem não vê leão contenta-se com rinocerontes – que bicho louco, forte e pré-histórico! Uma de minhas últimas e mais fortes lembranças da África do Sul é do momento em que demos de cara com três rinocerontes, andando poucos metros à nossa frente, no meio da pista. Gritei, brequei, larguei o volante, balancei os braços numa excitação incontida os braços. Não sabia se olhava ou fotografava. Olhei. Só quando vi a cara de surpresa do Eric, olhando para mim, percebi que naquele momento eu tinha voltado a ser criança, simples e natural como a África do Sul.

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de março de 2007)







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