A água que São Paulo bebe


JAGUARI-JACAREÍ: Água boa até quando?

FOI TUDO TÃO RÁPIDO QUE PARECEU ATÉ BRINCADEIRA DE MAU GOSTO. A água que jorrava da montanha, abastecia a casa e a estufa e ainda sobrava de repente secou. “Sobrou só esse chorinho”, lamenta a sitiante Alcina Vieira enquanto acaricia um riacho minguado que passa entre os bambuzais e vai morrer – chorando mesmo – em um açude logo abaixo. O sítio, no pé da serra da Mantiqueira, em Joanópolis, São Paulo, foi comprado justamente pela fartura de água. Só que a água virou papel: o vizinho plantou no alto do morro um vistoso eucaliptal. Empregado na indústria de celulose, o eucalipto é notável por crescer muito rápido e, para isso, consumir muita água. Centenas, milhares deles, plantados lado a lado, em esquema de monocultura, acabaram drenando o lençol freático da região.

Porém, a natureza é valente. Aos trancos e barrancos, o riachinho, ou o que sobrou dele, desce pela encosta após encher o açude e deságua num curso de água mais caudaloso no vale principal, que por sua vez encontra com um outro rio e vai indo assim sucessivamente até que a água que nasce na serra chega nas torneiras de São Paulo. Incrível não? Mas é assim mesmo.

Na década de 1970, a capital paulistana, sem ter como matar a sede com seus rios transformados em esgotos, teve que ir buscar água boa a quase cem quilômetros da cidade, ali mesmo nas redondezas do sítio de dona Alcina, que faz parte das cabeceiras da bacia do rio Piracicaba. Um monumental conjunto de represas, túneis e uma estação elevatória foi construído para isso e batizado de Sistema Cantareira. Parte da água que correria para o Piracicaba passou a ser desviada para o alto da serra da Cantareira, de onde alcança a metrópole. Esse complexo, responsável por abastecer as casas de 50% da população de São Paulo, depende exatamente da pequena nascente de dona Alcina. Que está morrendo.

E de muitas outras, igualmente definhando, como se pode supor pelo testemunho de João Verona, líder comunitário que mora pertinho de dona Alcina. “A gente sente que as nascentes perderam a força e as minas estão baixando o nível. Mas as pessoas acham que é por causa dos problemas que assistem na televisão, como o efeito estufa. Eu, que vivo na beira do córrego, vejo que quando chove vem aquela baita tromba d’água, mas logo a vazão do rio abaixa. Ou seja, o efeito esponja não está funcionando”.

Verona está falando do papel da cobertura florestal no equilíbrio hídrico. É ela que garante a regularidade e a qualidade da vazão da água das chuvas e nascentes, ao permitir a infiltração da água no lençol freático. Quando o solo está descoberto, a tendência é que a chuva vire enxurrada. Em casos de monoculturas como eucaliptais e canaviais, a água pode até infiltrar-se na terra, porém é consumida pelo rápido metabolismo dessas plantas.

Mas como enfiar na cabeça do agricultor que ele deve plantar uma floresta? Esta é a pergunta que o agrônomo Nelson Luiz Barbosa, da Casa da Agricultura de Joanópolis, se faz todos os dias. Barbosa, em seu ofício, procura conscientizar os proprietários rurais da importância de conservar as matas ciliares. Trata-se de uma luta ingrata: “O agricultor tem uma vida dura. É difícil convencê-lo a plantar árvores nativas quando ele está mais preocupado em garantir uma rendinha no fim do mês”, diz. Nelson acredita que só com a criação de mecanismo que remunerem aqueles que plantam árvores nativas e cuidam de suas matas, será possível recuperar a cobertura vegetal e, conseqüentemente, garantir a produção de água.

Na vizinha Extrema, já em Minas Gerais, há uma experiência desse tipo se iniciando. A Prefeitura local paga R$ 148 por ano a proprietários rurais por hectare reflorestado com espécies nativas em áreas de mata ciliar. A lógica é que o agricultor, protegendo as nascentes, está prestando um serviço ambiental, ou seja, contribuindo para a produção de água. Parte dos recursos do projeto vem da cobrança pelo uso da água que começa a ser aplicada na bacia. Resta saber se o valor a ser pago será o bastante para que o programa tenha adesões.

Outro fator que agrava o panorama complexo da região é a especulação imobiliária. O entorno das represas vive, desde a construção das mesmas, uma transformação sem precedentes, acentuada ainda mais com a duplicação da Rodovia Fernão Dias, que corta a região. Pastagens viraram condomínios, antigos agricultores tornaram-se caseiros e gente vinda de fora bagunçou as já impactadas comunidades locais. E essa ocupação tem acontecido de forma desorganizada, ignorando leis ambientais e qualquer tipo de planejamento urbanístico.

A expectativa é de que em dez anos a população do corredor entre São Paulo e Minas quadruplicará, atingindo um milhão de pessoas. “A região bragantina é hoje a fronteira de expansão urbana da região metropolitana de São Paulo. Associado a isso, há o uso turístico”, diz o professor João Luiz Hoeffel, coordenador do Centro de Estudos Ambientais da Universidade São Francisco, em Bragança Paulista. “E não há uma discussão sobre esse crescimento nem posicionamento dos órgãos públicos, o que se reflete na qualidade e na quantidade de água”.

Uma ironia: até pouco tempo atrás, quem circulava pela Rodovia Fernão Dias podia ver, quase na chegada a Bragança Paulista, um outdoor anunciando a venda de lotes em um condomínio à beira de uma das represas. Até aí, nada de estranho. O que causava espanto era a foto exibida: uma represa quase vazia. Provavelmente foi tirada em 2001 ou 2003, dois anos de secas alarmantes. Em 2003, a represa do Jaguari-Jacareí, a principal do sistema Cantareira, chegou a 1,6% de sua capacidade, ameaçando a cidade de São Paulo a ter que ficar sem água. As chuvas do ano seguinte foram generosas e o reservatório se recuperou, mas o aviso foi dado. A imagem do outdoor que servia para ilustrar a bela paisagem do lugar estava mais para uma alerta do que pode vir a acontecer num futuro próximo. Provavelmente os marqueteiros responsáveis pelo empreendimento não perceberam que, ao tentar mostrar o paraíso, estavam vendendo a seca.

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de maio de 2007)