Peso morto


NA TRILHA: Nem a imponência do monte Tukuche, no norte do Nepal, faz com que os carregadores nepaleses mudem de idéia e desviem da rota

Por Erick Hansen

ATÉ AGORA, CARREGUEI UMA CESTA DE BAMBU PENDURADA EM MINHA TESTA por uma tira por mais de um quilômetro pelo Nepal, e a reação dos locais já adquiriu um padrão que não é dos melhores.

Eu e meus três companheiros carregadores nos aproximamos de uma pequena vila de pedra. Estávamos no fim da fila, atrás de nossos clientes, oito yuppies chineses de Xangai, quando uma criança local me avistou – um louco suando, grunhindo, se contraindo debaixo de seis quilos de roupas. “Olhem! Lá vem o Olhos Brancos carregando um dhoko!”, ela grita e logo se esquiva para ir contar à galera que o circo havia chegado.

Rugas de alegria marcam a testa das velhas mulheres enroladas em batas vermelhas. Alguns homens preguiçosos tomam chá com leite e se perguntam “Ele está carregando suas próprias coisas?” e “De onde ele vem?”, até que eles acham em algum lugar da memória inglês suficiente pra dizer “Bom! Muito bom! Quantos quilos?”.

Quando respondo em nepali “Do que vocês estão rindo? Qual é a graça?”, todo mundo começa a gargalhar e as perguntas começam a voar, começando com: “Por que você está carregando sua mochila num cesto?”.

“Não é minha mochila. É dos turistas”, eu minto, apontando os chineses.

O mais esperto deles replica: “Ah, o turista está carregando mochilas para os turistas – um ótimo acordo”. “Quanto um estrangeiro cobra?” Eu, sem graça, sorrio e me atrapalho para arrumar a tira que escorregou da minha cabeça, dolorosamente e embaraçosamente, enquanto meus companheiros carregadores continuam sem descanso, levando o quádruplo do peso.

Será assim por cinco dias. A viagem que os chineses planejaram, o clássico circuito Ghandru ou a “rota da casa de chá”, começa na vila de Phedi, vai até Damphus, Ghandruk e Ghorepani e termina em Nayapul, traçando uma ferradura nos 8 mil metros de altura dos maciços de Annapurna e Dhaulagiri. Na maioria dos dias, escalaremos apenas 900 metros, andaremos uns oito quilômetros por um pouco de neve, e nos acomodaremos em chalés com luz elétrica que os turistas chamam de casas de chá e os carregadores chamam de hotel. A elevação máxima será de confortáveis 3 mil metros. Poderemos tomar nossas refeições em qualquer lugar. Cada chalé tem uma acomodação extra, geralmente no porão úmido ou perto do banheiro do lado de fora. É o máximo de comodidade que um carregador pode esperar. Mas, mesmo deixando pra lá as piadas dos locais, está na cara que não vai ser fácil.

Ao sairmos da vila, Kharkhar, um carregador veterano que havia começado com suas piadas de pênis, pára e me olha. Ele me olha sério. Aquele sorriso com restos de tabaco nos dentes já era. “Eric, meu brother, esta noite ficaremos no mesmo quarto. Você está sozinho. Eu sou seu amigo. Ficaremos juntos, ok?”

Fico extremamente feliz. Não só porque ele me convidou para dormir no cômodo dos carregadores, me oferecendo uma entrada simbólica para o mundo secreto dos maiores transportadores de carga do mundo, mas também porque quando um nepalês diz que é seu amigo, é porque ele é seu amigo. E se eu vou aumentar minha carga dia a dia, mochila a mochila, até respeitáveis 27 quilos, acho que eu realmente preciso de um amigo.


HOMEM DE CARGA: A região de Annapurna, no Himalaia, tem diversas opções de trekking. O problema é se acostumar com a "confortável" alça dessas mochilas.

QUERIA SABER COMO era ser carregador antes mesmo de conseguir soletrar Katmandu. Dez anos atrás, quando morava e estudava no Nepal, dei uma fugida daquele cinzeiro urbano e por um mês vivi em Simigaon, uma íngreme vila agrária um vale acima do Everest, na qual a maioria dos homens eram, ou haviam sido, carregadores de trekking. Da maneira que eles descreviam, ser carregador era mais uma grande festa do que propriamente trabalho – uma ocupação iluminada que caía como uma luva para o clichê do “camponês feliz”. Era verdade? Eu queria descobrir trabalhando como carregador com os carregadores – o que trazia aquele “pequeno” detalhe de carregar tanto peso.

Um dhoko-naamlo não é nada divertido. É uma tradição antiga, de uma época mais simplória. O dhoko, uma cesta em forma de cone com o fundo plano e tecida com tiras de bambu, é mais ou menos do tamanho do seu torso. O naamlo é um pedaço de corda com uns oito centímetros de tira pra cabeça, feito geralmente de sacos de arroz ou farinha. Amarre o naamlo na parte de trás do dhoko, posicione no topo da cabeça e prenda com uma espécie de grampo.

Além da vantagem de poder ser comprado por menos de um dólar nas vilas nepalesas, o dhoko-naamlo ainda te permite carregar equipamentos que partiriam suas costas em duas se não fosse por ele. Em trekkings como o nosso, cada carregador transportará um mínimo de 25 quilos. Crianças de 12 anos carregam rotineiramente nove quilos de uma vila a outra. E um minucioso estudo feito em 1999 com 635 carregadores mostrou que a média de peso era de 72 quilos. Um carregador ganha em média 3,5 a cinco dólares por dia, e o equivalente a uma diária em gorjetas a cada semana – isso se ele de fato ganhar gorjetas. Segundo a Porter’s Progress (progresso do carregador, em português), uma cooperativa da categoria em Katmandu, os guias costumam roubar as gorjetas dadas aos carregadores. Ainda assim, praticamente todas as etnias nepalesas trabalham como carregadores de trekking: os sherpa, os tamang, os magar e até mesmo os tharu, cuja moradia nas terras baixas, a 90 metros de altitude, não lhes garante vantagens históricas nem biológicas. Até onde eu sei, eu seria o primeiro carregador vindo da casta dos Ricos Ocidentais Fracos.

Meus amigos de longa data no Sherpa’s Adventurers (aventureiros sherpa, em português), um restaurante nepalês em Boulder, Colorado (EUA), adoraram a minha idéia. Eles fizeram uma lista de contatos em Solu-Khumbu (na região do Everest) e me encheram de nomes de amigos – três Nima Sherpas, dois Ang Tsering Sherpas, dois Pasang Sherpas – e de lugares aonde ir. Parti em fevereiro deste ano, munido de entregas que deveria fazer à família deles: bebidas e 20 quilos em pares de tênis, jaquetas e relógios.

Achar um trabalho não era tarefa assim tão fácil. Quando cheguei em Katmandu, descobri que Prachanda, líder da insurgência maoísta que completava 11 anos, havia deixado seu refúgio e aparecido publicamente num inflamado comício, anunciando greves locais que atingiriam as viagens nas semanas seguintes. O turismo diminuiu tanto desde a rebelião – chegando à queda de 70% – que é raro um carregador conseguir três meses de trabalho em um ano. Pra piorar, a alta estação só começaria em duas semanas. E fomos atingidos por uma frente fria, que cancelou as expedições de montanha em Solu-Khumbu.

Saí de Katmandu, redirecionei minha viagem para Pokharaa, ponto de partida de baixa altitude para os trekkings de Annapurna. Mas continuei desempregado e desgostoso da vida depois de passar por entrevistas em agências de trekkings bizarros; pensei em desistir e carregar cestas de pedras numa pedreira local por 14 centavos a viagem. Na semana seguinte, a sorte bateu à minha porta enquanto eu conversava com os chineses. Havia começado a narrar-lhes minha situação bem no momento em que eles se preparavam para começar um trekking.

Os chineses tinham entre 20 e 30 anos e se conheciam através do líder, um sociável agente de viagens que se auto-intitulava “Montanha”, e de outro cara, a quem chamaríamos “Cowboy” – um ex-empregado da indústria de navegação que andava de jeans, bandana vermelha e giz de cal para escalada pendurado no cinto. Havia também seis mulheres, entre elas “Prada”, dona de uma empresa de software que usava óculos escuros de designers famosos e calças que se transformam em bermuda, e apagava um cigarro Davidoff atrás do outro em seu cinzeiro portátil. Havia também “Jaqueta Vermelha”, uma jornalista baixinha, de óculos, com um sorriso meigo e um corpo não-atlético. Depois de ouvirem meu caso, o grupo gentilmente me permitiu que os acompanhasse. Eu trabalharia de graça, carregando meu próprio equipamento e quanto eu conseguisse da bagagem deles. Acertamos os detalhes, e essa foi a última vez em que conversei diretamente com os chineses.

Me apresentei ao guia do grupo, Shiva, e aos meus companheiros carregadores: Kharkhar Chantel, um cara de 43 anos que usava um boné de beisebol; Gopal Raí, de 35 anos e vestindo tênis de vinil da Gold Star e uma camada fina de fleece, da cabeça aos pés; e Hari Raí, de 18 anos, com calças cargo e um moletom com capuz. Eu os cumprimentei de forma respeitável e disse que carregaria uma daquelas cargas de 27 quilos na minha testa.

Eles sorriram e me cumprimentaram também.


TORCICOLO: Os sherpas (locais do Himalaia) garantem que não há melhor maneira de transportar as tralhas

AQUELA NOITE, estávamos sentados numa mesa de picnic. Eu olhava pela janela do hotel Greenland e via Annapurna II e IV aparecendo de trás das nuvens pela primeira vez no dia. Os chineses, enquanto proferiam seu “Ohhhhh” em uníssono, se debatiam pela bateria de suas câmeras digitais.

“Que direção é aquela?”, perguntei a Gopal, que estava de costas para a janela. “Sul”, ele disse, sem tirar os olhos de seu Annapurna Post.

Gopal e Hari sabem ler. Kharkhar, nascido a 40 quilômetros a oeste de Pokharaa, numa vila pobre logo depois do final da estrada, é analfabeto. Ele cresceu semeando batata e milho com suas três irmãs e indo, vez ou outra, pra escola. Até que trocou tudo isso por uma casa pequena, feita de tijolos de barro, no subúrbio de Pokaraa. Logo depois, começou como carregador, tendo feito até agora 200 trekkings na área do sopé do Annapurna. Nesse meio tempo, sua mulher o deixou.

“Ela queria dinheiro, um carro”, ele me disse.

“E o pênis dele não funcionava”, se intrometeu Gopal.

“É. Mas ele é grande!”, Kharkhar replicou, gargalhando.

Kharkhar é um homem sério e seco, exceto quando surge uma piada. Aí – se o assunto é mulher, a “banana” do homem, casamento ou algum outro de seus assuntos favoritos – ele amansa e é o primeiro a dar risada.

Gopal, ao contrário, é como Silent Bob. Ele passa horas sem dizer absolutamente nada, e de repente solta uma piada espirituosa, que o faz sorrir, nunca rir. Somente suas duas irmãs ainda estão vivas. Seu pai e sua mãe morreram, bem como seus nove irmãos mais velhos, mas ele não sabe dizer do que. “Todos eles estavam com alguma doença, nós fizemos pujaas, mas eles morreram mesmo assim”, atesta. Ele nasceu no distrito de Khotang, abaixo de Solu-Khumbu, estudou até a quinta série, e é carregador há 13 anos.

Durante o ano letivo, Hari estuda administração na Universidade de Tribhuvan, em Pokharaa, mas tem planos de voltar pra casa em Solu-Khumbu assim que terminar os estudos, daqui a três anos. “Vou cuidar da terra e lecionar; talvez daqui a alguns anos haja um projeto de desenvolvimento agrário no qual eu possa trabalhar”, ele diz. “Tenho saudades da minha família.”

Descobrimos aquela noite, enquanto tremíamos de frio no cômodo para carregadores, que o que temos em comum é o fato de sermos todos homens solteiros. Kharkhar acende a luz e dá uma voltinha para exibir seus novos (e baratos) óculos escuros espelhados.

“São para a neve?”, pergunto.

“São para dormir”, ele responde, me olhando com um sorriso maléfico. “Esta noite vocês terão a companhia de um homem sexy, muito sexy…”

Hari solta, com voz afeminada: “Oh, turista rico, case com um dos meus lindos irmãos!”

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A viagem já está tomando o jeito de uma balada de solteiros. Permeada por uma caminhada forçada.

ÀS 7H30 DA MANHÃ, os chineses haviam armado suas câmeras. Então lá vamos nós!Hari ajeita uma Lowe Alpine de 60 cm3, completamente lotada, e joga um plástico azul maior ainda sobre ela, formando uma cruz entre sua cabeça e seus ombros. Gopal desliza um naamlo pela testa e, agachado, levanta sua cesta contendo três mochilas cheias. Kharkhar pega três mochilas aparentemente novinhas em folha atadas com corda, e as coloca em seu naamlo, deixando as tiras dos ombros e da cintura balançando. Vou cambaleando até minha posição. Hoje estou incumbido dos pertences pessoais de Shiva (uma mala pequena), Kharkhar (um chapéu de lã e uma jaqueta neon para esqui, que era quentinha e à prova d’água há 20 anos), Hari (um casaco extra) e Gopal (alguma coisinha qualquer).

Os chineses nos arrastaram do hotel Greenland, mas, uma vez na trilha, Kharkhar diz “Bistaarai jaanum” (“Vá devagar”) e nós tiramos o peso das costas e damos uma paradinha a cada 15 minutos nos bancos da trilha, chamados chautaraas. Assim será por todo o trajeto. Esse ritmo vagaroso e eficiente é uma espécie de irmandade. Estou acostumado a andar rápido como os chineses, e parar durante os intervalos pra um lanchinho, mas não consigo pegar o jeito da cesta. Ela pende para a esquerda cada vez que recomeçamos, fazendo com que meus músculos esternocleidomastóideos se enrijeçam como vigas, da orelha até o ombro. Quando começa a sair da posição, a cesta só vai escorregando mais e mais.

Kharkhar, Gopal e Hari não passam por esses apuros. E nos arrastamos em direção a Ghandruk, a dez quilômetros. A posição curvada, a luz diminuindo e o barulho de pássaros me faziam crer que tínhamos entrado numa floresta. Conforme andávamos, só tinha olhos pro que estava bem aos meus pés: um caminho de pedras com raízes musgosas e plantas pisadas. Um pouco antes do almoço, vejo um brilhante papel de chiclete. O Himalaia é mesmo de tirar o fôlego! Kharkhar me pergunta como estou me saindo. Balanço a cabeça pra sinalizar que estou bem, e meu pescoço estala.

Às 2h30 da tarde, os chineses começam a esmorecer e paramos em Landruk antes do planejado. O guia, Shiva, pede que eles decidam se querem manter o plano inicial, descendo direto 300 metros até o rio Modi e escalando 640 metros de degraus até Ghandruk. A discussão toma a aura de uma decisão à beira do degrau Hillary. Cowboy pega emprestado o mapa de Shiva, reúne as seis mulheres em uma assembléia em semicírculo e chama Montanha pelo walkie-talkie vermelho. Checam os relógios. Fazem perguntas. Parece que vão optar pelo banho quente.

Depois de quinze minutos de falatório democrático, Cowboy vira para Shiva e diz “Decidimos ir até Ghandruk”. Eles aceitam o desafio. Kharkhar, que não se surpreende, diz “Yup! Eles vão pra Ghandruk”. Hari, olhando para o outro lado do vale, diz “Não chegaremos antes da sete da noite”. E então ouvimos as únicas palavras de Gopal durante o dia inteiro: “É muito longe”.

Nenhuma dessas frases é dita de maneira áspera. Há um pouco de descrença – como se dissessem “Como os chineses, cansados do jeito que estão, acham que vão conseguir?” – e um certo presságio – como “Ah, não! Vai demorar muito pra comermos daal bhaat” –, mas mesmo assim comentam tudo sem mudar o tom.

Nós continuamos. “Não desça rápido demais senão suas bolas despencam”, Kharkhar adverte.


SUFOCO: Pequeno grupo realiza ascensão pela face sul do Dhaulagiri – sétima montanha mais alta o mundo – no Himalaia

OS CHINESES APOIAVAM A CABEÇA COM AS MÃOS em um canto da cinzenta sala de jantar estilo soviético do nosso hotel Manisha, enquanto nós partilhávamos de uma bebida caseira que tinha mais gosto de querosene que de saquê. “Beba”, disse Kharkhar, enchendo meu copo. “Raski te dá poder. É o remédio da montanha.”

“Não beba muito senão sua cesta cai”, Gopal me avisa, bêbado.

Nós esperamos, esperamos, esperamos e bebemos, bebemos, bebemos. Os carregadores são sempre os últimos a comer e, quando os chineses já estão satisfeitos, eu já estou zonzo e faminto. Faz oito horas que não comemos. Quando chega nossa vez, eu como tanto quanto eles: duas xícaras de lentilha aguada, três punhados de vegetais ao curry e um tanto de arroz. Tudo devorado com uma voracidade suína. Era o que eu precisava pra formar um “daal bhaat baby” na minha barriga. Do nada, Kharkhar diz: “No Nepal, as montanhas, as estradas, o governo e os hotéis são sempre os mesmos. Só as pessoas mudam. Estamos felizes de ter você por perto”. Burp!

Na manhã seguinte, são os chineses sóbrios que aparentam estar de ressaca. Se arrastando mais do que nunca, eles transformam os seis quilômetros através dos arbustos em uma tarefa de um dia inteiro. Pior que isso, eles ignoram regras básicas de etiqueta local: eles passam ao lado de monumentos budistas, apontam, insistem em não receber chá e pratos com as duas mãos, pechincham preços tabelados em hotéis, estimulam a mendicância dando canetas e doces às crianças, encostam na cabeça dos nepaleses, e ostentam sua própria riqueza. Prada, preocupada com a possibilidade de Hari ficar com a pele ressecada, passa em seu rosto um spray que custa mais do que ele ganhará pelo dia inteiro de trabalho. Ele sorri envergonhado.

Quanto a mim, já é hora de aumentar o peso no meu dhoko-naamlo, mas meu pescoço diz que não, que devo esperar um pouco mais.

Quando chegamos a Tadapani, ela está coberta por um metro de neve recente. Eu, Gopal, Kharkhar e Hari nos juntamos a dúzias de outros carregadores que tentavam secar as meias e os tênis numa fogueira ao ar livre. Shiva aparece logo depois, arrastando, literalmente, Jaqueta Vermelha pela névoa cortante. Ele veio puxando-a com uma corda a tarde inteira.

Prada se aproxima: “Com licença, Hari”.

Hari se embaralha. Ela sabe meu nome?

Acontece que Jaqueta Vermelha está doente e com dor de cabeça, e Prada quer que Hari a carregue amanhã. É difícil imaginar como isso poderia acontecer (cinto anti-gravidade?), e Hari sabe dar desculpas. Mas Prada já previa isso.

“Eu tenho uma corda pra você também…”, e fez menção de amarrá-la.

“Podemos tentar”, disse Hari, e se sentou de novo quando ela saiu. Os carregadores retomam a conversa – é só uma cliente louca – e eu pergunto a Hari: “Você consegue mesmo carregá-la?”.

“Não, acho que não”, ele diz.

KHARKHAR PARECIA contente quando saímos na manhã seguinte, rumo ao que aparentava uma eclusa íngreme. “Oh, é escorregadio, senhor. Ops, é bem escorregadio. Acho que temos que ir por aqui, senhor”, ele dispara a falar.

“Senhor? O que aconteceu com o ‘brother’?”, eu lhe pergunto.

Kharkhar jura que foi sem querer.

Meus lábios estão quase sangrando de tão queimados. Compro um protetor labial, já que ainda temos cinco quilômetros pela frente. O vendedor da loja me pergunta se, ao invés de levar coisas usuais para um carregador, eu não estaria carregando laranjas para distribuir a todas as meninas bonitas da montanha. “Você é uma menina bonita”, Kharkhar me provoca enquanto passo o protetor labial.

“Ohhh, Gopal, meu brother”, eu digo, “Me dê uma de suas mochilas”.

Com mais nove quilos, 20 no total, eu me sento e não consigo levantar minha cesta. Dez minutos depois, começam as pontadas na cabeça, que durariam o dia inteiro. Mais cinco minutos e eu, escorregando a cada três passos, já não tenho mais tanta certeza de que conseguirei ir até o fim.

“Ohhh, Gopal, meu brother, vamos dar uma descansadinha?”

“Só quando chegarmos lá”, ele me diz. “No topo daquela colina.”

Nunca havia visto ele recusar uma parada pra descansar.

Fomos subindo por mais 40 – 40! – minutos ininterruptamente, com aquela “corda de piano” do naamlo ameaçando dividir meu crânio em dois. Minha batata da perna latejava e, quando finalmente paramos, gelo era a única coisa que poderia dar um alívio às minhas costas. Gopal e Kharkhar não tinham nem tirado o casaco.

Sou o primeiro a levantar. Ok, garotos, eu penso, estou indo! Mas é claro que eles vieram logo nos meus calcanhares. Tento segurar um pouco daquele peso todo com os braços, porém na posição em que meus cotovelos estavam, senti que eles iriam explodir. Tenho vontade de me inclinar e baixar a cabeça, na esperança de que a cesta pare em minhas costas, mas essa tentativa só comprime meu esôfago e me impede de respirar direito. A cada passo vou ficando não mal-humorado nem ranzinza, mas furioso mesmo. Me aproximo de dois chineses. Já que eles não se ligam que eu estou carregando as coisas deles, tenho vontade de gritar “Ei! Eu estou carregando suas malditas escovas de dente elétricas!”.

Um pouco antes do almoço, cruzamos com um grupo de carregadores vindo na direção contrária e, diferentemente das crianças risonhas e dos homens preguiçosos, eles estão em silêncio. Em um silêncio hipnótico, chego a pensar.

“Ele é nosso”, diz Gopal, e mesmo que ele esteja tirando sarro – há um branquelo rico carregando suas coisas – dá pra ver que ele está orgulhoso. E isso me deixa orgulhoso também.

Acho que não passo de um turista louco que fez grandes amigos. Talvez eu pudesse treinar carregar coisas pesadas como eles, aprender a sofrer melhor por sofrer com mais freqüência, mas aí eu não estaria interessado em piadas de pênis. Eu seria amargo.

Tremer de frio a noite toda, ser o último a comer, ir xingando trilha acima, obedecer clientes mimados – a indignação me deixaria maluco. O simples fato de ser legal ao trabalhar como uma mula humana requer uma certa nobreza de espírito que talvez eu não tenha.


FUNDO DE TELA: Nepalesa dá uma relaxada curtindo a visão da "montanha branca" (Dhaulagiri)

ÀS 5H30 DO NOSSO último dia, com a tarde caindo, chegamos ao final da trilha e nos deparamos com outra greve dos transportes. Os chineses encontram taxistas dispostos a romper o piquete e a levá-los de volta à cidade grande pelo quíntuplo do preço usual. Mas não cabemos todos num carro só, e os chineses não se oferecem pra pagar outro táxi. Eles dão a Shiva um dólar a mais por carregador para cobrir nossa hospedagem, agradecem imensamente e entregam 120,87 dólares ao motorista de táxi, com aquele sorrisinho de merda. Eles acabaram de desembolsar mais do que Kharkhar gasta em um ano de aluguel, só para tomarem banho quente naquela noite.

Mas calma, talvez as gorjetas tenham sido boas.

“E aí, quanto foi?”

“Duzentos e cinqüenta rupees”, Kharkhar responde – o equivalente a 3,78 dólares.

Demoro pra entender. Duzentos e cinqüenta rupees por pessoa por dia?

“Duzentos e cinqüenta rupees por pessoa no total.”

“Como é que é?”

“Achou muito? Achou pouco?”, Kharkhar pergunta, inocentemente curioso.

“Achei horrível!”, grito em inglês, deixando o nepali pra lá.

“Às vezes mil, às vezes um, às vezes nada”, ele diz. “A gente nunca sabe.”

“Achei horrível!”, grito de novo, deixando as mãos caírem.

Ele me olha, impassível, e diz algo tão inflexível que ele pode dizer em inglês: “É nosso dever”.

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de junho de 2007)







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