Águas turbulentas

POR JASON DALEY E FLORENCE WILLIAMS

1. Falta de acesso


Situação: Para uma boa porcentagem da população do planeta, abrir uma torneira é um milagre tão incrível quanto transformar água em vinho. Isso porque 1,1 bilhão de pessoas não têm acesso a água potável, e dois quintos da humanidade – 2,6 bilhões de pessoas – não dispõem de instalações sanitárias, o que resulta em contato regular com dejetos humanos, particularmente nas fontes de água locais. No Brasil, 20% da população não tem acesso a água potável. O resultado disso é mortal: cerca de cinco milhões de pessoas por ano no mundo – a maioria crianças – morrem de doenças transmitidas pela água, como cólera, febre tifóide, disinteria, hepatite e diarréia, que sozinha mata uma criança a cada 15 segundo, de acordo com as estimativas. Segundo alguns estudos, 80% dos problemas de saúde das nações em desenvolvimento estão relacionados à água contaminada. “Não é problema de falta de reservas ou tecnologia – tem água limpa no mundo inteiro”, explica Ted Kuepper, diretor-executivo da Global Water, uma organização não governamental da Califórnia. “A questão é levá-la até onde estão as pessoas”.


Solução: Em locais de clima seco, poços são geralmente a única fonte de água limpa, embora sistemas coletores de água da chuva também possam ser usados, como as cisternas, cada vez mais difundidas no semi-árido brasileiro. Bastaria equipar os vilarejos com torneiras e latrinas comunais para reduzir as doenças em mais de 75%. Essa causa está na moda. O astro do hip-hop Jay-Z filmou recentemente um documentário para a MTV sobre problemas com água. Já o ator Matt Damon criou a H2O Africa Foundation, para trazer o acesso à água a regiões do Senegal, Mauritânia, Mali, Líbia e Egito. Mas a ONU comanda a missão mais ambiciosa de todas: um de seus Objetivos de Desenvolvimento do Milênio é reduzir à metade até 2015 o número de pessoas sem acesso a água limpa e condições sanitárias básicas, objetivo que a Organização Mundial de Saúde diz que vai custar US$11,3 bilhões por ano.

2. Oceanos em perigo

Situação: A imensidão azul está com problemas imensos. Populações de peixes estão cada vez menores por causa da pesca excessiva (uma pesquisa recente publicada na revista Science estima que em 2048 não haverá mais alimento em quantidade comercial no mar) e a poluição criou cerca de 200 áreas desoxigenadas em lugares como o Golfo do México, onde há uma “zona morta” do tamanho do Rio de Janeiro. Enquanto isso, a pesca de arrastão, em que redes são arrastadas pelo fundo do oceano, está destruindo frágeis ecossistemas como os jardins de coral, e linhas longas estão pegando animais como tartarugas e albatrozes, dizimando suas populações. O desenvolvimento desenfreado está pondo em risco as costas, e as emissões de CO2, que concentram o carbono na água e detonam o equilíbrio do pH, estão causando a acidificação dos oceanos, o que pode destruir uma vasta gama de vida marinha – de ostras a recifes de coral.

Solução: Para o ecologista Carl Safina, fundador da Blue Ocean Institute, a prioridade global agora é restaurar a vida marinha, deixando as populações de peixe tão saudáveis quanto possível. Nesse sentido, os EUA têm um bom histórico. Desde o Ato de Pescaria Sustentável, de 1996, até a criação de reservas onde a pesca é proibida – como o Monumento Nacional Marinho das Ilhas Noroeste do Havaí, com 360.000 km2 – o país está dando uma chance aos peixes. No mundo todo, há iniciativas similares para a criação de reservas, como a Área de Proteção das Ilhas Fênix, com 184.000 km2, perto de Quiribati, na Micronésia. Mas a maior parte das águas costeiras ainda tem pouca ou nenhuma proteção. O pesquisador brasileiro Roberto Ávila, da Fundação de Pesquisas e Estudos Aquáticos (Fundespa), propõe a criação de áreas de exclusão de pesca e o rodízio das zonas exploradas no Brasil.

3. Poluição em massa


Situação: Dejetos tóxicos. Esgoto não tratado. Excrementos de animais. Produtos químicos mortais usados em fazendas. Tudo isso acaba chegando nas reservas globais de água. Em nações em desenvolvimento, até 90% dos esgotos e 70% do lixo industrial são jogados em fontes de água locais sem nenhum tratamento. No Brasil, os números ficam próximos a isso. Segundo o Worldwatch Institute, uma vez que os contaminantes alcançam as águas subterrâneas, eles são “essencialmente permanentes”, já que em média ficam por ali durante 1.400 anos.

Solução: “O tratamento primário e secundário de dejetos é a coisa mais barata que podemos fazer”, diz Paul Faeth, ex-diretor geral do World Resources Institute, um instituto ambiental que concentra seus esforços na água. Isso significa a construção de usinas de tratamento de água e limpeza do lixo industrial por todo o globo, um esforço liderado por grupos como a Global Water Partnership, uma rede internacional de agências hídricas que conectam nações em desenvolvimento à perícia técnica. O uso de menos pesticidas na agricultura e o respeito às áreas de preservação permanente, como nascentes e matas ciliares, também ajudam a minimizar o problema.

4. Mudanças climáticas


Situação: Você já ouviu falar bastante do ciclo da água no planeta: chove, os rios correm para o oceano, a água evapora e forma as nuvens, e aí chove de novo. Sempre pareceu bem previsível. Bem, segure a onda, pois esse sistema estável provavelmente vai sofrer uma bela desregulada, segundo as previsões dos metereologistas. Se, como é esperado, a temperatura do planeta subir dois ou três graus neste século, haverá mais evaporação e mais vapor de água na atmosfera, o que por sua vez agirá com um potente gás de efeito estufa, acelerando o aquecimento global. Basicamente, todo o ciclo hidrológico pode começar a agir como se tivesse tomado anfetamina, lançando tempestades e enchentes mais fortes e mais freqüentes, derretendo bancos de neve e geleiras, e pondo em risco as reservas mundiais de água de um sexto da população mundial. O nível dos oceanos pode se erguer até 60 cm até 2100, inundando cidades, pantanais, estuários, mangues e outros ecossistemas, sem falar de alguns de nossos atóis tropicais favoritos. E, por sua vez, sem os pantanais para absorver gases de efeito estufa, o ciclo vicioso vai ser alimentando ainda mais.

Solução: Reduzir as emissões globais de gases de efeito estufa o mais rápido possível. “Quanto mais esperarmos, maiores serão os riscos e os custos para revertê-los”, diz Eileen Claussen, presidente do Pew Center on Global Climate Change. Grupos como o Pew estão criando coalisões globais para dar apoio a tratados e políticas como programas de controle de emissões, que estabelecem um limite na quantidade de CO2 que pode ser lançado na atmosfera. Essas abordagens, talvez combinadas com um imposto sobre emissões, criariam incentivos financeiros para as indústrias e as pessoas se adaptarem mais rapidamente a uma realidade de carbono limitado. Em janeiro, uma coalisão de grupos ambientalistas e gigantes da indústria, como a DuPont e a Alcoa, propôs reduzir as emissões de 10 a 30% nos próximos 15 anos. E o guru da energia, Amory Lovins, garante que alternativas limpas como carros híbridos e combustível de baixo carbono já estão disponíveis ou em fase de testes. “Tecnologias já existentes e eficientes, se aplicadas sistematicamente, podem poupar metade de nosso petróleo e gasolina e três quartos da nossa eletricidade”, calcula. “Só isso já resolveria metade do problema climático”.

5. Represas em excesso

Situação: Os fãs de Lego dentro de nós podem ficar admirados com a engenharia da coisa, mas represas hidrelétricas são a maior ameaça aos sistemas fluviais do mundo. Considere as estatísticas: existem hoje 47.655 represas grandes em 140 países; elas estão presentes em 60% dos maiores rios do mundo; e o peso de sua água é tão imenso que dizem que até já alterou a velocidade da rotação da Terra. As represas também fornecem um quinto da eletricidade do planeta e ajudam a irrigar um sexto das reservas de alimentos mundiais, mas esses benefícios custam muito caro. Cerca de 80 milhões de pessoas foram desalojadas pela construção de represas em todo o mundo, incluindo quase dois milhões de chineses que vivem acima da represa das Três Gargantas no rio Yangtze (leia na reportagem “O Tigre e o Rio”, nesta edição). As represas impedem a migração dos peixes, causando extinção em nível local; alteram o fluxo do rio e a temperatura da água, matando plantas e espécies aquáticas; e destroem habitats e regiões recreativas (estamos falando com vocês, canoístas). Represas também são um péssimo jeito de armazenar água – reservatórios grandes sofrem evaporação demais e podem perder até 10% de seu volume a cada ano. No Brasil, mais de 90% da energia consumida vem de hidrelétricas. A Amazônia, ainda razoavelmente a salvo das represas, é o próximo alvo do governo brasileiro, que está prestes a iniciar a construção de uma série delas no rio Madeira, em Rondônia.

Solução: Líderes mundias e governos esclarecidos estão questionando propostas de novas represas e até mesmo represas já existentes: elas valem a pena? Enquanto projetos hídricos pequenos podem ser a nova onda verde, já que fornecem energia limpa e renovável, o mesmo não se pode dizer das grandes represas. “Em muitos casos, fica claro que o impacto negativo das represas supera seus benefícios”, diz Patrick McCully, diretor da International Rivers Network e membro do Projeto de Represas e Desenvolvimento da ONU, onde experts alegam que a era das grandes represas acabou. Mais de 212 represas foram derrubadas em anos recentes, com excelentes resultados: quando a represa Edwards, no rio Kennebec, no Estado norte-americano do Maine, foi demolida em 1999, os cardumes de alewives (peixes semelhantes a arenques) voltaram às centenas de milhares. Nos lugares onde a derrubada total não é possível, as represas podem ser mais bem administradas – por exemplo, os operadores podem liberar mais água nas estações de seca, para ajudar os peixes e a vida selvagem rio abaixo.

6. Habitats perdidos

Situação: À medida que os seres humanos vão asfaltando o paraíso, expandindo cidades e fazendas, tomando cada vez mais água e poluindo o que sobra, vamos pondo espécies individuais e ecossistemas inteiros em risco. No topo da lista das vítimas estão lagoas de água doce, lagos, córregos, rios e terras alagadas. Metade dos ecossistemas de mangue do mundo (fundamentais para a procriação de peixes, abrigo de pássaros e reciclagem de nutrientes) e metade dos pantanais – que se estima ser o lar de 40% das espécies da Terra – já foram perdidas para o progresso. As fazendas de camarão no Nordeste brasileiro estão destruindo os mangues da região. Cerca de 75% das reservas de peixe do globo foram quase ou completamente esgotadas, e mais de 20% das espécies de peixe de água doce já estão extintas, em extinção ou ameaçadas nas últimas décadas. Independente das estatísticas, quase toda espécie terrestre depende de alguma maneira dos ecossistemas de água doce para sobreviver – incluindo nós, seres humanos. Pantanais e pântanos filtram e limpam a água, regulam seu fluxo, absorvem a umidade que se tornaria tempestades e nos protegem de furacões. Esses serviços naturais, oferecidos de graça, podem dar mais benefícios econômicos às comunidades do que o desenvolvimento industrial dessas regiões traria. “Precisamos reconhecer que os ecossistemas de água doce têm seu valor econômico, e que precisamor estabelecer alguns limites”, defende Sandra Postel, diretor do Global Water Policy Project.

Solução: Rios e pantanais sabem perdoar: muitos irão se recuperar se simplesmente houver água suficiente – e limpa, evidentemente – fluindo por eles. A aplicação do conceito de serviços ambientais pode contribuir para que a devastação da natureza estanque. Parte do pressuposto que proprietários de terra que preservam os ambientes naturais, especialmente mananciais, estão prestando um serviço e, portanto, devem ser remunerados por isso. No Brasil, esse raciocínio já começa a ser aplicado em alguns municípios (veja no quadro a seguir). O desenvolvimento de técnicas de manejo sustentável de ecossistemas nativos e sua difusão também podem dar uma dose de contribuição, ao valorizar economicamente a natureza preservada como fonte de recursos. Não podemos nos esquecer da importância de uma fiscalização eficiente como força para fazer as leis ambientais (muito boas, por sinal, pelo menos no Brasil) serem cumpridas.

COBRAR É PRECISO

Dizem que, para mudar hábitos, é preciso mexer em bolsos. Essa pode ser uma das estratégias para proteger nossas águas

Se você é um empresário que usa água para suas atividades, saiba que em breve terá que pagar por ela. Antes de dizer “lá vem o governo tirando mais uma fatia do nosso bolo”, vale refletir um pouco mais e compreender o mecanismo de cobrança pelo uso da água que, no fim, pode ser bastante benéfica a todos e uma forma inteligente de garantir esse recurso tão ameaçado às futuras gerações.

Começando com um pouco de história: em 1997, a Política Nacional de Recursos Hídricos, cuja instituição representou um marco histórico na gestão da água no Brasil, passou a considerar a água como um recurso natural limitado, finito e escasso, e portanto dotado de valor econômico. Estabeleceu também o conceito de bacia hidrográfica como unidade de gestão dos recursos hídricos, respeitando a geografia natural dos rios. A partir daí, nasceram os comitês de bacia, espécie de parlamentos das águas que têm autonomia para determinar como estas devem ser utilizadas. A principal ferramenta criada para que os comitês cumpram sua função foi a cobrança pela água, na expectativa de que permita administrar de forma racional o uso da água, gerando fundos para a preservação dos rios.

Embora já possa ser aplicada no país inteiro, por enquanto a cobrança está em vigor somente no Ceará e, em São Paulo, nas bacias do Piracicaba e do Paraíba do Sul. O Ceará foi o pioneiro, taxando a água desde 1998. Desde então, não houve mais casos de racionamento nas principais cidades do estado. Isso poderia ser explicado pelo fato de que, com a cobrança, as empresas de abastecimento foram forçadas a reformar tubulações, reduzir desperdícios e melhorar a eficiência de seus sistemas.

A cobrança também pode reduzir a poluição dos rios uma vez que institui o conceito de poluidor-pagador. Ou seja, as indústrias que captam água dos rios e a devolvem poluída pagam mais. Na bacia do Paraíba do Sul, por exemplo, o comitê de bacia local determinou que para cada mil metros cúbicos de água captada sem devolução, o usuário deve pagar 28 reais. Caso a água seja devolvida limpa, o preço cai para 8 reais, valor que vai aumentando à medida que a qualidade da água devolvida é de pior qualidade.

Em 2004, com esse mecanismo, foram arrecadados 6 milhões de reais na Paraíba do Sul, pouco se comparado com os 150 milhões de reais previstos para serem gastos anualmente durante vinte anos para recuperar os rios da bacia. A cobrança é insuficiente para sanear a bacia, mas tem um importante papel educativo: o de estimular aqueles que usam as águas a renovarem suas tecnologias e suas políticas de sustentabilidade, além de evitarem desperdícios. “A cobrança pelo uso da água não veio para suprir as falhas do saneamento”, explica o secretário-executivo do Comitê de Bacias Hidrográficas do Paraíba do Sul Edílson de Paula Andrade. “Ela é um instrumento que serve como auxílio à gestão”.

Em tempo: pequenos agricultores, moradores rurais e usuários domiciliares não terão que pagar pela água. A lei prevê que a água para uso doméstico – a chamada “vazão insignificante” – não será taxada. Aliás, saiba que a água que chega em sua casa é gratuita. A conta que vem da Sabesp e de outras companhias de abastecimento de água paga os custos do sistema de abastecimento, e não o líquido em si. Será por isso que não damos o valor devido ao que sai de nossas torneiras?

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de maio de 2007)