Dois jipeiros tabajaras no deserto


EITA: Atoladaços na Muritânia

Por Ricardo Lopes

Fotos por Haroldo Nogueira

Quando o jornalista paranaense Ricardo Lopes aceitou o convite do fotógrafo paulista Haroldo Nogueira para correrem o Rally Paris-Dakar, nenhum dos dois botava fé. Ricardo achava que Haroldo estava só sem assunto. Haroldo, que falava sério, pensou que o amigo estivesse de sacanagem, aceitando por aceitar. Isso foi há um ano. Nos meses que se seguiram, para juntarem grana, fazerem a inscrição e organizar tudo, sempre rolava uma vibe no ar de “será que vamos?”. Afinal, já tinham feito coberturas em alguns rallys do Brasil mas nada que se comparasse à grandeza de Dakar, o rally mais casca do mundo.

Os dois correram na categoria carros de imprensa (seguia as regras dos competidores, mas sem marcar tempo) com uma picape Mitsubishi que equivalia ao “fusquinha” do rali (agüenta tudo, mas não corre). Ricardo pilotava e Haroldo navegava. E a aventura rolou exatamente como eles esperavam: cheia de tretas. Foram mais de 9 mil quilômetros em 15 dias principalmente rodando o continente africano, comendo muita areia do deserto, passando um frio de lascar e encarando perrengues em árabe. Sem contar a ameaça terrorista, as minas enterradas na areia, tudo isso sem uma equipe de apoio. Leia o diário de Ricardo e entenda do que estamos falando.

Diário de um rally casca grossa

06 de janeiro, 1º dia

Quando o rali começa pra valer, rola uma enxurrada de emoções. Logo após a largada em Lisboa e ainda em Portugal, ficamos de boca aberta com a reação das pessoas na beira da estrada, paradas ali apenas para desejar um “boa sorte”. As pessoas realmente admiram quem se submete ao Rally Dakar. Elas não fazem a mínima idéia do que é, mas sabem que é preciso coragem. Fomos até a Espanha.

07 de janeiro, 2º dia

Ainda na Espanha. Embarcamos num navio em Algeciras para cruzar o estreito de Gilbraltar e chegamos no Tanger, no Marrocos. Chegando na África as coisas complicaram de vez. As placas de sinalização eram todas na escrita árabe. Enfim, uma maravilha!


PARADA: Junta o povaréu pedindo presentes

08 de janeiro, 3º dia

Chegamos na África! Eram 3 da manhã no porto, no Marrocos. Paramos num posto. Não tínhamos dinheiro marroquino, mas para nossa sorte o atendente aceitou Euro. Foi um sufoco para ele nos entender, assim não abusamos no pedido: “Dois refrigerantes e dois sanduíches, desse aí no quadro.” O frio estava demais, então dormimos no carro. Nossos bancos são do tipo concha, não vão pra frente, pra trás, nem reclinam, ou seja, poucas horas depois já acordamos com dores no pescoço. Percebemos que estávamos subindo um vale – por isso o frio intenso. Se tivéssemos continuado estaríamos – literalmente – na maior fria. Chegamos a Er Rachidia, no primeiro acampamento. O frio era tão animal que nossos sacos de dormir (que resistem até – 7°C) não deram conta.

09 de janeiro, 4º dia

Tinha ido dormir de gorro, com blusão, calça, luvas, duas meias e uma manta e mesmo assim acordei às 6 horas batendo o queixo de frio. Pelo menos a gente ganhou da organização, no acampamento, o que chamamos de “saco de ração”: suco de laranja, fruta desidratada, batata frita, queijo do tipo petit, uns biscoitos, patê de fígado e salaminho. Tudo em pequenas porções. Uma delícia! Mas o trauma do frio nos fez migrar prum hotel, o que achamos ter sido uma idéia brilhante e inusitada. Doce ilusão! Os hotéis de Quarzazate, cidade do Marrocos, estavam lotados de pessoas do rali! Acabamos caindo num quarto com o aquecedor estava travado na temperatura dos 30°C. Um dia congelando abaixo de zero e no outro suando. “É pra testar nossa resistência mesmo”, me consolou Haroldo.


FILHA DE HAROLDO: Uma foto de Júlia

10 de janeiro, 5º dia

A rotina seguiu igual: terminar o roteiro do dia, chegar no acampamento para montar a barraca e fazer as manutenções na picape. Mas como não tínhamos equipe de apoio, adotamos a equipe do brasileiro André Azevedo, que compete de caminhão. Entre eles estava o brasileiro Geraldo Lima, mecânico da moto do brasileiro Jean Azevedo. Também tinha outro brazuca, o Ronaldo Pinto, mecânico do caminhão do André. Junto com eles estavam cinco tchecos, da fábrica do caminhão de André, a Tatra. Essa virou nossa família. Quando a gente demorava pra chegar eles ficavam preocupados.

11 de janeiro, 6º dia

Às 3h da manhã, fomos dos primeiros a sair com destino a Zouerat, na Mauritânia, e já pegamos nossa primeira tempestade de areia. Sempre ouvia falar disso, mas não imaginava o que seria na prática. Você não enxerga três metros a sua frente! Para completar começou a chover e tudo virou um grande lamaçal. Na fronteira entre Marrocos e Mauritânia, fizemos aquela parada estratégica para ir ao banheiro e tiramos foto do carro enlameado. Vários carros passaram e as pessoas acenavam vigorosamente. Era até engraçado. “Ué Haroldo, será que a gente está tão importante assim?”, comentei. Claro que não era nada disso. Os acenos significavam algo do tipo “saiam daí!”. Quando encontramos o navegador português Filipe Palmerio, que formava dupla com o brasileiro Paulo Nobre, entendemos o porquê da gritaria: “Vocês são loucos?”, ele perguntou. “A fronteira entre Marrocos e Mauritânia é repleta de minas. Alguns anos atrás um português também parou ali pra fazer xixi e bumm! Morreu!”.


ENTRE ER RACHIDIA E QUARZAZATE: Deu até para encontrar uns camaradas no caminho

14 de janeiro, 9º dia

Depois de dois dias mais tranqüilos, descansando e fazendo manutenção na picape, caímos numa roubada sem fim. O trecho entre Atar e Tichit, na Mauritânia, foi dureza. Todos nos disseram para não irmos, mas nossa grande vontade era encarar as dunas gigantes! Dois tuaregues, num ritual de mímica misturado com inglês e francês, nos explicaram como contornar uma montanha. Foi uma boa pernada. Klever Kolberg, competidor brasileiro da categoria carros, demorou 12 horas para completar. A gente levou dois dias. Alguns competidores estão até mais perdidos que a gente por isso tentávamos seguir o rastro dos bambambãs. Mas não dá para distinguir os rastros certos dos errados, por isso demos de cara com um precipício, paramos e atolamos. Foi a estréia de nossas pás.

Obstáculo superado, continuamos. Logo mais a frente um animal salta à frente do carro. Era um camelo fêmea. Em seguida observamos uma cena ímpar. Poucos minutos antes ela havia dado a luz e seu filhote, ainda no chão, aos poucos começava a se mexer. Acompanhamos esse momento mágico por uns vinte minutos, até que o bichinho se levantou e foi procurar a mãe. Seguimos viagem e nos atrapalhamos, dando voltas e caindo no mesmo lugar várias vezes.

Os pneus do carro estavam com calibragem mais baixa, o que facilita a pilotagem na areia. Porém, logo depois vieram as pedras, de todos os tamanhos. O negócio era ir devagar para poupar o carro, pois se ele quebrasse no meio deserto, vixe… Até rezei para surgir areia e andar mais rápido porque não passávamos dos 10 km/h!!! Mas quando nos demos conta de que estávamos imersos num marzão sem fim de areia, aproveitamos um pouco: era o tão esperado deserto. As dunas eram enormes, mas já não nos davam medo. Até pedi pro Haroldo fazer uma foto nossa!

Nos dias em que a gente andava muito na areia a visão cansava. Por sorte levei um óculos que é do tipo “polarizado”, o que ajuda muito. Ainda assim a gente alucinava: víamos árvore, pedra e achávamos que era gente. Antes de dormir, vimos uma montanha no horizonte do nosso lado direito e umas moitinhas do lado esquerdo. Quando acordei, tomei um susto: “Ué, cadê a montanha? Cadê as moitinhas?”. No deserto você começa a ver coisas.

15 de janeiro, 10º dia

Cansados do trecho em condições nada favoráveis, decidimos sair da rota da prova em Tidjikja, cidade da Mauritânia, e nos perdemos. Entramos num vilarejo e logo fomos abordados por um sujeito de roupas camufladas. “Vocês têm algum problema?”, perguntou ele num inglês impecável. Dissemos que estávamos à procura da rota do rali. Ele, muito atencioso, pediu para acompanhá-lo até a sua base. Lá iria pegar a viatura e nos indicar o caminho. Seguimos o cara. Ele parou em frente a uma casinha. Esperamos. Em questão de segundos saíram três caras com metralhadoras acompanhando o nosso “salvador”. Entraram numa picape e disseram para os seguirmos. “Pronto! Esses são os terroristas que ameaçavam a prova. Agora vão nos metralhar a aqui mesmo!”, disse

Haroldo. Passamos pela vilinha, ruas estreitas, muitas pessoas com olhar desconfiado. “Bem Haroldo, se for mesmo uma emboscada, valeu. A viagem estava boa, você é um cara legal pacas”, comentei. Foram momentos de tensão, mas logo surgiram à nossa frente os rastros dos competidores. Nosso “salvador”, que na verdade era do exército da Mauritânia, se aproxima e diz: “Sigam sempre pela principal e boa viagem”. Ufa. Para fechar o dia com chave de ouro, encontramos um oásis. E era exatamente como nos desenhos animados, com plantas, água e muita vida. Sensacional!.


ATÉ QUE ENFIM: Chegada feliz em Dakar! Depois dessa foto, Haroldo e Ricardo beberam até cair

18 de janeiro, 13º dia

Depois de dois dias trocando de rota por causa dos atentados terroristas, a organização do rally deslocou o roteiro de Mali para Ayoûn el Atroûs, em Nema. Atolamos de novo! Descemos no meio de um vilarejo e choveu gente achando que tínhamos parado ali para dar um “oi”. Com aquela multidão em volta do carro, mal conseguíamos usar a pá para abrir caminho, então aproveitamos a galera pra empurrar o carro. Até que um menino sai correndo com nossa cinta de reboque na mão. Corri atrás dele. Uns trezentos metros a frente, percebi que as pás e a caixa de ferramentas não estavam lá. Aí fiquei nervoso, peguei meu facão e voltei pra buscar as coisas. Foi uma gritaria só, até que acompanhamos um senhor mais velho, vestido como tuaregue, que recuperou tudo. Paguei o “resgate” com uma camiseta velha e comida. Foi tenso.

20 de janeiro, 15º dia

A chegada em Dakar é caótica. Eu esperava chegar num local exótico, um paraíso. Que nada, lá é feio pra danar e o trânsito é caótico! O povo é sujo, sem educação. Decepcionante. Mas por outro lado, era o final do rali, era o local que todos tinham sonhado chegar, assim, apesar de toda miséria e toda feiúra do local, a chegada foi empolgante. O local onde ficam as pessoas do rali é uma ala turística da cidade, que deveria ser mais bela. Dakar é uma cidade africana precária. Para comer tinha que ser no hotel ou num único lugar ok que achamos bacana, que por sinal se chamava Pizzaria Brasil. E era o meu aniversário, ou seja, foi uma dupla realização. No dia seguinte ainda teve um pequeno trecho cronometrado que margeava o lago Rosa (é cor de rosa mesmo) e aí depois disso foram premiados os campeões. Nem precisamos de prêmios para sentirmos o gostinho da vitória.

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de março de 2007)