Os “hermanos” que se cuidem


PICOLÉ: Rose (frente) e Caco enfrentam ventania na descida do vulcão Villa Rica

Por Fernanda Franco
Fotos por Theo Ribeiro

“Consegui chegar até a Rose, cravei a piqueta no chão e nos abraçamos agachados, para o vento não nos arrastar. De repente, já estávamos cobertos pela neve. Foi a primeira vez que achei que fosse me ferrar de verdade numa prova de aventura”. O desabafo é do atleta da equipe Selva NSK Kailash, Carlos Eduardo Fonseca, 29 anos, o Caco. A cena, tão assustadora para brasileiros acostumados a sol e praia, fez parte da sétima edição do Desafio dos Vulcões, uma das corridas de aventura mais duras da América Latina. Mas essa não era a estréia da Selva na Argentina. Na verdade, era sua revanche.

No momento em que a Selva cruzou em 28º lugar o pórtico de chegada do Desafio 2006, a equipe tomou a decisão: estaria na largada do ano seguinte. Mas dessa vez, não bastaria apenas não errar na navegação, como aconteceu ano passado. Eles queriam brigar junto aos primeiros, ao longo dos 500 quilômetros de percurso entre San Martin de Los Andes (Argentina) e Pucón (Chile).

Como não bastava querer – tinha que se preparar! –, os integrantes subiram e desceram montanhas em Itatiaia, remaram 80 quilômetros de uma só vez, e ainda correram atrás da logística e da parte burocrática com antecedência. “Tentamos chegar o mais próximo do real da prova, mas não deu para simular o frio e as condições extremas da região, bem diferentes do Brasil”, explicou o capitão Márcio Campos, 29 anos, dias antes de embarcar. Eles até conseguiram ter aulas no gramado da Universidade de São Paulo (USP) para aprender a manusear piquetas e crampons, equipamentos indispensáveis na neve, que engordaram um pouco mais os 240 quilos de tralhas levadas do Brasil. Mas na prática, a história foi outra.


PROVA: As sessões de ascensão tiraram algumas equipes da disputa

No dia previsto para o começo da prova, em San Martin, o vento estava tão intenso que a largada teve que ser adiada para o dia seguinte, 26 de março. De manhãzinha, 35 equipes subiram em caiaques oceânicos para suas jornadas. Entre elas, cinco brasileiras: Selva, Ortobom Upfit, Cosa Nostra Subrasilis, Trópicos Eletrobás e Paradafobia.

De cara, o clima totalmente hostil mostrou que vinha para ficar. Após 30 quilômetros de remo e 16 de trekking, a sensação térmica na primeira transição com apoio, antes de uma piramba de bike que sairia de 600 metros e chegaria a 1.000, era próxima a – 10o C. “Não protegi meus pés e mãos e quase congelei”, conta Erasmo “Xiquito” Cardoso, 29, que nunca tinha visto neve.

Para piorar a pressão psicológica, os “hermanos” argentinos corriam só de bermuda e corta-vento, enquanto os “brasileños” sofriam encolhidos em camadas e mais camadas de roupas. Outra vantagem dos argentinos foi conhecer bem o local. A prova começou numa área urbana e passou por vários picos de treino habituais. Eles nem tiravam o mapa do bolso e “descobriam” trilhas que simplesmente não existiam na carta. “Mesmos sem errarmos ou pararmos de correr, o pelotão da frente abriu uns 50 minutos”, conta Caco.


ETAPA CONCLUÍDA: Caco deixa o Villa Rica para trás

A SELVA LEVOU VANTAGEM EM RELAÇÃO ÀS BRASILEIRAS por já conhecer o estilo de mapas e percurso da organização. “Eu sabia que trilhas e estradas não são atualizadas e que era preciso, então, navegar por relevo e rios”, explica Caco. O esperto orientador ainda anotou uma preciosa dica de percurso dada no briefing, desatenção que tirou a Trópicos da brincadeira.

A navegação, somada com uma excelente estratégia de sono e a suplementação alimentar, foi empurrando a Selva para as primeiras colocações. “O Caco estava insuportável, parecia ter engolido um GPS”, brinca Xiquito. Ao mesmo tempo, equipes que estavam fortes até então começaram a quebrar, inclusive a argentina Banco Hipotecário Curtlo, que liderou boa parte da corrida. O regulamento obrigava os competidores a descansar um total de 15 horas em seis pontos diferentes, sempre com apoio. A Selva optou por parar antes de um megatrekking de 84 quilômetros até o topo do vulcão Villa Rica, a 2.900 metros de altitude. Eles começaram a caminhada depois de seis boas horas de sono, sabendo que mais à frente eles teriam uma ascensão de 100 metros com jumar (aparelho para subir em cordas) e o ataque ao cume do vulcão.

Caco credita boa parte do bom desempenho deles ao trabalho do nutricionista Reinaldo “Tubarão” Bassit, que os orientou, ainda no Brasil, sobre suplementação. “Não me lembro de ter sentido dores musculares durante a prova”, lembra o navegador. Depois de uma disputa travadíssima com uma equipe uruguaia e de uma ascensão com mochilas de até 15 quilos nas costas, finalmente a Selva chegou ao topo do Villa Rica, num dia ensolarado. A presença de turistas quase os fez esquecer que estavam numa prova. Já a descida…


PRIMEIRO TRECHO: Remo, no lago Lacar

Foi na volta que eles foram surpreendidos pela forte nevasca descrita no começo da matéria. “Não entendia de onde vinha aquele vento e neve, pois 150 metros abaixo fazia sol”, contou a assustada Rose Hoeppner, 45, que foi atingida em cheio pelos fortes ventos, junto com Caco. Um guia de montanha resgatou a dupla, levando-a a base da montanha, com todos andando abaixados e em fila. Márcio e Xiquito já haviam conseguido chegar ao posto de controle.

Como os uruguaios atrás dos brasucas nem puderam subir, o quarto lugar estava garantido à Selva. Porém, os paulistas não conseguiram tirar as três horas que os separavam das primeiras colocadas: a campeão 2050 Proof Hya, da Argentina, e as chilenas Columbia Cânon Montrail e Jeep Salomon. Mas tudo bem. Os brasileiros haviam mostrado que dá para brigar com os anfitriões. E se preparem, muchachos, pois ano que vem “nosotros brasileños” estaremos aí de novo. Agora a revanche é de vocês.

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de maio de 2007)