O paredão dos encharcados


BECO SEM SAÍDA: Vista áerea do Rio Wailua, que fica no lado leste da ilha de Kauai, a mais verdejante e pantanosa das ilhas do Havaí

Por Bruce Barcott

Fotos por Kike Arnal

O DIA ESCORRE como as lentas águas do pântano de Alakai. Já estamos atrasados demais e ficando cada vez mais lentos. Bill DeCosta, um guia e caçador de javalis local, abre uma trilha com um facão cego depois de horas cortando a mais dura celulose. O ar está fresco e parado. Há uma ameaça de chuva – mas só uma ameaça. Um estranho buraco azul no céu paira sobre nós no pântano, como a imagem invertida de uma nuvem de desenho animado seguindo um personagem pela rua. O buraco azul está tirando uma onda com nossa cara. Viemos aqui atrás de chuva, mas ela decidiu que não quer ser encontrada.

Bill larga seu facão para dar um descanso a seus pulsos, enquanto pulo uma árvore, atravessada como um sinal universal de NÃO no caminho para a encosta. Estou preocupado com o horário. Que horas são – três da tarde? Quatro? Temos caminhado pela selva escura e úmida em um ritmo ao qual não estamos acostumamos. Nossa hora de voltar já passou faz tempo. Precisamos chegar no topo – agora!

Dez metros abaixo de mim, Bill e seus parceiros — Skip Card, um velho colega de ski e escalada, e Kike Arnal, um fotógrafo venezuelano com muita experiência na Floresta Amazônica – aguardam boas novas. Mas não há nenhuma. “Desculpa, gente”, grito. “Milhas e milhas da mesma coisa”.

O pântano sobe até desaparecer nas névoas perpétuas do Waialeale, o vulcão extinto de 1.569 metros de altura no centro de Kauai, a mais verdejante das ilhas do Havaí. Sacolejo pra baixo e escorrego até o chão, minhas pernas cheias de arranhões, mas a dor vem de algum lugar no fundo das minhas entranhas, onde fica o orgulho. Fracassamos, pura e simplesmente. Não aconteceu com um erro dramático – o que seria muito melhor – mas com a percepção de que, após meses de planejamento, você não chegou nem perto do seu objetivo. Prosseguir não seria um ato de coragem, mas sim de teimosia.

É final de fevereiro, a época com menos chuva – portanto, a melhor janela de oportunidade para tentar chegar ao local mais úmido da Terra. Em um ano comum, mais de 3.900 milímetros de chuva caem no topo do Waialeale (os nativos chamam de "UAI-oli-oli" ou "UAI-lei-lei").

É fácil chegar perto do Waialeale. Todo ano mais de um milhão de turistas vêm fazer caminhadas nos desfiladeiros em zigue-zague da costa de Na Pali, mergulhar de snorkel com peixes-papagaios e relaxar à beira da piscina em dezenas de luxuosos resorts que ficam a menos de 20 km em linha reta do cume. É extremamente difícil, entretanto, chegar ao pico propriamente dito. Dentre esses mais de um milhão de visitantes, o número dos que chegam mesmo no ponto mais úmido da Terra é zero. E o número de nativos vivos que já subiram ao topo do Waialeale provavelmente cabe nos dedos das mãos e dos pés.

A montanha se ergue direto sobre o lado leste de Kauai, um espetacular paredão de 1550 metros a uns 15 km da costa, coberto de samambaias e musgo. No lado oeste, ele desce até o Pântano de Alakai, uma floresta tropical densa de 88 km2 repleta de javalis, árvores lehua, palmeira, 15 espécies de samambaias, e algumas das aves e plantas mais raras do mundo, incluindo a Melicope paniculata, uma espécie de alani, um arbusto de citros cheio de flores (dos quais só se sabe de 110 que existem na natureza); e o ‘o’o, um pássaro que não foi visto em mais de uma década. Com um cume tão encoberto pelas nuvens que só aparece cerca de 20 dias por ano, o Waialeale é o pico mais inescrutável dos Estados Unidos.

Determinamos nossa posição com a ajuda de um GPS. Nesse ritmo, vamos levar mais dois dias para chegar ao cume. Se continuarmos sem o Bill, nos perdemos é tão certo quando o sol nascer amanhã. Se Bill permanecer conosco, ele pode perder seu emprego no porto. “Eu posso ligar e falar que estou doente”, oferece-se. Na hora em que ele fala isso, percebemos que está fora de questão. Olhamos uns para os outros e dizemos então as três palavras mais difíceis de se ouvir: Nós vamos voltar. Mas, na derrota, ganhamos algo ainda mais valioso: respeito pela da aina (terra).


SOSSEGO APARENTE: Caminhada pelo Monte Waialeale, quando ainda era possível enxergar alguma coisa

EU MORO EM SEATTLE, uma cidade famosa por sua umidade. De novembro a junho, a garoa constante transforma o oeste do Estado de Washington em um porão úmido com poucas janelas. Embora tenha nascido e crescido lá, a cada inverno a chuva fica mais e mais insuportável. A umidade penetra na sua cabeça e apodrece a mente. Musgo cresce nos cantos dos retrovisores do meu carro. O mundo inteiro coça.

Mas, por alguma razão, eu queria ver o pior que a chuva tinha a oferecer. O pico de Waialeale prometia a atmosfera mais echarcada e lastimável do planeta. Mas, para sentir o gosto do lugar, era preciso chegar lá primeiro. Se perguntar como se chega ao Waialeale, você vai ouvir histórias sobre as rotas mais impregnáveis desde que Lawrence da Arábia ouviu falar de Aqaba. “Nós não vamos lá, e você também não deveria”, é o refrão mais comum. Mas, entre os esportistas e guias em Kauai com quem conversei, havia um homem que conhecia o terreno por onde andam os porcos no Pântano de Alakai melhor que qualquer um. Ele era chamado de Wild Bill.

“Você está diante da terceira geração de caçadores havaianos de javali, Bruce”, disse Bill DeCosta quando nos conhecemos. Dava para notar. Ele estava de pé sob a cabeça de um porco polinésio de 80 kg, um dos seis suínos com presas montados na parede da sala de sua casa suburbuna aos pés dos morros sobre Kalaheo, na costa sul de Kauai. Bill tem 36 anos. Trabalha como estivador nas docas do Porto de Nawiliwili e caça no pântano desde os sete. “Alguns caras caçam por lazer. Mas Billy…”, contou-me o amigo de DeCosta, Jarvin Peralta, “Billy precisa caçar. Está no sangue dele”.

Bill criou um visual todo seu: cabelos negros ostentando um corte tipo mullet, bigode estilo Fu Manchu, barbicha igual à do Frank Zappa. Não era alto, o que é bom quando se está metido no meio da densa folhagem. Ele prefere roupas de exército e fala misturando um inglês erudito com gírias da ilha. No ombro esquerdo ostentava uma tatuagem de um cão do faraó egípcio, a raça que ele usa para caçar javalis. No Pântano de Alakai. Armado só com uma faca Rambo. No escuro.

Bill me contou um pouco de si mesmo enquanto fritava miúdos de javali no seu fogão: que nasceu e foi criado em Kauai, mas descende de portugueses; que o dinheiro que seu pai economizou ao trazer carne de porco selvagem para casa ajudou a pagar para ele a Humboldt State University, na Califórnia; que, quando seus cães encurralam um javali, Bill acaba com ele com uma facada na frente do ombro dianteiro; que carrega sua caça de volta como se fosse uma mochila de carne; que troca presunto e bacon com seus amigos e parentes por sal feito na ilha, peixe pescado na ilha, e frutas e vegetais cultivados na ilha, como parte de uma extensa economia baseada no escambo que reduz o alto custo de se viver num paraíso de turistas.

Bill não sabia ainda o que fazer comigo, por isso chamou seu irmão para ver se ele queria se juntar a nós. Mas ele não botou fé. “Meu mano quer ter certeza que você não é algum ambientalista que quer voltar lá pra descobrir umas plantas ou aves raras”, explicou Bill. Eu lhe assegurei que não. As agências federais e estaduais tinham recebido um mandado judicial para designar partes do Pântano Alakai e do Cânion Waimea, perto dali – 38.000 acres no total – como habitat crítico para mais de 70 plantas nativas listadas como em risco de extinção desde a década de 1990. O Serviço de Pesca e Vida Selvagem dos EUA a princípio não quis mapear as áreas de habitat crítico para não mostrar o caminho a ladrões de plantas raras. Grupos ambientalistas levaram o Serviço aos tribunais em 1997 e ganharam, e agora a demarcação das terras estava sendo feita. Essa classificação do habitat era mais um obstáculo para o desenvolvimento da área, mas não restringe a caça. Os caçadores de Kauai e os ambientalistas se dão até bem, já que os caçadores matam os porcos selvagens que arrancam as planstas raras. Mas, ainda assim, Bill e seus colegas suspeitam que isso pode ser o primeiro passo para expulsar o povo local do pântano.

“O homem branco com o dinheiro, ele vai vir e comprar seu santuário”, disse Bill. “Eu mal posso pagar esta casa onde estou agora”. Embora estivesse disposto a guiar Kike, Skip e eu pelo pântano, Bill ainda tinha dúvidas a respeito de nossas chances de chegar ao cume do Waialeale, que até mesmo ele nunca tinha visto. “Seria muito fácil se perder por lá, mano”, alertou. “Tudo parece igual”.

“É”, eu disse, “mas nós temos um plano!” Saindo do Parque Estadual de Kokee, a oeste de Waialeale, iríamos de carro até onde a estrada permitisse pela Reserva Florestal na PaliÐKona (Parque nacional de Pali), depois seguiríamos a pé por uma trilha abandonada que segue para o leste pelo Pântano de Alakai até seu ponto mais próximo do pico, e daí atravessaríamos a mata fechada até o cume. Se meu mapa topográfico da Guarda Costeira fosse confiável, seria uma viagem total de 65 km, 30 deles a pé, e uma subida de um pouco mais de 300 metros. Se tudo corresse bem, daria para ir, subir e voltar em três dias, ou dois dias muito compridos.

Na teoria, parecia muito bom. Mas não para Bill. “Bruce”, ele disse. “Falando realisticamente? Vocês podem passar meses por lá, sem saber para onde estão indo”. “Skip vai levar um GPS”, argumentei. “Nunca usei um GPS. Meu único GPS é esse aqui”, Bil respondeu, cutucando a testa. “Eu uso fitas coloridas. Acho meu próprio caminho de volta”. “Qual é o pior problema?”, perguntei. “As nuvens encobrirem tudo?” Bill confirmou. “Você está no lugar mais molhado do mundo. A capa de nuvens pode chegar nessa época do ano. Frio. Encharcado. Cego. Bem deprimido, Bruce”.

Terminamos de comer a carne de javali, que tinha gosto de presunto. Bill ligou para seu chefe nas docas e perguntou se podia matar três dias. Ele conseguiu dois. Marcamos de nos encontrar dois dias depois, antes da alvorada, e fazer o melhor que desse.


RAMBO: Bruce Barcott, o autor da reportagem, se embrenhando no meio da mata molhada

NA ÉPOCA EM QUE O MAIS PRÓXIMO de um esporte radical era uma peregrinação, chefes e sacerdotes tribais faziam a dura jornada até Waialeale para prestar homenagem a Kane, o deus havaiano da fertilidade. Após subir em canoas a remo o Rio Wailua, no lado leste da ilha, a comitiva real abandonava suas embarcações e começavam a subir a Kuamo’o-loa-a-Kane, ou Rota da Grande

Encosta de Kane, uma trilha de bodes estreita e escorregadia. Quando se aproximavam do cume, adentravam em um terreno de aparência tenebrosa. Grossas nuvens rodopiavam ao redor do pico desolado, muitas vezes prendendo os visitantes em uma brancura fria e cegante. Fortes ventos ameaçavam jogá-los pela borda da cratera. As imponentes árvores lehua que cresciam até o tamanho de casas na costa aqui lutavam para alcançar os joelhos de um homem. Eles se ajoelhavam para beber á água de pequenas lagoas cujas superfícies varridas pelo vento davam nome ao Waialeale (“águas ondulantes”), e espalhavam suas oferendas ao redor de um heiau, ou altar, de mais de dois metros que existe ainda hoje, não muito longe da lagoa. E depois eles davam o pé dali.

Em 1874, George Dole – cujo primo fundou a Dole Food Company e cujo irmão, Sanford, foi nomeado o primeiro presidente da República do Havaí, depois de ter ajudado a depor a Rainha Liliuokalani em 1893 – se tornou o primeiro não-nativo a escalar o Waialeale. “Não fosse pela espessa e emaranhada cobertura de árvores e cipós e arbustos que cobre este pali (rochedo)”, escreveu. “seria completamente impossível a subida”. Dole voltou cheio de hematomas e ferimentos.

O historiador de Kauai, Eric Knudsen, que fez a subida em 1902, antes da selva engolir completamente a Rota da Grande Encosta, forneceu uma confirmação igualmente inspiradora: “É úmido, terrivelmente úmido, você fica ensopado e é frio e você sente todos os poderes sinistros da Terra voltando-se contra você”.

Então eu vim para o lugar certo. Mas esses relatos tinham um século de idade. Em busca de informações mais recentes sobre as condições na montanha, recorri a Tom Schroeder, chefe do departamento de meteorologia da Universidade do Havaí, e autor de um estudo de 1999 sobre os padrões de precipitação do Waialeale. “O terreno é um charco, as árvores são anãs, e a maior parte das plantas não parece verde porque não recebe luz do sol suficiente”, contou. “A Guarda Costeira manda um helicóptero pra lá a cada poucos meses para checar a medição de chuva. Eles não pousam, apenas pairam sobre o solo. Se pousassem, ficariam atolados. É bem perigoso. Eles vêm voando ao longo da encosta e freqüentemente o tempo se fecha em cima deles. Antigamente, os guardas costeiros vinham andando pelo Pântano de Alakai para fazer a medição. Levava dias. Um deles morreu em uma dessas viagem certa vez. Entrou lá e nunca mais saiu”.

O Waialeale, aparentemente, é uma máquina diabolicamente perfeita de tempo ruim. Após atravessar quase 3.200 km de mar aberto no Pacífico, os ventos quentes vindos do nordeste sobem pelas encostras das montanhas e criam uma corrente ascendente tão constante que os pilotos de helicóptero podem manobrar suas aeronaves nela como se fossem planadores. O ar úmido esfria conforme vai subindo, chegando ao ponto de condensação a cerca de mil metros de altura e derramando uma torrente constante de neblina na extremidade superior da cratera. O rival mais próximo da montanha, a vila de Cherrapunji no nordeste da Índia, recebe a maior parte de seus 127.500 ml de chuva em surtos de monções que podem ser aterrorizantes. O Waialeale, por outro lado, produz algumas das chuvas mais gentis do planeta. O problema é que ela quase nunca pára.


OLD SCHOOL: O havaiano superninja Bill DeCosta abre o coração para o fotógrafo e mostra o cão caçador de javalis tatuado no ombro

“AGÜENTA AÍ, MOÇADA”, diz Bill quando passamos por mais outra poça d’água grande o bastante para engolir um homem. Dois dias de chuvas fortes deixaram a estrada instransitável para qualquer coisa menos offroad que um jipe 4×4 dos grandes. Enquanto os pneus Super Swamper deslizam pelo lodo, Kike, Skip e eu pulamos como bolinhas de pebolim de um lado a outro da caminhonete, uma Ford F-150 XLT customizada para sobreviver ao terreno da Kauai. Passamos por três biólogos rastreando aves raras com rádio e paramos para cumprimentar dois hikers alemães que pareciam ter sido arrastados pela lama.

“Ei!”, chama Bill. “Vocês viram algum javali por aqui?” Hans e Franz respondem com um olhar confuso; não conseguem quebrar a barreira da língua. “Já! Vá! Li!”, grita Bill, como se o volume fosse o problema. Eles sorriem, sacodem a cabeça, e fazem um shaka, o sinal de mão havaiano para “hang loose”.

“Não curto matar mamíferos”, explica Bill enquanto quicamos estrada afora. “Adoro ver um cervo em uma floresta nacional. Mas não tem nada de simpático em um javali. É um filho-da-mãe traiçoeiro. Com aquelas presas super-crescidas. Sabia, Bruce, que quando eles balançam a cabeça de um lado pro outro, as presas estão se movendo a 110 km/h? Eu perdi três cães pros javalis no ano passado”.

A trilha de lama termina numa elevação que dá vista para o Alakai. Uma série de encostas e vales verdes se abre diante de nós como ondas. Em algum lugar ao longe está o Waialeale. Já estamos atrasados – a estrada é cruel – mas o estranho buraco azul em cima de nós anuncia uma passagem rápida até o cume enevoado. O governo ergueu uma placa de madeira no final do caminho: NÃO HÁ TRILHA PARA O WAIALEALE, anuncia, como se tentasse nos avisar enquanto era tempo. Alguém havia riscado o “não”.

“Muito pouca gente caça nessa região”, conta Bill. “É difícil saber pra onde se está indo quando se está caçando por aqui. Muitos caçadores têm medo disso. E não é muita gente que tem um bom senso de direção. Uma coisa que recebi como um dom – meu pai tinha, meu avô tinha – é senso de direção. Vai ver o que quero dizer quando estivermos mais pra frente”.

As mentiras do Pântano de Alakai começam com seu nome. “Pântano” faz você pensar em um charco baixo, algo que produza répteis de pele grossa ou homens analfabetos com nomes caipiras. É úmido, com certeza – nos lugares onde a água não se juntou em poças marrons, ela se esconde debaixo de uma camada de vegetação apodrecida. Mas não é plano. O pântano sobe até o Waialeale passando por encostas íngremes cobertas com os galhos retorcidos das lehua, samambaias imensas e as folhas afiadas da planta uluhe. Para cada passo há uma raiz para tropeçar, um cipó para te enroscar o pescoço ou um galho para acertar sua cabeça.

Nós avançamos assim mesmo, na marra, com a floresta ao nosso redor, efervescente como uma sauna. Nosso objetivo imediato é colocar nossas coisas de dormir em um dos acampamentos de caça secretos do Bill (secreto porque o governo não gosta desse tipo de incursão), e depois fazer nosso ataque-relâmpago ao cume. Após passar por alguns rios sem ponte, entretanto, a trilha desaparece. Quatro exaustivas horas depois, Bill pára de repente. “Vamos virar pra direita aqui”, diz. O problema é que não tem nada para a direita, a não ser o céu aberto.

Não faz diferença. Bill se joga por uma encosta desconhecida, como se fosse engolido pela selva. Skip, Kike e eu o seguimos do melhor jeito que dá e acabamos enfiados até o queixo em um charco de águas negras conectado a um dos muitos rios que passam pelo pântano. Mal dá para ver o Bill no meio das samambaias de dois metros. Ele pára em cima de um morrinho para checar onde está. “Volta, Kike!”, grita. “Tenta o outro caminho”. Trocamos olhares preocupados. Será que esse cara sabe pra onde está indo? Mais importante, será que ele sabe onde está? Skip rapidamente checa nossa localização no GPS.

“Nossa. O rio tá alto”, diz Bill, apontando o monte de pedaços de madeira largados na margem pela mais recente enchente. “Tomara que meu acampamento ainda esteja lá”.

Numa escala das frases que você não quer ouvir do seu guia, isso fica em algum lugar entre “Você carrega a tenda” e “Finja de morto quando ele atacar”. Bill assume a liderança de novo, arrastando-se pacientemente pelo terreno pantanoso, lendo o solo, confiante que seus sentidos o levarão pra casa. Depois de 20 minutos ele avista um pedaço de lona azul no meio das folhas de palmeira. “Por aqui para a Mansão DeCosta!”, grita.

Dentro do barracão improvisado de lona, Bill guardou todos os confortos que um caçador de porcos selvagens precisa: cobertores quentes, enchimentos de espuma, um forninho, uma lanterna, e sopa enlatada bastante para sustentar um homem por uma semana. Em uma corda que prende o abrigo a uma árvore tem uma camiseta pendurada, uma bermuda de jeans e três meias que tornaram-se eficientes depósitos de orvalho.

“Eu trago meus cachorros jovens aqui uma ou duas vezes por verão”, conta Bill. “Os porcos aqui não têm muita experiência com os cachorros, por isso são mais fáceis de pegar”. Dois crânios de javalis pendurados em um galho atestam a eficácia dos métodos de Bill.

Depois de deixar parte do peso nesse hotel pantanoso, voltamos a nos arrastar encosta acima na direção do pico. Levou seis horas, o dobro do programado, para chegar ao acampamento. Avançamos com a esperança que a floresta tropical se abra em um descampado. É uma esperança vã. As sombras cada vez maiores indicam que o fracasso se aproxima. Nesse ponto, nossa missão pode se tornar algo completamente diferente.

ANOS ATRÁS, o historiador Kirkpatrick Sale deparou-se com uma palavra em espanhol, querencia, enquanto fazia pesquisas para uma biografia de Cristóvão Colombo. “Querência”, escreveu Sale, “é uma profunda sensação de bem-estar interior que surge quando se conhece um lugar em particular na Terra; seus ciclos diários e sazonais, suas frutas e cheiros, seus solos e as canções de seus pássaros”.

Quanto mais avançamos pelo pântano, mais difícil fica para Wild Bill conter sua querência. Ele pára a cada dez minutos para contar histórias. Lembra de grandes tempestades e épicas caças a javalis, folclores da ilha e casos de família. Enquanto isso, fico olhando impaciente para meu relógio. Para não falar do céu. O buraco azul e a estranha ausência de chuva me incomodam.

Bill aproveita este raro momento metereológico para nos dar uma lição de história. “Há muito tempo, quando as plantações de açúcar prosperavam”, narra, “o homem branco resolvia disputas com os trabalhadores recusando-se a pagá-los ou alimentá-los. Então algumas pessoas vinham para cá caçar comida. Tem um lugar do outro lado daquela encosta chamado de Rapozo Puka – o Buraco de Rapozo – em homenagem a Jungalo Rapozo, que costumava caçar por lá. Tinha tantos porcos naquela época que quase toda a aldeia em Pakala era alimentada”.

Bill varre a trilha com seu facão e amarra uma fita de plástico cor-de-rosa em um galho de lehua. “O pântano era o lugar onde os havaianos podiam ir e ninguém ia atrás deles”, continua. “Na década de 1890, tinha um cavalheiro chamado Cowboy Koolau. Ele tinha lepra. Queriam mandar ele para uma colônia de leprosos em Molokai, mas Koolau queria viver o resto de seus dias em sua terra-natal. Então ele e sua mulher fugiram para o Vale de Kalalau e se enfiaram no pântano alto. Os homens brancos mandaram xerifes caçarem o cara, um homem da aina, para levar ele pra Molokai”.

“No processo, Koolau acabou dando um tiro no xerife em uma das encostas altas. Agora ele era procurado por assassinato. O presidente da República do Havaí enviou soldados armados até os dentes atrás dele”. Bill faz uma pausa. “Nunca o encontraram”. Koolau matou um xerife e três soldados e sobreviveu nos pântanos de Kauai por mais de três anos antes de morrer de lepra. Jack London transformou a lenda do famoso fora-da-lei em um de seus mais populares contos, “Koolau the Leper”.

Três horas de lama e suor depois de sairmos do acampamento, chegamos ao que poderia ser uma encosta desconhecida que leva ao Waialeale. Bill não tem certeza. “Bruce, vai por ali e grita a cada 10 metros”. Ando 20 passos trilha fora e fico morrendo de medo.


ROLÊ: Difícil encontrar uma brecha em volta do Waialeale

“CONSEGUE ME OUVIR AGOOOORAAAAA?” Daria na mesma gritar no meio de uma tempestade de neve. “Só fui tão longe assim uma vez, uns dez anos atrás, antes do furacão”, lembra Bill quando me arrasto de volta pelos arbustos. “Muita coisa derrubada, hein?” Troncos e galhos grossos estão cruzados pela crista da encosta. Nos lugares onde a floresta tropical não engoliu o que sobrou da velha trilha, o furacão Iniki de 1992 terminou o serviço.

Continuamos seguindo os golpes do facão do Bill, mas o emaranhado de plantas ao nosso redor não dá sinais de que vai se abrir. Nosso caminho segue por uma crista estreita que acompanha uma queda abrupta de quase 30 metros. Eu checo o mapa: não tem esse penhasco. Parece que quando os cartógrafos chegaram ao pântano, simplesmente deram de ombros e começaram a desenhar qualquer coisa. “Quero voltar por esse trecho antes de escurecer”, decide Bill. Boa idéia.

Uma hora e umas poucas centenas de metros depois, escalo uma árvore lehua e conto as más notícias. Voltamos abatidos para o acampamento na luz cada vez mais fraca do entardecer.

Bill faz cara firme. “Tô falando, Bruce, você veio pra cá na época mais rara do ano. Chove o tempo todo – mas hoje não choveu”. Mas eu me dou conta de algo: a floresta em si é a chuva. A chuva mantém os penhascos escorregadios, a floresta verdejante, cheia, ensopada. O Pântano de Alakai é chuva em forma sólida e verde. O lugar mais molhado do planeta é protegido por um cubo de biomassa de 8 km de extensão que nunca pára de crescer.

NAQUELA NOITE, após limpar o cafofo do Bill, nós quatro nos enfiamos como sardinha debaixo da lona. “Ah, isso que é vida, hein galera?”, ri Bill. “Não tem nada mais fino. Quando penso nos bons tempos adiante na minha vida, penso em trazer meu filho pra cá, mostrar a terra pra ele, ensiná-lo sobre as plantas, as aves”.

“Você ouviu falar da moça que ficou um ano em cima de uma árvore, Bruce? Julia Butterfly Hill?”, pergunta Bill. “Acho que vou fazer o mesmo”, conta. “Desaparecer pântano adentro. Que venham atrás de mim. Eu também acho que devemos salvar espécies raras, Bruce. Mas eu venho de uma linhagem antiga que me ensinou sobre essas coisas. É sempre melhor deixar a floresta sozinha, sabe? A Mãe-Natureza sabe se cuidar”.

Cai a escuridão e acabamos dormindo. E, no meio da noite, ouço uma chuva leve caindo sobre a lona.

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de março de 2007)