Por Eduardo Petta PIRAPUTANGA, DOURADO, PACU, CACHARA, PIAVUÇU, CURIMBATÁ, canivete, joaninha, mato-grosso, cascudo. Estou cercado por mais de 80 espécies de peixes coloridos. A transparência da água ultrapassa 50 metros de visibilidade e sua tonalidade é de um azul extremo. Já mergulhei na Grande Barreira de Corais da Austrália, Caribe, Bali, Tailândia, Mentawaii, Noronha, Abrolhos. Nunca achei água igual a esta. Estou em um rio em pleno interior do Brasil. Não, não é imaginação. É flutuação. Vem de flutuar, palavra que no Aurélio quer dizer “conservar-se à tona de um líquido; boiar, sobrenadar”, mas que a partir desta viagem transforma-se em meus ouvidos como a chave para acessar nomes de peixes e rios de eterna lembrança.
A cidade que hoje clareia meus pensamentos é Bonito, na Serra da Bodoquena, 400 km ao sul de Campo Grande, capital do Mato Grosso do Sul. Com pouco mais de 15 mil habitantes e cerca de 40 propriedades rurais repletas de atrativos, Bonito recebe anualmente uma média de 100 mil visitantes. Pequena, é lugar de uma rua famosa só, onde se sobe e desce, ao lado de peões a cavalo e caminhonetes importadas. Vazia de dia, bacana de noite, há 30 anos era um pacato vilarejo que recebia as caravanas da lida do gado. Hoje oferece a cama que quiseres, no bom restaurante que desejares e os passeios de rei que sonhares, com direito a coroa para ostentar: pentacampeã brasileira em ecoturismo, eleita pelo Guia 4 Rodas.
Por falar em rodas, Bonito é pé na estrada de chão batido o dia todo. Um sacolejo só – “segura peão”, como eles dizem – até chegar em suas fazendas onde mora a aventura, entre as serras verdejantes cobertas pelo maior remanescente de Floresta Atlântica Semidecidual do país. Lá na floresta estão seus moradores: paca, tatu, cotia também. Suçuarana, tucano, capivara, jacaré, tamanduá, sucuri, preguiça. Com um guia de fauna local na mão, vou conferindo e ticando o que encontro pelo caminho. Não é difícil vê-los. Vida farta, protegida do bicho homem.
Mas chega de terra firme. Vamos à flutuação. “Toma o kit”, diz o guia. Colete salva-vidas, máscara, snorkel e roupa de borracha. Precisa? Super. Mas, ué, e as nadadeiras? “Sem nadadeiras. Não use os pés para não turvar a água. Nem toque o fundo, nem em plantas, e nem nos peixes”. Eu sabia – por mais que eles insistissem em quase esbarrar em meu rosto e me desse uma vontade louca de puxar o rabo daquela piraputanga gordona, indiferente à minha humana presença.
Oito pessoas na água, mais o guia, em fila indiana. Lá vou eu. “Flutuar é preciso, viver não é preciso”. Fernando Pessoa teria soltado esta, tenho certeza, se estivesse a escorrer com a correnteza rio abaixo pela linha da água. Esforço zero. Apenas deslizar pelo rio Sucuri, água azul turquesa, serpenteando pela mata, fazendo nó na mente com tanta beleza. Canso, desviro, tiro a máscara. Olho para fora e flutuo as avessas. Os macacos atravessam as margens, sons de pássaros, mata ciliar, árvores frondosas. Desviro, olho para dentro do rio. Viro, olho para fora do rio. E até dentro de mim o olhar se faz mais bonito.
Uma hora depois, fim do passeio. Achei que ia criar escamas, virar peixe. As mãos estão congelando, mãos de velho. “Você tem razão, precisava de neoprene”, digo para o guia. Depois da água, vejo um vídeo. Ali, no mesmo rio que flutuei em paz, está na tela uma sucuri devorando um jacaré, um dourado jantando uma piraputanga. O homem está presente, mas a natureza é selvagem. O bicho é o lobo do bicho.
Nos dias seguintes vou a serras e cachoeiras, vejo ipês floridos, conheço fazendas lindas, toco boi, toco boiada, me delicio com a culinária de fogão a lenha e a cachaça caseira. Vou a mirantes, faço rapel, bike, trilhas, nado em cavernas de lago cristalino, fico amigo do rei, mas não adianta. Aquilo não me sai da cabeça, tipo canção que pega. “Ele só quer, só pensa em flutuar”. Antes que o doutor me examine, vou ao rio da Prata e então, por quase duas horas embaixo d’água, curto de novo a mesma sensação. Dia seguinte, mais na veia, desta vez o néctar: a nascente do Aquário Natural, a única em que é permtido mergulhar livre dos coletes salva-vidas. “Por gentileza, apaguem as luzes e me deixem aqui, este é o mundo ao qual pertenço. Não posso deixar estas águas”. Mas, afinal, como é que estas águas ficam assim?
“É o calcário, seu moço”. Qualquer menino local sabe explicar o segredo de águas tão límpidas, resultado de um processo geológico de milhões de anos que ajudou a formar a Serra da Bodoquena. E qualquer menino daqui sabe disso porque eles estão envolvidos até a medula com a preservação da região. Em meados da década de 80, alguns fazendeiros “despertaram” para o bom negócio de preservar reservas naturais. Eles se uniram e desenvolveram projetos em áreas particulares. Depois criaram regras rígidas para manter o equilíbrio ecológico e a qualidade dos serviços, e investiram na formação de mais de 100 guias profissionais.
Mas a grande sacada foi a criação do “voucher único”, bilhete indispensável para realizar qualquer passeio. Emitido pela prefeitura, o voucher é revendido pelo mesmo preço, exclusivamente, pelas cerca de 30 agências de turismo receptivos, que depois se encarregam de remunerar guias e donos de atrativos. “Desta forma, conseguimos controlar o número de visitas diárias das atrações, assegurar uma carga de passeios por dia e envolver a comunidade”, me diz o Juca da Igarapé, mergulhador que desde o início participa desta parada.
O resultado de tanta organização é que tudo funciona como um relógio. Os passeios têm data e hora marcada. Não reservou, não flutuou. O jeitinho brasuca de ser, desacostumado com esta história de num pode isto nem aquilo, estranha. Mas a dura lei garante preservação ao ecossistema local. Garante ainda que os rios continuem a correr com suas águas cristalinas e que um dia, lindo dia, quem sabe, possa trazer meus netos aqui para flutuar entre piraputangas, dourados, pacus, cacharas, curimbatás, canivetes, joaninhas.
(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de maio de 2007)
Fotos por Luciano Candisani